03 Mai 2024
A Igreja católica romana vive como que num tempo suspenso, onde a aproximação da mudança de pontificado se entrelaça com exigentes "peregrinações" - como aquela planejada para a Indonésia, Papua-Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura, de 2 a 13 de setembro - e com a expectativa, em outubro, da segunda sessão do Sínodo dos Bispos (Sb) dedicada, como a primeira em 2023, à compreensão da “sinodalidade”. E aí será inevitável uma intensa discussão sobre uma série de reformas eclesial que, em alguns pontos desejadas quase por unanimidade pelos “padres” e “madres” da Assembleia, em outros, porém, verão dilacerantes divergências (devido à problemática do documento vaticano Dignitas Infinita).
A reportagem é de Luigi Sandri, publicada por Confronti, maio-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há um mês, falamos do duro desacordo que eclodiu em fevereiro entre a Cúria romana e a Conferência episcopal alemã (Dbk). No centro da disputa está a oposição do Vaticano à implementação de uma singular instituição prevista pelo Synodaler Weg: um Conselho sinodal, composto por bispos e leigos, para orientar a Igreja alemã na implementação de reformas radicais para superar o trauma provocado pela “descoberta” da pedofilia do clero. Segundo Roma, tal nova instituição é inadmissível, porque não é prevista pelo atual Código de Direito Canônico (Cic), lançado em 1983 por João Paulo II.
A imposição curial causou consternação na Dbk; Roma, para evitar um corte que seria prenúncio de tempos piores, acabou propondo um encontro para esclarecimentos. Foi realizado há pouco, como informa um comunicado: “Hoje, 22 de março, no Vaticano, se encontraram representantes da Cúria romana [cinco cardeais, entre os quais o secretário de Estado, Pietro Parolin] e da Dbk [seu presidente, Georg Bätzing, cinco outros bispos, e também a Secretária geral do Conferência, Beate Gilles], para continuar o diálogo iniciado durante a Visita ad Limina em novembro de 2022 e que continuou com uma primeira conversa em 26 de julho de 2023. A reunião de hoje, que durou o dia inteiro, se desenvolveu num clima positivo e construtivo. Foram discutidas algumas questões teológicas abertas e levantadas pelos documentos do Caminho sinodal das Igreja na Alemanha. Isso permitiu identificar diferenças e convergências, de acordo com o método adotado no Relatório final de síntese do Sínodo da Igreja universal de outubro de 2023."
“Os bispos alemães – continua o texto – explicaram que o trabalho tentará identificar as formas concretas de exercício da sinodalidade na Igreja na Alemanha, em conformidade com a eclesiologia do Concílio Vaticano II, as disposições do Cic e os frutos do Sínodo da Igreja universal, submetendo-as depois à aprovação da Santa Sé. As partes concordaram em realizar uma próxima reunião no final do primeiro semestre de 2024."
O que ficamos sabendo pelo comunicado? Tudo e nada: fala-se de “clima positivo e construtivo”, e se constatam – mas não se especificam – “diferenças e convergências”. Vamos traduzir: sobre as questões decisivas permanecem pontos de vista divergentes; a Cúria exige que a Dbk se atenha às linhas do Código vigente.
Portanto, muitas hipóteses que surgiram no Synodaler Weg terão que ser abandonadas. Mas esse resultado seria a rendição da DBK à Cúria e o seu fracasso na Alemanha. Será então possível, no encontro de junho, chegar a algum compromisso aceitável? Ou será o Sb que terá que dirimir muitos "sim" e em outubro poderia haver um acalorado debate.
Em 22 de fevereiro, o Papa escreveu uma carta – divulgada em 14 de março – ao cardeal Mario Grech, Secretário Geral do Sb: destacava que a próxima sessão (2-27 de outubro) não terá tempo para examinar adequadamente complicadas questões teológicas e pastorais. Por isso encarregava o cardeal de criar, para o período pós-sinodal, “dez grupos de estudo que ofereçam um primeiro resumo das suas atividades, possivelmente até junho de 2025".
