07 Junho 2024
Professores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS são os convidados desta do semana do podcast De Poa e falam sobre as inundações no RS e em Porto Alegre.
A reportagem é de Luís Gomes, publicada por Sul21, 06-06-2024.
O episódio desta semana do podcast De Poa, uma parceria do Sul21 com a Cubo Play, recebe os professores Rodrigo Paiva e Walter Collischonn, do Instituto de Pesquisa Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS). Em conversa com Luís Eduardo Gomes, eles falam sobre as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio, avaliam como se comportou o sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre e projetam o que é necessária para o Estado se preparar para novos eventos climáticos extremos.
Durante o programa, os professores explicam que uma pesquisa em andamento no IPH analisou os possíveis impactos das mudanças climáticas globais sobre eventos extremos hidrológicos no Brasil, como secas e cheias, indica que a região sul do País vai sofrer um aumento consistente de cheias ao longo do século.
“Tanto do ponto de vista do curto ou médio prazo, a gente tem que manter a atenção. E, principalmente, num ponto de vista de mais longo prazo, a gente tem que se prevenir e realmente não dá para acreditar que coisas como essa não vão mais acontecer”, diz o professor Walter. “Não existe nenhuma justificativa física de que esses eventos vão seguir um período exato de 80 em 80 anos”, complementa Rodrigo.
Rodrigo destaca ainda que, ao se analisar a série histórica do comportamento do Guaíba, percebe-se que as primeiras décadas do século XX não registraram grandes cheias, mas isso acabou mudando entre os anos 1920 e 1960, marcados por grandes cheias, a mais notória sendo a de 1941.
“Talvez foi por isso que a geração anterior decidiu por construir um sistema de proteção para Porto Alegre. Mas, a partir da década de 70, a gente passou por 70, 80 e 90, um período com menos cheias. Até em uma apresentação que eu fiz, chamei esse período ali de período do esquecimento do problema. A gente vai esquecendo que existe essa cheia. A partir dos anos 2000, foi aumentando de novo, especialmente na última década, começando em 2015. A média dos níveis do Guaíba se elevaram muito. Então, só de olhar aquele gráfico a gente já fica assustado. ‘Olha, tá subindo’. Se a gente somar isso a esses estudos que o Walter comentou, mostra claramente que é no sul do Brasil em que há a maior preocupação sobre o aumento da magnitude e frequência dessas cheias”, afirma.
Para Walter, a questão do esquecimento é fundamental para entender como Porto Alegre, em especial, deixou de dar a atenção necessária para o problema das cheias. “A gente tem motivos para esquecer as coisas. Nós, seres humanos, na verdade, evoluímos para esquecer coisas dolorosas. Nos faz bem esquecer coisas dolorosas, não é bom ficar relembrando coisas ruins. Só que quando a gente trabalha com a gestão no sistema de proteção de cheias, a gente não pode esquecer as coisas dolorosas que aconteceram no passado. E isso é uma coisa que aparentemente aconteceu em Porto Alegre. A gente não só não viu mais cheias acontecendo ao longo da década de 70, 80 e 90, como a gente passou a acreditar que todo aquele sistema que foi projetado em função das cheias das décadas anteriores não tinha utilidade, não tinha serventia, começou a se questionar a utilidade disso e se falava abertamente em retirar todo o sistema, inutilizar ele, derrubar o muro. Usar alternativas simplificadas, talvez mais frágeis ou mais sujeitas ao erro. E não era um pensamento justificado do ponto de vista racional. Do ponto de vista funcional, a gente sabe que aconteceu em 41, podia acontecer de novo. Nenhum fator havia mudado o suficiente para a gente acreditar que uma cheia como a de 41 não ia acontecer mais”, afirma.
O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
A gente viveu o maior evento climático da história recente do Rio Grande do Sul e até gostaria de saber como se classifica esse evento. Foi realmente algo muito além do esperado ou foi mais amplificado pela falta de prevenção? Como vocês avaliam o evento?
Walter Collischonn: Esse foi um evento absolutamente extraordinário. Para vocês terem uma ideia, ele foi um evento recorde no Rio Jacuí, ele foi um evento recorde no Taquari, no Caí e também aqui no Guaíba. Então, ele foi um evento que superou todos os eventos anteriores conhecidos, inclusive na Lagoa dos Patos também, superou a cheia de 1941 em Pelotas, por exemplo. E ele foi causado por uma chuva que foi maior em volume do que a chuva que caiu em 1941 e caiu em menos tempo do que a chuva em 41. Então, a gente tem é mais volume de chuva concentrado em menos tempo. E a consequência foi o que a gente viu. Numa cidade como Lajeado, por exemplo, o nível da água foi mais de 4 metros acima da maior cheia conhecida anterior, que aconteceu no ano passado, em setembro. E 4 metros e meio a mais do que a cheia de 41. Foi uma situação de proporções desconhecidas até hoje. Mesmo aqui em Porto Alegre, a diferença para cheia de 41 não foi tão grande, mas ainda assim talvez meio metro acima da cheia de 41, então é uma proporção muito maior. Foi realmente um evento extraordinário.
A gente tem motivos para achar que a chuva que aconteceu é uma chuva recorde em escala nacional, não num ponto. Não tem nenhum ponto em que foi medida mais chuva, por exemplo, do que em Bertioga, no verão do ano passado, em 2023, litoral de São Paulo, que teve registros de 682 mm em 24 horas. Mas isso é num ponto apenas. Aqui a gente não chegou a ter nenhuma chuva dessa magnitude em 24 horas em nenhum lugar. Mas, em compensação, a chuva aconteceu em muitos lugares ao mesmo tempo e durante mais tempo. Choveu durante vários dias seguidos. De forma muito, muito intensa, durante três dias seguidos. Mas, além disso, a chuva anterior já era grande e continuou chovendo depois. Então, a chuva a gente tem motivo para acreditar que é um evento recorde em escala nacional. Essa é uma questão que ainda tá sendo analisada mais detalhadamente, mas a gente tem motivos para acreditar.
Além disso, essa chuva caiu de uma forma muito concentrada numa parte da bacia que responde de forma muito rápida, que é a parte da bacia com maior declividade, onde tem a transição dos Vales para a região do Planalto. São áreas com declividade muito alta e que tipicamente, quando a chuva acontece, ela rapidamente se transforma em escoamento e atinge os rios, fazendo com que eles subam muito rapidamente. Então, foi talvez uma chuva que, se um hidrólogo tivesse que criar um cenário hipotético extremamente negativo, ele mesmo não teria imaginado uma chuva tão terrível como essa que aconteceu. Mas não foi só isso que aconteceu. A gente tem também uma componente humano nesse processo, acho que eu posso deixar o Rodrigo complementar nesse caso, mas algumas coisas não funcionaram tão bem como a gente gostaria que tivesse funcionado.
Rodrigo Paiva: Eu gostaria de falar sobre o fenômeno natural ainda. Essa chuva de grande volume e grande intensidade ao atingir essas regiões de montanhas gerou um grande volume do escoamento, que se propaga rapidamente por esses rios de montanha. Por isso que a gente observou no Vale do Taquari, por exemplo, elevações de mais de 20 metros e de forma muito rápida. Nas cabeceiras isso acontece em poucas horas, ao longo de um dia isso já chega no Baixo Taquari causando grande destruição. Nessas regiões, a gente tem um escoamento com muita velocidade.
Eu ia perguntar isso, é o que causa o efeito de arrastão, em que a água leva casas, pontes, etc.?
Rodrigo Paiva: Teve outra colega que comentou, a gente olha na televisão aquelas ondas de surfe de Nazaré, que tem 30 metros, é mais ou menos o mesmo tamanho dessa onda, 20 m ou 30 m, e a amplitude de um tsunami também não chega a isso. Então, realmente foi um fenômeno extremo. Isso em volume da água, ao chegar nos rios de planície, no Jacuí e no Baixo Taquari, se espalha por uma grande região e até escoa mais devagar. Por isso que demorou um pouco para chegar esse efeito até Porto Alegre e a região metropolitana, demorou uns dois dias. Lá no interior, no dia primeiro já estava em uma situação crítica. Em Porto Alegre, o nível começou a se levar na quinta e sexta-feira, chegando no pico sábado e domingo. Só que mesmo a elevação em Porto Alegre foi muito rápida em comparação a cheias que a gente conhecia. Na cheia de 1941, que era a maior até então, o nível da água do Guaíba demorou 10 dias para se elevar até o pico. Nessa cheia de 24, foi apenas dois dias. Isso pegou as pessoas ainda mais de surpresa. E ainda falando sobre os números, essas vazões que foram registradas tanto no Guaíba, no Taquari e no Jacuí, chegam a limites de recordes globais para bacias do mesmo tamanho. Ao mesmo tempo esse volume, essa vazão, esse fluxo da água de mais de 30 mil metros por segundo no Guaíba, é um fluxo comparável à vazão dos grandes rios do mundo, dos maiores clubes do mundo, só perdendo para o Rio Amazonas, que a vazão é 200 mil metros por segundo. E comparável com as vazões de cheia da maior parte dos rios da América do Sul. Então, nesse sentido, realmente foi um evento muito grande.
