07 Mai 2024
Ensaísta, sociólogo e professor universitário, Eduardo Grüner é autor dos livros Un género culpable, Las formas de la espada, El fin de las pequeñas historias, La oscuridad y las luces e uma grande antologia: Lo sólido en el aire: El eterno retorno de la crítica marxista, entre outros. Participou de revistas como Sitio, Cinégrafo, Conjetural, Confines, El cielo por asalto e El Rodaballo, e sua obra foi reconhecida por diversas instituições.
Além disso, participou da Assembleia de Intelectuais em apoio à Frente de Esquerda e dos Trabalhadores. Seu novo livro, La tentación del desastre, publicado por Red Editorial - acompanhado de um posfácio de Celeste Medrano -, apresenta uma série de debates a partir de autores da antropologia singulares e “heterodoxos”, do século passado, em uma reflexão teórica e política que nos convida a pensar a situação/tentação do desastre atual, produzida pelo capitalismo, tão mundializado quanto autodestrutivo e sem freios à vista.
A entrevista é de Demian Paredes, publicada por Página/12, 28-04-2024. A tradução é do Cepat.
Como surge a ideia de ‘La tentación del desastre’? Pode-se dizer que pretende revisar e debater – incluindo Freud – autores da antropologia e da “etnografia crítica”, para pensar temas como “a origem”, a cultura e o mito, “o Outro” e “a alteridade”?
Sim, claro, tem tudo isso, que são problemas intermináveis e provavelmente insolúveis. O que se chama o outro, a alteridade, a diferença etc. são significantes que hoje estão na moda, por assim dizer, e sobre os quais parece que tudo está dito. No entanto, basta arranhar um pouco que saltam as perguntas: o que é, realmente, uma diferença? Quem é, realmente, o “outro”?
Estas são questões que traçam uma fronteira instável, turva, entre a antropologia e a filosofia. Quero dizer que os antropólogos, quando levam estas questões a sério, precipitam-se na filosofia, sem desejar ou sem saber. Ora, dado o tempo que nos cabe viver, interessava-me abordar não apenas os antropólogos que fazem filosofia em geral, mas também os que fazem, para falar rápido, uma filosofia apocalíptica.
Ou seja, que explícita ou implicitamente contemplam a hipótese do fim da humanidade, ou ao menos do fim da cultura e da sociedade tal como as conhecemos, e para a qual, portanto, humanidade, cultura, sociedade e história estão em situação de emergência, atravessadas por um conflito permanente e insolúvel, que pode ser chamado de trágico.
Como eu te dizia, alguns são mais explícitos. É o caso do italiano Ernesto de Martino, cuja monumental e inconclusa obra póstuma se intitula, justamente, La fine del mondo. Ou é o caso de Lévi-Strauss, que em seu debate com Sartre (no final de O Pensamento Selvagem) formula sua tão difamada tese sobre a dissolução do Homem na química de suas circunvoluções cerebrais, ou algo assim, dando o pontapé inicial para o debate muito francês sobre o “anti-humanismo teórico”, no qual intervirão Lacan, Foucault, Althusser e todo o chamado pós-estruturalismo.
Mais poético ou metafórico é Michel Leiris, mais iracundo e frontal é o quase anarquista Pierre Clastres, mais “objetivista” é Oscar Lewis, e assim por diante. E me ocorreu incluir ao Freud “antropólogo”, o de Totem e Tabu e O mal-estar na cultura, que à sua maneira também aborda esse conflito trágico.
Por outro lado, com a óbvia exceção dos já clássicos Freud e Lévi-Strauss, os outros autores têm pouca ou nula presença em nossas bibliografias acadêmicas (pensando bem, Freud também não tem fora dos cursos de psicologia) e me pareceu que caia bem “resgatá-los”, como se diz torpemente.
Qual seria a relação entre antropologia e política via o deslocamento pela filosofia, como o senhor propõe agora e no livro, nos aspectos mais contemporâneos como o urbano, o migratório, o midiático?
Parece-me que não se pode supor uma relação genérica ou recorrente entre antropologia e política. Cada época, cada sociedade, cada coletivo social constrói a sua, sem saber, enquanto as políticas unem de várias formas o que se costuma chamar de “laço social”. Contudo, pode acontecer que certas problemáticas, sem se repetirem, persistam. É claro que a localização dessa persistência é uma função singular da leitura que se faz.
Os autores que abordo no livro não são exatamente contemporâneos: suas obras são anteriores ao celular e às redes sociais. O que os torna estranhamente atuais é a leitura que fazemos hoje, quando o sistema fechado, claustrofóbico, do Capital mundializado tornou perfeitamente plausível a extinção da humanidade ou ao menos a queda na barbárie.