Estes são os temas dos Grupos: 1) Alguns aspectos das relações entre Igrejas orientais católicas e Igreja latina; 2) A escuta do grito dos pobres; 3) A missão no ambiente digital; 4) A revisão da Ratio Fundamentalis da Institutionis Sacerdotalis [texto da Congregação do clero, de 2016, sobre a formação dos presbíteros]; 5) Algumas questões teológicas e canônicas em torno de específicas formas ministerial; 6) A revisão, em perspectiva sinodal e missionária, dos documentos que disciplinam as relações entre Bispos, Vida consagrada, Agregações eclesiais; 7) Alguns aspectos da figura e do ministério do Bispo [como os critérios de seleção dos candidatos ao Episcopado]; 8) O papel dos Representantes pontifícios em perspectiva sinodal missionária; 9) Critérios teológicos e metodologias sínodos para um discernimento partilhado de questões doutrinais, pastorais e éticas controversas; 10) A recepção dos frutos do caminho ecumênico nas práxis eclesiais.
Uma enorme massa de temas que absolutamente não poderiam ser aprofundados apenas em um mês.
Então, como proceder? O Papa imaginou uma iniciativa que, de fora, alguns consideram como forma de remover questões problemáticas da Assembleia de outubro. O próprio Grech se precaveu quando reiterou: a questão do celibato sacerdotal não é um tema específico do próximo Sb; irá, portanto, discuti-lo o grupo nº4 ? E se confirmasse a lei em vigor na Igreja latina, que valor teria? O mesmo valeria se a modificasse: além disso, de vários lados se ressaltaria que as conclusões dos Grupos são apenas "desiderata" que uma autoridade superior (o papa? um futuro Sínodo? a Cúria romana?) deveria aprovar.
O adiamento proposto pelo Papa corre o risco de esvaziar, em pontos delicados, a autoridade do Sb. No mundo teológico, no entanto, muitos e muitas acreditam que, se a “sinodalidade” tem sentido, cabe justamente àquela Assembleia se expressar, por voto secreto, sobre algumas proposta-chave, tais como: consequências institucionais da escuta do grito dos pobres; diaconato feminino como “ordem sagrada”; também mulheres em todas as estruturas de comando da Igreja; celibato opcional dos padres; viri probati (homens casados, de idade avançada, para serem ordenados padres); opinião decisiva dos Conselhos pastoral e presbiteral da Diocese para a escolha do seu bispo; liturgia pluralista, encarnada nas várias culturas. Se não for isso, qual seria o propósito do Sb?
Entre o final de março e o início de abril o tema do conclave voltou com força nas mídias, também por entrevistas, além de um livro do papa, sobre o problema.
Ora, não entraremos aqui na reconstrução feita por Jorge Mario Bergoglio do conclave de 2005 (quando recebeu muitos votos que, conta ele, por fim conseguiu direcionar para Ratzinger): ressaltamos apenas que, na opinião de muitos vaticanistas, ele minimiza o papel do cardeal Martini naquele caso.
Também não entraremos nos detalhes do conclave de 2013, do qual saiu o Papa Francisco. Nós apenas poderemos almejar que, finalmente, um pontífice romano estabeleça que, depois de um conclave, sejam divulgados os votos expressos nos vários escrutínios. Seria uma pequena revolução, que talvez desmistificaria a obra do Espírito Santo mas poderia dar um passo importante rumo à Igreja desejada como "casa de cristal".
Mas, para além de tal questão de método, uma questão - decisiva – de mérito, paira sobre a instituição do conclave: é possível que, no terceiro milênio, persista uma norma, filha de outras épocas, que prevê apenas homens como “eleitores” do bispo de Roma? E esse parece ser o verdadeiro nó górdio que Francisco não sabe como resolver. Ele constata que para muitos católicos (e para muitas outras pessoas) cada dia parece mais incompreensível que o famoso “povo de Deus” exaltado pelo Vaticano II seja representado apenas por “viri” (homens) naquele importante ato da eleição do bispo de Roma.