Quando é que a gente sabia, talvez não essa quantidade, que a gente teria chuvas extremas no Estado?
Rodrigo Paiva: No ano passado, nós já tivemos eventos extremos no sul do Brasil. Em junho e julho, em Caraá. Depois em setembro, no Taquari, com uma cheia no Guaíba. Aí vem aquele sentimento, ‘tudo bem’. As pessoas pensam que o próximo evento vai demorar muitos anos. Teve em novembro. Depois, em 16 de janeiro tivemos chuvas intensas. Se a gente olhar o que estava acontecendo nesse ano, a gente estava com um ano de El Niño, que é um evento que tipicamente traz mais chuvas e cheias para o sul do Brasil. Além disso, a gente está vivendo um momento em que a temperatura global está elevada, batendo recordes também. Então, daria para talvez a gente desconfiar que o ano estava sendo diferente e que a gente não poderia, digamos, diminuir a nossa atenção. Isso num médio prazo, numa escala sazonal. Agora, na escala mais de curto prazo, eu me lembro de ter recebido alertas entre domingo (27 de abril) e segunda-feira (28) de que as chuvas seriam muito grandes. Os colegas já estavam com a atenção antes até.
Walter Collischonn: No dia 25 de abril, tinha uma previsão que indicava chuvas intensas. Ela não foi perfeitamente correta, porque ela indicava chuva maior na região das Missões e porque o volume total de chuva não chegava à metade do que aconteceu, mas era uma previsão que indicava que era necessário ter atenção. Mais ou menos essa previsão foi se mantendo até o dia 30, que indicava alguma coisa da ordem de 200 mm cairiam até a quinta-feira, o que é uma situação que exige atenção, mas realmente foi uma subestimativa do que realmente aconteceu.
Chegamos a passar de 700 mm em alguns lugares.
Walter Collischonn: Exatamente. Nesse mesmo período, choveu mais do que o dobro do que foi previsto. Isso não significa que a previsão estava errada e que por isso aconteceram problemas. Por quê? Porque a previsão meteorológica serve para preparar as pessoas para que mantenham a observação do que está acontecendo. A gente não pode imaginar que simplesmente com a previsão meteorológica possa ter informação suficiente para evacuar uma cidade, um bairro, etc. Não, porque essa previsão está sujeita a muito incerteza. O que é necessário para a gente ter uma efetividade maior em lidar com essas cheias é uma previsão mais apurada que, para ela acontecer, temos que ter outro tipo de sistema de alerta, que envolve monitoramento intensivo e é previsão baseada nessa observação. Aí a gente esquece um pouquinho a previsão meteorológica e passa por monitoramento hidrológico. Realmente, qual é a chuva que está caindo? Qual é o nível da água do rio? Quanto aquela barragem, à montante, já está liberando de vazão?
Mas aí é algo no momento mesmo?
Walter Collischonn: É do momento mesmo. Houve, sim, previsões. Essas previsões foram suficientes para a gente saber que um evento grande vinha pela frente, mas elas não foram perfeitas. Nem de longe, a gente pode dizer que essas previsões foram perfeitas ou que se sabia que o que estava vindo pela frente seria a maior cheia da história do Rio Grande do Sul. Não ficava claro isso nas previsões meteorológicas lá no dia 25 ou 30. Foi só quando o evento foi se desenvolvendo que a gente foi percebendo o grau de gravidade da situação que estava acontecendo.
Daria para dizer que, quando as primeiras cidades foram afetadas, Santa Maria e a região do Vale do Taquari, entre outras, há alguma coisa que poderia ter sido feita de imediato para, pelo menos, avisar as pessoas, dar um nível de alerta maior? Vocês avaliam que algo poderia ter sido feito para minimizar o impacto na vida das pessoas?