Não digo retorno à barbárie, porque sempre, desde que a humanidade existe, houve algum tipo de “civilização” que não pode ser julgada apenas pelos parâmetros ocidentais e europeus. Sendo assim, hoje, não se trata de “recair” em nada, mas do perigo de cair no vazio definitivo. Não vamos fazer a longa lista que todos conhecemos: a destruição da natureza, as guerras “inventadas” de todos os lados, as formas de superexploração, os imigrantes afogados aos milhares no Mediterrâneo, as pestes, o aumento brutal da distância entre riqueza e pobreza, as novas formas de racismo, o sexismo, o classismo, o crescimento dos neofascismos, e a lista segue.
É verdade que Borges disse que todos os tempos foram maus para os homens e mulheres queo viveram. Contudo, dá a impressão de que estes tempos não são apenas maus, mas são os tempos do Mal como tal. E nem tudo é por mera contingência. Quando se diz que “o mundo está louco”, é preciso entender que, como diria um personagem de Hamlet, há método nessa loucura.
Esse método é a lógica desse Capital mundializado que mencionávamos, que consiste na reprodução ad infinitum de si mesmo, custe o que custar, incluindo a reprodução cada vez mais ampliada de suas células cancerígenas, até o ponto da autodestruição, o que significa, claro, a destruição de todos e todas nós que vivemos forçosamente dentro do Capital, posto que hoje não existe um fora.
Não é irresponsabilidade, nem inconsciência: como reza uma frase famosa: “eles sabem muito bem o que fazem, mas mesmo assim o fazem”. Assim como o doutor Frankenstein, não podem deter o monstro que criaram. Tudo isto é, como dizíamos, o que torna os nossos autores surpreendentemente atuais: considerar a possibilidade do fim do mundo humano não é mais uma alegoria ou metáfora.
A relação entre antropologia e política, nessas condições, abre a questão dramática e urgente de que um “laço social” novo e radicalmente diferente pode ajudar a evitar a tentação do desastre. Pode ser que já seja tarde, que não tenhamos mais tempo. No entanto, isso não pode ser uma desculpa para ignorarmos a obrigação de tentar, interrogando criticamente a realidade, assim como fazem os autores de sempre.
Como o senhor vê a situação política atual, pensando no fenômeno do governo nacional “liberal” [de Javier Milei], que também se afirma libertário? Com seu livro, surge a proposta ou a possibilidade de um “humanismo crítico” para se opor a ele?
Com todos os traços históricos e socialmente particulares correspondentes, a nossa situação nacional está marcada pelo contexto global que descrevíamos, e talvez agravada por um funcionamento do Capital particularmente brutal, como muitas vezes costuma acontecer nas sociedades mal denominadas “periféricas”. O que se vê hoje em nosso país é uma degradação extrema, uma verdadeira decomposição social, cultural e política.
Existe, é claro, o crescimento exponencial da pobreza, da indigência, do desemprego. Mas, também existe o crescimento da ignorância, da hostilidade cotidiana, da indiferença, da “guerra de todos contra todos”. Parece que estamos diante de uma crise quase terminal da nossa cultura (novamente apelo à pertinência de nossos autores), sem que apareça um projeto alternativo, ao menos que chegue às massas populares.
Para retomar a tão utilizada ideia de Gramsci, é no vazio entre o que não acaba de morrer e o que não decide nascer que aparecem os piores monstros. O “humanismo crítico”, se tal coisa existe, começa por tomar nota da catástrofe. E quero ser claro sobre isto: como me aborreço com o politicamente correto e desconfio do progressismo conformista, não penso em desculpar e nem em “compreender” aqueles que votaram no que votaram: também sabiam o que faziam, e mesmo assim o fizeram. No melhor dos casos, são o sintoma patológico da decomposição que mencionávamos.
O senhor tem um diagnóstico ou uma definição para caracterizar a conjuntura?
Fala-se de “neoliberalismo”, de “fascismo”, de um capitalismo da “crueldade” etc. Depois de muito debater a questão com amigos e amigas, decido-me por uma categoria de um de meus autores: o Sinistro, tradução muito imperfeita do conceito Unheimliche de Freud, que entre outras coisas acena àquilo que é “familiar”, naturalizado e normalizado que, de repente, ainda assim, torna-se ao mesmo tempo horroroso, ominoso, ameaçador. Foi nisso que a nossa democracia se transformou.
Não estou falando de uma generalidade, ainda que, por certo, o resto do mundo ocidental não esteja melhor, mas da nossa, a que recuperamos em 1984. Uma data simbólica, quando nos lembrarmos de Orwell!: aquela que, felizmente, e devido à luta de muitas pessoas, recuperamos nessa data, mas que já nesta data alguns a chamaram de “democracia da derrota”, referindo-se não só às Malvinas, mas à derrota dos projetos emancipatórios. E agora sabemos por que foi chamada assim. E agora também sabemos o porquê, já naquela época, León Rozitchner nos advertia que embora tivéssemos nos livrado de uma ditadura genocida, seria muito mais difícil nos desprendermos do Terror que continua habitando nossos corpos.
Por último, peço-lhe uma avaliação e uma menção a Noé Jitrik, a quem o senhor dedicou este livro, em sua memória.