Por que não as mulheres também? Confronti soube de fonte confiável que Francisco, por enquanto, rendeu-se ao status quo, tão emaranhados são os motivos que tornam “imodificável” a situação atual, normalizada pela última Constituição Apostólica sobre o conclave, a wojtyliana Universi dominici gregis de 1996. Enquanto isso, o Nosso interlocutor nos lembra, se no fatídico dia "x" também mulheres – religiosas ou leigas – fossem admitidas na Capela Sistina, seria necessário esclarecer que só têm voto ativo e não passivo (poderiam votar, mas não ser votadas). Esse intransponível NÃO paira como uma espada porque a Ordinatio sacerdotalis ainda hoje está em vigor. Essa carta apostólica do Papa polonês, de 1994, “com sentença definitiva” proclamava, em nome de Cristo: as mulheres não podem, basicamente, ser ordenadas ao sacerdócio (e muito menos ao episcopado).
Mas, observava o Nosso mui reverendo, “se as mulheres tivessem um voto ativo no conclave, mas não passivo, levantar-se-ia tamanho clamor (não apenas por parte das feministas) que faria tremer a Igreja romana". Além disso – continuava– “Haveria também a questão do número: quantas mulheres na Sistina: 20%? Nós nos exporíamos ao sarcasmo universal."
Conclusão: essa intrincada rede de problemas teológicos, históricos e jurídicos convenceu Francisco – “por enquanto, pelo menos”, suspira a nossa fonte – a não tocar no atual “Quem é” do e no conclave. Mas ressaltamos, um dia a mudança radical, mesmo que dolorosa, terá que ser feita, com um novo e inédito Concílio de “padres” e “madres”. Em suma, a questão mulher obrigará a Igreja romana, se tiver força, a uma verdadeira revolução.
Aos problemas “internos” elencados, para agravar a amargura de Francisco, soma-se um problema “externo” de extrema gravidade: o juízo incompatível entre ele e o patriarca de Moscou sobre o caso ucraniano.
O Papa condenou o ataque russo, mas Sua Santidade Kirill justificou-o. E, falando em 27 de março no Congresso (Sobor) Mundial do Povo Russo – que reúne representantes não só russos, mas também da Ucrânia, Bielorrússia e outros países irmãos - exaltou a sua união “para defender os valores tradicionais russos”. Palavras que o Sobor, aprovando um texto já elaborado em novembro passado, esclareceu assim: “Do ponto de vista espiritual e moral a Operação Militar Especial [contra Kiev] é uma guerra santa na qual a Rússia e o seu povo […]protegem o mundo da vitória do Ocidente que caiu no satanismo." Palavras, estas, não unanimemente aceitas, pois algumas Igrejas ortodoxas (como a da Estônia que, embora formalmente ligada a Moscou, rotulou-as como uma distorção inaceitável do Evangelho). O secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas, Jerry Pillay, também pediu a Kirill "explicações urgentes" por afirmações "absolutamente inaceitáveis". E o que dirá, mesmo externo ao CMI e à Ortodoxia, o bispo de Roma: poderá dialogar realmente com quem defende tais teses inquietantes? Kirill e Francisco têm a mesma fé em Cristo, mas ideias muito diferentes sobre relações Igreja-história, homossexualidade, Ocidente (que pode ter os seus limites, mas parece-nos afrontoso defini-lo superficialmente como “satânico”…).
No próximo ano, nas celebrações na Turquia dos 1700 anos desde o grande Concílio de Niceia de 325, o papa, o patriarca de Constantinopla Bartolomeu (que denunciou o ataque de 2022) e Kirill, poderão se encontrar juntos? O incompatível juízo sobre o sangue derramado na Ucrânia o impediria.
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Vaticano. O difícil quebra-cabeça entre Cúria, Alemanha e Kirill - Instituto Humanitas Unisinos - IHU