Rodrigo Paiva: Em geral, a gente tem indicado a necessidade de melhorar todos esses sistema de previsão, de alerta e de comunicação com as pessoas, para que ele possa ser mais assertivo e mais detalhado. Isso vai envolver muita coisa, desde aumentar o número de estações de monitoramento da chuva e dos níveis dos rios, melhorar os sistemas que fazem essa previsão. A gente acredita que a capacidade está nas pessoas também, então aumentar o número de técnicos da sala de situação, etc., para que eles possam estar fazendo todo esse acompanhamento. É um trabalho grande a ser feito.
Walter Collischonn: Complementando aqui. Num lugar como Sinimbu, por exemplo, a resposta é muito rápida, leva poucas horas entre o instante que acontece a chuva e o momento em que a vazão do Rio Pardinho lá em Sinimbu se eleva muito, o nível da água começa a subir rapidamente. São poucas horas. Então, se não há uma medição muito cuidadosa da chuva, não tem como eu saber o que vai acontecer, porque, só baseado na previsão de modelos meteorológicos, a gente não tem confiança naquela informação. E, casualmente, na bacia do Rio Pardinho, a gente não tem praticamente nenhum monitoramento, nem de chuva, nem de nível da água do rio, nem nada.
Ficamos às cegas naquela região então.
Walter Collischonn: Exatamente. Com o sistema que hoje existe, não tinha como avisar as pessoas a não ser dizer assim: ‘Olha, uma grande chuva está prevista’. Mas acontece frequentemente uma grande chuva prevista e nem sempre acontece a maior cheia da história por causa disso. Então, as pessoas tinham noção de que ia chover, assim como também tiveram noção que ia chover em setembro e nem por isso Sinimbu foi destruída em setembro ou em novembro. Faltou esse elo final. Se a gente quer, no Rio Grande do Sul, evoluir nesse aspecto, a gente vai ter que passar por uma etapa, aquilo que o Rodrigo falou, de intensificar o monitoramento, a gente vai ter que equipar melhor o órgão que é responsável por essas previsões e partir para um outro tipo de previsão, que não é baseada apenas em previsão meteorológica, mas é baseada em monitoramento intensivo. Junto com isso, toda a parte de pessoal técnico, os recursos humanos, que são necessários para fazer isso, porque a gente, às vezes, acha que a tecnologia pode resolver tudo, mas, no fim das contas, vai envolver seres humanos. Então, essa é uma questão. Tem lugares que a resposta foi tão rápida que com o sistema atual foi praticamente impossível.
Aí que eu queria chegar. Mas tem lugares, como região metropolitana, que na sexta-feira (3), na primeira vez que eu falei com o professor Rodrigo, tinha o boletim do IPH dizendo que iria chegar a 5 metros, provavelmente entre sábado e domingo, o que foi confirmado. Ou seja, a gente teve, pelo menos, 48 horas de antecedência desse aviso e muitas pessoas foram pegas de surpresa. Ali foi um problema do sistema que se achava que ia segurar e não segurou o volume de chuva ou já dava para ter feito um alerta para as pessoas evacuarem antes?
Rodrigo Paiva: Eu queria continuar falando um pouquinho da questão da previsão. Isso é natural, algumas bacias que são pequenas respondem muito rápido, questão de horas, outras que são maiores, depois da chuva, respondem em dias. Então, por exemplo, no caso do Rio Taquari, na própria quarta-feira (1º), já estava se observando elevação rápida nos níveis e o SGB (Serviço Geológico Brasileiro) emitiu uma previsão baseada nos níveis à montante. Isso já teve uma grande utilidade para aquela região. E, na quarta-feira, eu e meus colegas já vínhamos estudando ferramentas para fazer previsão de níveis no Guaíba e já naquele momento a gente percebeu que os níveis do Guaíba iam se elevar muito, os cenários já estavam mostrando passando dos 5 metros e até alguns cenários que a gente até achou que podia estar errado, se aproximando dos 6 metros. Aquilo foi uma surpresa até para os técnicos, para os hidrólogos, pareceu algo muito grande. E, de quarta para quinta, para sexta-feira, isso foi se concretizando. Na própria quinta-feira pela manhã, a Prefeitura de Porto Alegre decidiu pelo fechamento das comportas. Às 14h, o nível do Guaíba já estava em 3 m. Acho que durante o fim da tarde já tinha superado as cheias de 2023. E, na sexta de manhã, já vinha se elevando ainda mais. Foi quando os próprios técnicos de IPH decidiram: ‘a gente tem que avisar mais as pessoas’. Colegas tinham preparado mapas de áreas que poderiam ser atingidas numa eventual falha do sistema de proteção. Então, a gente pensou assim: ‘vamos avisar as pessoas, porque, nessas áreas, a gente calculou que moravam 150 mil pessoas.
