29 Mai 2024
"Os rios, as águas, as matas, as chuvas, as montanhas são entidades vivas que integram desde sempre o nosso mundo da vida. Viver a vida como se eles não existissem e dialogassem conosco pode ser uma vida vivida de modo mitigado. Desse modo, é de causar revolta as imposturas de políticos e tantos outros que ocupam espaços de comunicação nesse momento de dor para reforçar seu negacionismo afirmando que foi uma causalidade natural e que nada podia ter sido feito", escreve Vilmar Alves Pereira, filósofo ambiental, pós-doutor em Educação (UFRGS), bolsista de produtividade do CNPq, pesquisador na Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEDU-UNEMAT), em artigo enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Faltam palavras mesmo para quem vivencia este campo de investigação cotidianamente diante de tamanha expressão causada pelo impacto de proporções imensuráveis na vida de milhares de sul-rio-grandenses frente ao tamanho e extremo evento climático. Confesso que a primeira condição diante do enorme abalo é a inanição sobre qual é o alcance disso tudo que chega com tamanha força. Junto a inanição emergem sentimentos de medo, angustia, dor, solidariedade e empatia.
Buscando a compreensão hermenêutica e sentido volto meu olhar a tudo o que já havíamos compreendido sobre um paradigma civilizatório marcado por profundas patologias socioambientais. As anomalias do referido paradigma a todo instante podem ser percebidas no planeta todo dada à permanentes ocorrências de eventos extremos. A pandemia da Covid19 foi mais uma expressão de um contexto patológico onde ficou comprovado que os mais vulneráveis no planeta pagaram um preço mais alto do que aqueles que possuem maior poder aquisitivo. É o que denunciamos por este espaço (IHU) como injustiças socioambientais. Elas demonstram que mesmo em estado de colapsia em plena pandemia a ação humana em especial no contexto do governo Bolsonaro continuou aprovando e liberando leis que reforçam relações de domínio da natureza e de sua exploração desmedida. Identificamos nesse contexto a presença de ontologias opressoras que não sabem lidar bem com as potencialidades vitais e se configuram em modos de ser orientados por práticas necrófilas.
Foram inúmeras alternativas e concepções reforçadas mediante ao contexto de existências ameaçadas, em risco e muitas ceifadas. Muitos pensadores escreveram que após a pandemia as aprendizagens deveriam apontar para perspectivas de reaprendizagens, redescrições e redefinição ontológica. Na raiz desses movimentos avaliativos está uma busca de sentido sobre o modo como vivemos e nos relacionamos com as demais outridades ambientais.
Faz um bom tempo que leituras do campo da filosofia, em especial da hermenêutica filosófica reconhecem que o sentido de diálogo vai muito além da verbalização da palavra. O horizonte de linguagem compreende que somente na e pela linguagem é que nós humanos podemos ser compreendidos. Fora da linguagem segundo Gadamer não somos reconhecidos. Essa compreensão nos reporta a inúmeros eventos históricos onde a capacidade dialógica permitiu a emergência compreensiva de outras escutatórias. No campo dos fundamentos da Educação Ambiental há estudos sérios que reconhecem que a outridade natureza sempre reage e tem algo a nos dizer. É mediante esse amplo conjunto que busco compreender o que a natureza está denunciando, reivindicando com tamanha força e voracidade. E aqui não se trata de culpar a natureza como fazem os negacionistas climáticos que transferem as responsabilidades dos humanos para a natureza buscando encobrir as nossas responsabilidades na relação humanidade-natureza.
A cultura ocidental em diferentes momentos históricos aponta para o distanciamento e a cisão humanidade-natureza. Desde a emergência do pensamento filosófico percebe-se a emergência de uma racionalidade antropocena que aproximada da racionalidade instrumental e associada ao modo de produção capitalista reforça a ideia de domínio da natureza pelos humanos cujo fim maior está associado ao aumento do lucro e do poder. Os pensadores da Escola de Frankfurt perceberam essa cisão e o desencanto com uma racionalidade que ao buscar objetificar as demais naturezas acaba por converter o próprio sujeito “racional” em objeto. A isso os teóricos chama de aporia, uma espécie de “beco sem saída”. Nos encontramos no extremo sul do Brasil e novamente, numa aporia ou talvez numa nova encruzilhada como nos ensina Antônio Bispo.
Desse modo, longe de ser uma ação isolada, se buscarmos ampliar a sintonia vamos perceber que a natureza está reagindo aos modos de existência dos humanos. Assim na tragédia ela afirma e reafirma vários diálogos:
Os rios, as águas, as matas, as chuvas, as montanhas são entidades vivas que integram desde sempre o nosso mundo da vida. Viver a vida como se eles não existissem e dialogassem conosco pode ser uma vida vivida de modo mitigado. Desse modo, é de causar revolta as imposturas de políticos e tantos outros que ocupam espaços de comunicação nesse momento de dor para reforçar seu negacionismo afirmando que foi uma causalidade natural e que nada podia ter sido feito.
Longe de reconhecer o que a natureza está a nos dizer, o convite desse artigo é também reconhecer experiências que já demonstram essa indissociabilidade humanidade-natureza e, a maioria delas tenho aprendido no contexto com os povos tradicionais indígenas, quilombolas e com os povos de religião de matriz africana. Ali as outridades ambientais e as potências da vida assumem um grande sentido no cotidiano existencial em permanente diálogo. São cosmovivências mais inteiras e não assimetria por que há reconhecimento e respeito entre as partes.
ALVES PEREIRA, V. Outridades ambientais: contribuições ontológicas aos fundamentos da educação ambiental. Perseitas, v. 10, p. 449–470, 2022. DOI: Disponível aqui.
GADAMER H-G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flavia Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002.
PEREIRA, V.A. ZITKOSKI, J. J. Racionalidade antropocena e educação ambiental. Praxis & Saber, 15(41), e15810. p. 1-15. Disponível aqui.
PEREIRA, V.A. Injustiças socioambientais na travessia do ano de 2020 para 2021. IHU, São Leopoldo, 6 de janeiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em 20/05/2024
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A natureza dialoga conosco o tempo todo: o que ela está nos dizendo na Tragédia Ambiental do Rio Grande do Sul. Artigo de Vilmar Alves Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU