11 Mai 2024
Um parentesco multiespécie se realiza e deve ocorrer paralelamente à transformação queer do conceito de parentesco, abrangendo a multiparentalidade e formas de cuidado que superem os laços de sangue e os limites legais de reconhecimento existentes hoje.
O comentário é de Andrea Natan Feltrin, ecologista e filósofo italiano. O artigo foi publicado em Rewriters, 29-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como construir famílias, redes e tramas queer no Antropo-Capitaloceno? Uma formulação intrigante emerge das páginas de “Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene” (2016), traduzido para o italiano com o título bastante desviante de “Chthulucene. Sopravvivere su un pianeta infetto” (2019) [a tradução brasileira é maiks fiel ao original, intitulada “Ficar com o problema: fazer parentes no Chthluceno”, N-1 Edições, 2023].
Esta tradução [italiana], infelizmente, deixa nas sombras a ideia de making kin [fazer parentes] nas ruínas do presente, ou seja, a sugestão de criar parentescos pós-humanos para a regeneração do planeta no pós-Antropoceno e no pós-Capitaloceno.
No panorama intelectual contemporâneo, poucas autoras tiveram um impacto tão profundo e transformador quanto Donna Haraway, cuja reflexão crítica sobre as relações entre animais humanos, animais não humanos e ambiente lançou as bases para um novo paradigma de pensamento.
Em seu ensaio de 2016, Haraway introduz um conceito revolucionário: “Children of Compost” ou “filhas e filhos do composto”, “crias do composto”.
Mas, primeiro, uma premissa…
Essa ideia está inserida no contexto do Chthuluceno, conceito com o qual a filósofa propõe uma alternativa ao Antropo-Capitaloceno como horizonte de mundo. A intenção é de restaurar a agência aos não humanos e à comunidade multiespécie, da qual a humanidade é apenas um fragmento. De fato, o Chthuluceno refere-se a criaturas ctônicas, entidades terrestres com as quais devemos urgentemente aprender a coabitar. Tudo isso para enfatizar uma visão mais interconectada e menos antropocêntrica da história terrestre.
O Chthuluceno, termo cunhado por Haraway, é uma era em que os humanos não dominam a comunidade multiespécie, mas fazem parte dela, interagindo em uma complexa trama de relações com outras formas de vida. Trata-se de um período caracterizado pela necessidade de cooperação mútua entre diversas espécies para enfrentar as crises ambientais globais que afligem a biosfera.
Nesse contexto desejável, as “filhas e filhos do composto” emergem como uma metáfora poderosa: uma nova descendência humana e não humana que ganha impulso a partir de uma visão interespécies do mundo.
As “filhas e filhos do composto” representam uma concepção radicalmente diferente da descendência, que se distancia da genealogia linear tradicional para abraçar a complexidade das redes ecológicas. Não são definidos pelas categorias tradicionais de parentesco, mas sim pela sua participação ativa em redes intrincadas e simbióticas em constante mutação e abertura ao outro.
Assim como o composto, no qual diversas formas de vida se degradam e se recompõem, criando algo novo e vital, as “filhas e filhos do composto” encarnam uma visão de continuidade não linear, mas circular e interconectada.
As características fundamentais das “filhas e filhos do composto” refletem sua natureza multiespécie e pós-humana. Acima de tudo, enfatizam a interconectividade e a dependência mútua entre diversas espécies, reconhecendo que a sobrevivência e o bem-estar de uma espécie estão intrinsecamente ligados aos das outras.
Essa consciência leva a uma responsabilidade multiespécie, um compromisso compartilhado pelo bem-estar de todo o ecossistema. As “filhas e filhos do composto” distanciam-se da centralidade do humano na narrativa ecológica, promovendo uma ética que valoriza todas as formas de vida e reconhece sua semelhança e comunhão substanciais.
Ao contrário da narrativa hegemônica de dominação e exploração da natureza, as “filhas e filhos do composto” simbolizam a possibilidade de um futuro em que os humanos trabalham junto com outras espécies pelo benefício mútuo. Essa perspectiva encoraja uma ética do fazer e do tornar-se, uma prática contínua de criação e renovação que contrasta com a estagnação ou o fatalismo.
Para ir além do Antropo-Capitaloceno, o fatalismo e o tecno-otimismo não são opções viáveis.
A ideia bastante especulativa das “filhas e filhos do composto” assume conotações muito mais materiais e estimulantes por meio do storytelling nas “Camille Stories” [Histórias de Camille], uma série de narrativas de ficção científica que exploram laços afetivos e responsáveis entre espécies diferentes.