Walter Collischonn: 500 mil no total da Região Metropolitana.
Rodrigo Paiva: Isso, mas, só em Porto Alegre, 150 mil. Ou seja, se o nível sobe tão rápido e houver uma falha, não haveria tempo hábil para essas pessoas saírem.
Estamos falando de sexta de manhã?
Rodrigo Paiva: Sexta de manhã. Foi aí que que se divulgou muito na mídia. Só que naquele momento a gente também não imaginava que haveria uma falha tão generalizada do sistema de proteção de cheias de Porto Alegre. Foi mais uma medida de precaução. Então, o sistema, de certa forma, segurou a cheia, segurou a inundação, porque o nível do Guaíba subiu. Entre sexta e sábado, uma que outra comporta falhou, entrou água.
Na Av. Sertório, já estava alagado, mas era basicamente ali na sexta-feira.
Rodrigo Paiva: Então, ele acabou atrasando a entrada da água e foi falhando sábado, domingo, segunda-feira. De certa forma, deu tempo maior para as pessoas, mas o impacto final foi quase que total.
Walter Collischonn: Mas, no momento em que foram feitos aqueles mapas que indicavam que haveria risco, a gente não sabia ainda que o sistema ia falhar da forma como ele falhou. A gente começou a ver cenas que deixavam a gente preocupado. Por exemplo, portão com saco de areia visivelmente vazando para o outro lado da Mauá. Casa de bombas vertendo água. Aparentemente, as coisas não estavam tão bem como a gente gostaria. E aí a gente tinha um mapa e começou a ficar preocupado que essas pessoas talvez nem todas soubessem que elas estavam correndo perigo mesmo. Muitas pessoas não sabiam que moravam numa área inundável, que seu bairro e sua casa eram protegidos por diques nem nada disso. Então, foi uma tentativa de antecipar isso. O resultado na verdade é uma pesquisa, não é uma previsão operacional ainda, mas que, naquele momento, se revelou muito útil. A gente tem feedback de vários grupos que tomaram decisões boas a partir dessa divulgação.
Rodrigo Paiva: E isso é interessante de ser mencionado. O nosso Instituto se dedica ao ensino e a projetos de pesquisa, mas não tem esse papel operacional.
Como tem, por exemplo, a Sala de Situação do governo Estado.
Rodrigo Paiva: Isso, a gente não tem tempo para fazer isso todos os dias. Só que assim, ao ter o conhecimento, a gente conhecer as tecnologias, conhecer sobre o fenômeno, foi algo muito natural. Todos os colegas se sentiram quase que no dever de fazer alguma análise, fazer alguma orientação. Então, por isso que teve todo esse trabalho que o público acompanhou.
Teve um manifesto, que vocês devem ter visto de ex-diretores do DEP e do Dmae, em que eles defendem que o sistema é robusto eficaz, mas que precisava de manutenção. Nessa questão, o problema foi muito agravado pela falta de luz? As casas de bomba deixaram de funcionar porque não tinha luz. Mas, se tivesse luz, elas poderiam ter dado conta de minimizar esses estragos? Ou não, elas já estavam precárias e seriam alagados de qualquer jeito?
Rodrigo Paiva: Eu entendo que a primeira falha foi a questão da vedação das comportas. Ali foi onde se iniciou todo o problema. À medida que as comportas não estavam totalmente vedados, entrou um volume muito grande de água. No meu entendimento, essas casas de bomba foram todas dimensionadas e preparadas para retirar da cidade volumes vindo da chuva local da cidade, para resolver o problema dos alagamentos, e não para resolver um problema de uma inundação do Guaíba inteiro entrando dentro da cidade. Claro, depois teve o problema que elas também foram falhando, então agravou.
Walter Collischonn: Mas não foi só isso também. Teve problemas de diques que romperam porque a gente tem pessoas habitando em cima dos diques, isso pode enfraquecer os diques. Tem lugares em que os diques foram rebaixados. E tem lugares também em que o próprio sistema, aparentemente, não tinha sido completo quando foi construído, o que é o caso da entrada da Trensurb, que é um pouquinho rebaixada. É o caso da própria Assis Brasil, que é um pouco rebaixada. Então, os detalhes dessa entrada da água em cada ponto, a gente não conhece detalhadamente, mas o que parece ter acontecido é o colapso desse sistema como um todo. Praticamente não teve nenhum ponto em que as coisas não falharam, e por motivos diferentes num lugar e no outro.
