17 Mai 2024
Modeste Hêdji, seminarista do Benin reabriu o debate com o lançamento de “Jusqu’aux enfers...” [Rumo ao submundo...], uma peça teatral que revisita a questão da relação do cristão africano com sua cultura.
A reportagem é de Juste Hlannon, publicada em La Croix International, 13-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A peça começa com uma cena tensa no dia 13 de abril em Cotonou. Um casal de católicos fervorosos observa Marie-Lux, sua filha de 15 anos, “muito inteligente, mas ingênua”, desmaiar. Nem a unidade de terapia intensiva do hospital universitário nem uma cirurgia conseguem reanimá-la depois de ela ter sido atropelada por um motorista bêbado.
Encurralado, Dossou, o pai da família, vai ao seu vilarejo natal buscar uma receita medicinal. “Será que a nossa fé [cristã] realmente nos permite usar a cultura como pretexto para nos envolvermos com tais práticas? Como podemos confiar em uma cultura envolta e rodeada de práticas e cerimônias bizarras e enigmáticas? Como podemos ainda valorizar uma cultura com aspectos obscuros quando abraçamos o cristianismo?”, pondera Dossou ao fazer essas perguntas.
É por meio do patriarca octogenário, cristão, mas “muito investido em sua cultura”, que o autor da peça, Modeste Hêdji, seminarista do primeiro ano de teologia, oferece sua resposta ao debate: “Apresentar cada uma das nossas realidades culturais ao discernimento iluminado pela fé, mas também pela razão, para distinguir o joio do trigo”.
A fé cristã não se opõe às culturas africanas
De acordo com Dédjinnaki Romain Hounzandji, professor e pesquisador de Estudos Teatrais na Universidade de Abomey-Calavi e autor do prefácio da peça, “o drama do intelectual complexo é agravado pela questão sobre se uma pessoa africana completamente ligada à sua herança cultural ainda pode entrar em diálogo plenamente com sua fé cristã”. Um personagem da peça deixa isso explícito ao afirmar: “A nossa fé cristã não se opõe às nossas culturas africanas. Pelo contrário, ela as assume, purificando-as e elevando-as”.
Como é que um seminarista, envolvido em uma rigorosa formação teológica, consegue produzir uma obra que lhe valeu, nas palavras de Hounzandji, o reconhecimento como “um broto cheio de promessas na arena teatral beninense”?
“A arte do palco moldou-me desde cedo”, recordou nostalgicamente Hêdji, que, com apenas oito anos de idade, participou no festival de teatro “Meeting on All Terrain”. Essa tentativa inicial, explicou, “foi o início de uma longa e enriquecedora aventura que me impulsionou por vários palcos”.
Nunca abandonando o teatro, os livros e o cinema, ele optou por escrever e publicar “To the Underworld” como seu primeiro roteiro.
“Nossa cultura desceu aos submundos aguardando sua redenção”
Por que esse título? O submundo – que não deve ser confundido com o inferno – refere-se à morada dos mortos, o local de espera das almas dos falecidos na cultura judaico-cristã. Também se diz no Credo que Cristo desceu ao submundo – a morada dos mortos – antes de sua ressurreição.
Segundo Hêdji, “a condição do submundo espelha a crise de identidade do ser africano na encruzilhada do confronto entre cultura e fé, africanismo e ocidentalidade, particularismo e globalização”.
Nesse contexto, coexistem duas visões: enquanto uma certa corrente afro-pessimista anuncia o previsível desaparecimento da cultura africana em favor da cultura ocidental, outros observam o ressurgimento de um orgulho pan-africano que se baseia sistematicamente na cultura africana.
Hêdji afirma estar entre aqueles que acreditam em uma “Renascença Africana”. Mas como isso pode acontecer? “O africano será o principal protagonista desse trabalho ‘soteriológico’”, disse Hêdji. Seu sonho é o de “um pan-africanismo mais lúcido”, em uma África que “ouse ser ela mesma, por si mesma e para si mesma, em uma África responsável que saiba também abrir-se aos outros”.
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