As Camilles, simbiontes humano-insetos, emergem como resposta às crises ambientais, representando uma tentativa de reformular e reorganizar as relações interespécies. Nessas histórias, Haraway desafia e amplia as noções convencionais de identidade, incluindo gênero e espécie, enfatizando a fluidez e o devir contínuo, em vez do ser fixo ou estável.
No início do século XXI, as condições para os seres vivos na Terra estavam longe de ser favoráveis. A população humana era excessiva, e as outras formas de vida estavam em rápido declínio. Nesse contexto, surgiram pequenas comunidades que se autodefiniam como “filhas e filhos do composto”.
Essas comunidades nasciam em áreas devastadas, arruinadas pela industrialização e pelo capitalismo dos dois séculos anteriores. Esses indivíduos, profundamente ligados à Terra e a seus habitantes, humanos ou não, propunham-se para restaurar estes ambientes degradados. Acreditavam que era essencial para a cura do planeta reduzir o número de seres humanos e aumentar o número de seres não humanos.
Os recém-nascidos eram eventos raros e preciosos dentro das comunidades do composto. A decisão de dar vida a um novo ser humano era coletiva, envolvendo toda a comunidade na educação da criança. As famílias eram constituídas por múltiplos genitores de todos os gêneros, orientações sexuais e vínculos afetivos.
As pessoas grávidas escolhiam um animal simbionte pertencente a uma espécie ameaçada de extinção, com o qual sua cria formaria um vínculo. À medida que cresciam, as crianças contribuíam para a sobrevivência de sua espécie simbionte, aprendendo sobre ela e sobre as dinâmicas ecológicas vitais para sua existência.
Esse vínculo único influenciava até cinco gerações humanas, dando origem à saga das gerações das Camilles na Virgínia Ocidental, uma área devastada pela atividade de mineração de carvão. Apesar da degradação ambiental, essa região continuava sendo crucial para a migração anual das borboletas-monarca.
Em 2025, nasceu a primeira Camille, cujo vínculo escolhido foi com a borboleta-monarca. Camille e as gerações posteriores dedicaram-se a compreender e a sustentar a sobrevivência dessa espécie. Com o passar das gerações, os laços interespécies cresciam em profundidade e complexidade.
O mundo em que vivia a primeira Camille era marcado por extinções em massa, violentas mudanças climáticas e conflitos. Outras crianças, nascidas no mesmo período que ela, estavam ligadas a espécies diferentes como enguias, falcões, camarões e salamandras. Camille e sua amiga Kess, ligada a um falcão, compartilhavam um vínculo especial, já que os falcões se alimentavam das borboletas-monarcas.
Com o passar dos anos, Camille aprofundou sua compreensão e conexão com o mundo natural, estudando com as comunidades dos nativos americanos, preparando-se para transmitir seu saber para a próxima Camille.
A segunda Camille, nascida em 2085, deu continuidade à obra iniciada, viajando ao México para aprofundar seu conhecimento sobre as borboletas-monarcas, estudando com grupos de mulheres revolucionárias e participando de tradições locais como o Dia de los Muertos, que lhe revelou uma nova dimensão espiritual das borboletas-monarcas como almas dos defuntos.
Com o nascimento da terceira Camille em 2170, o mundo já tinha sofrido perdas devastadoras, mas a humanidade estava começando a diminuir, dando lugar para espécies vulneráveis como as borboletas-monarcas.
A quarta Camille, nascida em 2255, encontrou-se diante da dolorosa realidade da extinção iminente das borboletas-monarcas, preparando a quinta Camille para um papel único como Porta-voz dos Mortos, para preservar a memória das espécies extintas e de suas histórias, enfatizando a importância de não esquecer as lições ensinadas pela natureza.
Por meio dessas narrativas, Haraway explora a fluidez de gênero e a queeridade, além de desconstruir as categorias tradicionais de gênero e espécie, promovendo uma ética do vínculo que transcende as definições biológicas e legais.
Além disso, conceitos como o poliamor e a ecossexualidade reconsideram radicalmente o parentesco e o vínculo não normativo, propondo um modelo de relações baseado em intimidades múltiplas, consenso e interdependência ecológica, enfatizando uma abordagem inclusiva e responsável em relação à biosfera.
Com isso, quero dizer que conceber um parentesco multiespécie se realiza e deve ocorrer paralelamente à transformação queer do conceito de parentesco, abrangendo a multiparentalidade e formas de cuidado que superem os laços de sangue e os limites legais de reconhecimento existentes no momento da redação desta reflexão.
Além de recomendar o texto de Haraway, convido você a assistir a este vídeo do maravilhoso canal filosófico Just Wondering…