A gente teve mais de um problema acontecendo ao mesmo tempo para ter a inundação que tivemos na cidade. Teve a água que veio do Guaíba diretamente, mas em alguns bairros não era diretamente a mesma água, tinha um intervalo e uma parte seca. Isso fica muito claro ali no Beira Rio, por exemplo, em que tu tem os diques de 6 metros na Avenida Beira Rio, que não ficou alagada. Já a Av. Padre Cacique ficou completamente embaixo d’água, assim como o estádio Beira-Rio. O que que causou esse alagamento dessas áreas com água que não vinha diretamente do Guaíba?
Walter Collischonn: A água vinha diretamente do Guaíba, só que a Avenida Beira Rio ali, no caso, é o próprio dique. A água não passou por cima do muro, mas ela entrou na Mauá. A água não passou por cima da Avenida Beira Rio, que é o dique, mas ela entrou. Ali ela pode ter entrado através da própria casa de bombas. No Menino Deus também, existem casas de bombas que drenam a água para dentro do Arroio Dilúvio e algumas delas também não funcionaram. Então, a gente tem esses diversos problemas, mas toda essa água foi a água do Guaíba.
Claro, mas era uma água que vinha de baixo também.
Walter Collischonn: De baixo. Às vezes, é porque o conduto da água pluvial, tem lá as bocas de lobo e etc., aquilo ali é levado até uma casa de bombas. Quando essa casa de bombas não funciona, a água faz o caminho inverso através do conduto pluvial e acaba saindo pela boca de lobo em vez de entrar pela boca de lobo. É isso, então é uma água que surge na rua sem ter uma conexão aparente com o Guaíba, mas existe uma conexão pelo sistema de drenagem pluvial por baixo da terra. É a água do Guaíba, sim. Lá na Zona Norte, teve lugares que a água que entrou foi água do próprio Gravataí, porque o rio Gravataí fica praticamente no mesmo nível que o Guaíba fica lá na foz do Gravataí, na zona da Arena do Grêmio. Então, ele fica nivelado e foi então a cheia do Guaíba que causou essa elevação do nível do Gravataí, e o Gravataí, por sua vez, entrou através dos arroios lá do Sarandi, na FIERGS, no Humaitá também.
E os repiques que a gente teve, primeiro aquele temporal na quinta-feira (23). Aquele evento também dá para considerar que foi fora do normal?
Rodrigo Paiva: A gente teve uma primeira elevação, com o pico no primeiro final de semana, no dia 5. Depois o nível do Guaíba foi descendo. Depois, naquela semana, a gente teve de novo uma chuva muito forte, no dia 12, que pegou toda a bacia do Taquari. Teve uma nova subida, ali que a gente chamou de repique, que chegou a 5m20, se eu não me engano. Havia até uma expectativa de superar o primeiro pico. Depois, o Guaíba foi descendo e ele foi apresentando subidas menores, que aí foram muito mais associadas ao vento o vento sul, que segura o Guaíba, do que a chuva. Naquela quinta-feira, aconteceu um efeito combinado. O Guaíba já vinha elevado, represando todo o escoamento de água de dentro da cidade de sair para fora do Guaíba, e choveu muito em Porto Alegre. Até regiões que não tinham sido impactadas antes ficaram alagadas e esse volume não teve muito caminho por onde sair, porque esses condutos estavam já todos afogados de água, além de todo o problema da lama, da inundação, os resíduos sólidos, o lixo, etc., as casas de bombas que não funcionava. Então, foi um problema que foi agravado naquele momento. E aí, desde então, o que a gente observou foi o Guaíba descendo, mas sempre que batia um vento sul o nível da água podia se elevar a 20 cm, a 40 cm, que foi que aconteceu na segunda-feira.
Eu ia perguntar justamente isso. A gente grava o programa na terça-feira, dia 4, o que aconteceu na segunda-feira, dia 3, para voltar a subir em alguns lugares, sendo que o nível do Guaíba já estava já tinha baixado bastante?