Acabei de citar Rozitchner, agora poderia citar Ramón Alcalde e, claro, Noé Jitrik, que morreu quando eu estava no processo de elaboração deste livro, daí a dedicatória. Foram mestres (coincidentemente todos pertencentes ao mítico grupo Contorno) que, para minha imensa sorte, tornaram-se meus amigos. Há outros com quem, felizmente, posso continuar dialogando hoje.
Noé foi um erudito e pensador crítico que praticou quase todos os gêneros literários existentes, foi narrador, poeta, ensaísta e - algo que eu o invejava - um conversador extraordinário, caloroso, entusiasta e inteligente, que nunca perdia o humor e com quem teria adorado discutir este livro. Minha carinhosa lembrança vai para ele nestes tempos nebulosos,assim como um abraço para a sua companheira de vida, Tununa Mercado.
A maior parte da antropologia, e em geral das ciências “humanas”, nem sempre esteve atenta a esta tentação da catástrofe cotidiana, próxima, que nos assalta sem cessar, e cada vez mais, no mundo presente. O mesmo pode ser dito das filosofias pós-estruturalistas, ou do pensamento pós-colonial (decolonial ou descolonial, como é chamado entre nós): seus desenvolvimentos teóricos são, certamente, irrenunciáveis, mas, muitas vezes, neles a famosa “Alteridade” é uma espécie de abstração exótica, boa para pensar criticamente, mas menos para tocar, cheirar, degustar.
Pasolini, que mencionamos algumas vezes de passagem, fez melhor antropologia, ou “decolonialidade”, quando argumentou que (o que então se chamava) o Terceiro Mundo começava nos arredores de Roma, nos borgate subproletários da grande capital. Se não significasse um excesso de ambição, que nos teria levado longe demais neste texto, poderíamos perfeitamente tê-lo incluído como um antropólogo apocalíptico. Poucos intelectuais do século XX mergulharam tão profundamente (a partir da poesia, da narrativa, do cinema, da dramaturgia, da ensaística, da teoria semiótica), já no início dos anos 1960, na gigantesca crise da presença em que o mundo estava entrando: um mundo do qual se pode dizer, em certo sentido, que todo ele era “terceiro”.
Não é necessário destacar que, desde então, o estado de emergência se tornou o nosso modo de ser “sinistro-familiar”. Nos anos 1960, ao menos eclodia um imaginário de revolução global que colocava em xeque o que o próprio Pasolini questionava como o grande genocídio cultural empreendido pelo neocapitalismo. Hoje, sem menosprezar aqueles, às vezes, heroicos focos localizados de resistência que florescem por todos os lados, os povos não parecem estar em condições de gerar uma nova “primavera” mundializada. O que o horizonte imediato oferece, ao contrário, é um estampido de crise permanente, de degradação abjeta da cultura, da linguagem, da política, do carnavalesco obscurantismo dos neofascismos, de pseudo “democracias” irrelevantes, quase absolutamente inermes e paralisadas diante do peso do poder econômico-financeiro que alegremente conduz o planeta à sua própria destruição.
Diante desse panorama, os autores que analisamos neste pequeno livro – todos eles há muito tempo não estão conosco – talvez tenham um papel pioneiro em suas advertências e apelos a um pouco de humildade em relação aos nossos devaneios de soberbo “antropocentrismo”, como se dissessem: Não, senhores, o universo é muito mais que o umbigo produtivista, economicista, consumista, fetichista do poder, fascinado pelo empobrecedor andaime tecnológico da humanidade medíocre em que nos tornamos.
Já dizia Hamlet: “Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que a sua ciência é capaz de abranger”. É, sim, o chamado à sobriedade que víamos em Lévi-Strauss, e que em seu momento possivelmente significou o pontapé inicial para esse anti-humanismo teórico com o qual alguém como o marxista Althusser conseguiu, ao menos por algum tempo, escandalizar o progressismo conformista de certas esquerdas “politicamente corretíssimas”.
Pode-se pensar que o pensamento posterior foi longe demais nessa direção e que, hoje, imersos na catástrofe, precisaríamos de algum novo tipo de humanismo crítico que nos permitisse pensar também em algum novo tipo de “saída” ou de freio de mão para o trem da história que leva ao apocalipse. Concordo. Mas, novamente, é preciso lembrar que as ‘teologias políticas revolucionárias’ de um Ernst Bloch, de um Walter Benjamin e de um Jacob Taubes levantavam a sua voz messiânico-apocalíptica naqueles tempos em que os fascismos reinantes, sim, encontravam-se, ainda, com o outro “campo”: o dos impulsos revolucionários.
A nossa situação atual carece – e talvez seja a maior tragédia do nosso tempo – de semelhante “Alteridade”. De modo que não seria ruim se soubéssemos ouvir aquela demanda por sobriedade reflexiva (reflexão que de forma alguma tem motivo para frear a iracúndia, como no caso de Pierre Clastres) que os nossos antropólogos-filósofos invocam.