Rodrigo Paiva: O nível na semana passada já tinha ficado até abaixo da cota de inundação. As pessoas estavam até comemorando. Eu e meus colegas já tínhamos observado nas nossas previsões que, no final de semana, a gente ia ter um vento norte, que reduziu ainda mais o nível, só que, de domingo pra segunda, teve vento sul forte. Então, ele subiu de novo 40 cm, fez inundar novamente ali a região do Cais e, em algumas regiões, ali perto do Praia de Belas, houve esse retorno da água pelos bueiros.
De novo porque estava provavelmente entupido com lama, com lixo.
Walter Collischonn: Essas subidas e descidas do Guaíba em função das condições meteorológicas do vento, pressão atmosférica, etc., elas acontecem normalmente. A gente não percebe elas porque ele tá lá baixinho, e a gente não dá bola para elas. Quando ele está alto que a gente fica de olho. Mas isso acontece quando o rio está baixo também, esse efeito do nível subir, nível diminuir, conforme a direção e a intensidade do vento, isso acontece continuamente. A gente pode observar isso nos registros históricos, a gente observa esse comportamento. Só quando a gente está com a água pelo pescoço, a gente começa a ficar mais atento para isso, começa a observar isso. Cada repique do Guaíba em função do vento, a gente já tinha um sobressalto.
E agora, nos próximos dias e semanas, estamos saindo desse evento? Tem previsão de novos ventos e chuvas que podem voltar a elevar o nível da água e causar novas inundações? Ou pelo menos por enquanto vai dar uma trégua?
Rodrigo Paiva: A nossa previsão de hoje, pela primeira vez, foi mais otimista. A gente não espera chuvas em um grande volume nos próximos 10 dias. Além disso, o nível do Guaíba hoje já estava um pouco abaixo da cota de inundação e a tendência é ele ir reduzindo até que, ao longo da semana, fique até abaixo da cota de alerta, que é de 3m15 nessa nova régua do Gasômetro. Aí sim, daria para gente ficar um pouco mais descansado.
Mas, existem coisas que a gente deve fazer imediatamente. Por exemplo, continuar cuidando da população afetada, todo o processo da limpeza das áreas afetadas, mas principalmente a recomposição desses sistemas de proteção contra as enchentes, tanto em Porto Alegre, como nas cidades da região metropolitana. Por quê? Não existe nenhuma garantia de que a gente não tenha uma nova cheia grande nos próximos meses. É como quando a gente fura o pneu do carro. Não furamos o pneu todo dia, acho que eu furei umas três vezes na vida, mas, sempre que fura, a gente troca o pneu, coloca o estepe e, no mesmo dia ou no máximo no dia seguinte, vamos na borracharia consertar para ficar preparado, porque pode vir a furar o pneu de novo no dia seguinte. Não há nenhuma garantia.
Como o professor Rodrigo acabou de falar, a gente não tem nenhuma garantia que um evento como esse não vai acontecer de novo. Mas, com relação ao El Niño, isso vai se arrefecer ou ainda vamos continuar num cenário em que é possível termos novas chuvas extremas, com a mesma ou menor intensidade, para esse ano?
Walter Collischonn: O El Niño, aparentemente, está enfraquecendo e pode se transformar numa La Niña, um esfriamento da temperatura do Oceano Pacífico na região Tropical, mas a gente tem ainda outras condições que geram uma preocupação. A temperatura do Oceano Atlântico ainda é muito alta, a gente tem uma temperatura média global mais alta do que os próprios modelos de mudança climática projetariam para essa época, pros anos atuais. Então, a gente tem uma condição que gera preocupação. A gente olha na previsão do tempo, estamos em junho, olhamos 10 dias à frente e não tem uma temperatura baixa realmente aqui em Porto Alegre. Parece que a gente tá vivendo um inverno muito ameno. Isso é motivo de preocupação em termos de extremos hidrológicos de chuva. Por um lado, a transformação em La Niña pode gerar um certo alívio. Por outro lado, essas outras questões aí nos mantêm ainda muito preocupados.
Num prazo mais longo, a gente tem que manter ainda essa preocupação. Por quê? Estamos finalizando um projeto de pesquisa agora, até coordenado pelo professor Rodrigo, em que a gente analisou quais seriam os possíveis impactos das mudanças climáticas globais sobre eventos extremos hidrológicos, secas e cheias, em todo o Brasil. É um projeto em conjunto com a Agência Nacional de Águas, existe um sinal mais ou menos claro de que, na região sul, a gente vai ter um aumento consistente das cheias ao longo do século XXI. Então, tanto do ponto de vista do curto ou médio prazo, a gente tem que manter a atenção. E, principalmente, num ponto de vista de mais longo prazo, a gente tem que se prevenir e realmente não dá para acreditar que coisas como essa não vão mais acontecer.
Pois é, muito se fala que a última vez que tivemos uma chuva parecida foi em 1941, o que é um fato. Mas algumas pessoas já levam para o lado de vai levar 80 anos para acontecer de novo. Não dá para pensar assim, não é?
Rodrigo Paiva: Não existe nenhuma justificativa física de que esses eventos vão seguir um período exato de 80 em 80 anos.
Walter Collischonn: Pode acontecer no dia de amanhã.
Rodrigo Paiva: Inclusive, é o contrário. As evidências, tanto de outros estudos ou se a gente olhar a série histórica do próprio Guaíba, percebemos o seguinte: no início do século passado até os anos 20, mais ou menos, a gente até que teve poucas cheias; nos anos 20, 30, 40, 50 e 60, tivemos mais cheias, mais fortes, inclusive a cheia de 41, que era a maior de todas. Talvez foi por isso que a geração anterior decidiu por construir um sistema de proteção para Porto Alegre. Mas, a partir da década de 70, a gente passou por 70, 80 e 90, um período com menos cheias. Até em uma apresentação que eu fiz, chamei esse período ali de período do esquecimento do problema. A gente vai esquecendo que existe essa cheia. A partir dos anos 2000, foi aumentando de novo, especialmente na última década, começando em 2015. A média dos níveis do Guaíba se elevaram muito. Então, só de olhar aquele gráfico a gente já fica assustado. ‘Olha, tá subindo’. Se a gente somar isso a esses estudos que o Walter comentou, mostra claramente que é no sul do Brasil em que há a maior preocupação sobre o aumento da magnitude e frequência dessas cheias.
E por que é no sul do Brasil?
Walter Collischonn: Isso é uma questão climática. O fluxo de ar úmido parece que vai se intensificar para a nossa região. E uma questão de circulação atmosférica mesmo vai intensificar as chuvas aqui e não em outros lugares. Por exemplo, para boa parte do centro do Brasil as projeções são inversas. Na verdade, muitos grandes rios tendem até a diminuir ao longo do século XXI. Mas, aqui no sul, uma região que vai desde o limite entre Paraná e São Paulo até o Uruguai, incluindo todo o Uruguai, é uma região em que a gente tem uma projeção consistente. Com consistente, eu quero dizer: se eu pegar o modelo dos chineses, o modelo dos japoneses, o modelo americano, canadense e inglês, eles todos tendem a concordar que é esse sinal, é isso que vai acontecer. Existem regiões em que a gente não tem essa coerência do sinal, cada projeção indica uma direção diferente. Mas, na região sul do Brasil existe uma coerência muito grande e isso nos traz preocupação. Onde tem muita coerência realmente é possível que isso venha a se concretizar.
E já está se concretizando de alguma forma.
Walter Collischonn: Aparentemente, sim. O que o Rodrigo falou sobre as décadas do esquecimento é fundamental. A gente tem motivos para esquecer as coisas. Nós, seres humanos, na verdade, evoluímos para esquecer coisas dolorosas. Nos faz bem esquecer coisas dolorosas, não é bom ficar relembrando coisas ruins. Só que quando a gente trabalha com a gestão no sistema de proteção de cheias, a gente não pode esquecer as coisas dolorosas que aconteceram no passado. E isso é uma coisa que aparentemente aconteceu em Porto Alegre. A gente não só não viu mais cheias acontecendo ao longo da década de 70, 80 e 90, como a gente passou a acreditar que todo aquele sistema que foi projetado em função das cheias das décadas anteriores não tinha utilidade, não tinha serventia, começou a se questionar a utilidade disso e se falava abertamente em retirar todo o sistema, inutilizar ele, derrubar o muro. Usar alternativas simplificadas, talvez mais frágeis ou mais sujeitas ao erro. E não era um pensamento justificado do ponto de vista racional. Do ponto de vista funcional, a gente sabe que o que aconteceu em 41, podia acontecer de novo. Nenhum fator havia mudado o suficiente para a gente acreditar que uma cheia como a de 41 não ia acontecer mais.
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‘Sem justificativa racional, esquecemos que novas cheias poderiam acontecer’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU