04 Mai 2024
O sacerdócio exclusivamente masculino não é uma questão insignificante.
A opinião é da escritora estadunidense Alice McDermott, professora da cátedra Richard A. Macksey de Humanidades na Johns Hopkins University.
O texto abaixo é uma adaptação de uma apresentação em um congresso realizado na Georgetown University, em abril de 2023, sobre as mulheres e o presbiterado. Foi publicado como parte de um simpósio sobre as mulheres e o sacerdócio.
O artigo foi publicado em Commonweal, 23-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O filme de Otto Preminger “O Cardeal” foi lançado em 1963, quando eu tinha dez anos. Então, acredito que foi exibido na TV alguns anos depois. Lembro-me de assisti-lo com minha mãe. Assisti a muitos filmes com minha mãe.
No começo, há uma cena em que um jovem padre diz aos médicos de sua irmã grávida que eles deveriam deixá-la morrer para salvar seu filho ainda não nascido. Virei-me para minha mãe, incrédula. Isso realmente aconteceria?
“Ah, sim”, assegurou-me minha mãe, com muita tranquilidade. “Essa é a regra na Igreja Católica. A vida do bebê vem antes da vida da mãe.”
Até então, eu sempre importunava minha mãe para que ela tivesse outro filho. Eu era a mais nova de três filhos e a única menina. Eu queria uma irmã. Mas, depois de ver “O cardeal”, rezei para que ela nunca mais corresse esse risco. Eu sabia que precisava dela muito mais do que de alguma irmãzinha imaginária. A vida dela era a vida que eu mais estimava acima de todas as outras, a vida mais essencial para mim. Suponho que eu era muito jovem na época para perceber que a irmã grávida que deveria morrer poderia, algum dia, ser eu.
Esse foi, então, o meu primeiro encontro com o valor diminuto que a minha Igreja atribui à vida das mulheres. Não o último, é claro.
Naquela época, eu não podia ser coroinha, como meus irmãos, simplesmente porque era mulher. Ao longo do meu tempo de escola primária, observava as freiras de meia-idade que eram nossas professoras – mulheres formidáveis e dignas – curvarem-se, rebaixarem-se e até rirem sempre que os párocos, alguns deles com apenas 20 e poucos anos, se dignavam a visitar as nossas salas de aula.
Na minha escola secundária católica só para meninas, fomos desafiadas pelas nossas professoras mulheres a ler muito, a conhecer a história do mundo e a história da Igreja, a compreender a economia – e não apenas a economia doméstica. Fomos encorajadas a debater de forma convincente, quer o assunto fosse política, poesia ou “O mito da caverna”, de Platão. Estávamos convencidas de que a grande notícia da época era verdade: as mulheres podiam fazer e se tornar qualquer coisa que quisessem. Mas, mesmo assim, só podíamos celebrar a missa ou nos confessarmos quando um padre local concordasse em incluir a nós, meninas, em sua agenda cheia.
Anos mais tarde, minha própria filha perguntou à Ir. Nina, sua professora do quinto ano, por que havia sete sacramentos para os homens católicos, mas apenas seis para as mulheres católicas. A resposta da irmã? “Boa pergunta.”
Manifestante pró-ordenação de mulheres e o cardeal Bernard Law (Foto: Marquette University/Commonweal)
O nosso clero exclusivamente masculino não é grande coisa, foi o que homens católicos e muitas mulheres católicas me disseram ao longo dos anos. Era apenas uma pequena questão de costume ou ritual, uma tradição inofensiva. Jesus era um homem, diz o velho argumento. Como seria confuso para os fiéis se Cristo fosse representado no altar por alguém que não fosse homem, por uma mulher. É claro que não nos preocupamos com essa confusão quando fazemos referências à Mãe Igreja com todos seus pronomes femininos.
“Ah, por favor”, respondeu um cardeal sorridente com uma piscadela quando o pressionei sobre a questão da ordenação de mulheres. “São vocês, mulheres, que realmente dirigem a Igreja.” Em uma discussão semelhante, um monsenhor risonho me garantiu que seus padres estavam “aterrorizados” com o Clube de Mães de sua escola. “Fale-me mais sobre poder...”, disse ele. Tudo com bom humor.
Mas como separar essa “questão insignificante” de um clero exclusivamente masculino dos efeitos insidiosos da misoginia ritual? Em seu livro “Turning Point”, Robert McClory conta a “história interna” da Comissão Papal sobre o Controle de Natalidade do início dos anos 1960. A comissão, que incluía católicos casados, constatou um desejo esmagador entre os casais católicos fiéis de poderem usar o controle de natalidade – pelo bem de seus casamentos, mas também pela saúde das mulheres no casamento, muitas das quais sabiam o preço que representavam gestações múltiplas, abortos espontâneos ou maridos que devem ser evitados. Eram casais católicos fiéis que solicitavam acesso ao controle de natalidade para protegerem a vida e o bem-estar físico das mulheres católicas. Todos nós sabemos como isso acabou.
No início deste século, jantei em Boston com um grupo de professoras de escolas católicas, todas mulheres, algumas delas freiras ou ex-freiras. O escândalo dos abusos acabara de estourar, e o grito coletivo delas era o de uma oportunidade perdida. Elas poderiam ter protegido essas crianças dos predadores sacerdotais, diziam, se a hierarquia masculina lhes tivesse dito com quais sacerdotes era preciso ter cuidado. Se a hierarquia masculina tivesse compartilhado o que sabia sobre aqueles “homens problemáticos”, as mulheres tinham a certeza de que poderiam ter interferido sempre que um padre suspeito chamasse uma criança para fora de suas salas de aula.
Essas mulheres não queriam mudar a estrutura de poder na Igreja. Elas não estavam particularmente interessadas em ordenar mulheres. Elas nem queriam ver o escândalo exposto. Elas simplesmente desejavam que o cardeal e outros pastores homens tivessem confiado nelas, confidenciado a elas e recorrido à sua ajuda pelo bem das crianças. Desejavam ser tratadas como iguais, dignas de plena participação na vida da Igreja, mesmo com seus encobrimentos e com suas falhas.
Ao longo da minha vida adulta, observei a nossa Igreja abandonar toda tentativa sincera de confrontar as complexas questões morais que dizem respeito à reprodução em troca de uma solução legal simplista: derrubar a decisão Roe versus Wade [que liberalizou o aborto nos Estados Unidos]. Tenho visto as lideranças da Igreja Católica rejeitarem o desafio de convencer, aconselhar, confortar ou discernir, em favor da promoção de leis seculares que apenas irão coagir.
Enquanto isso, à medida que uma guerra se sucedia à outra, os padres diziam aos homens católicos que juntar-se ao exército e pegar em armas era uma questão de consciência. Cada um deveria seguir seu próprio entendimento de guerra justa, o que conta como autodefesa moralmente aceitável ou homicídio justificável por algum bem maior. Diziam-lhes que o serviço militar era uma escolha pessoal e de oração.
Lembro-me de outra conversa com um bispo encantador, que ouviu com simpatia quando descrevi a trágica experiência de uma jovem amiga com a morte intrauterina de seu filho. “Nós, que somos pró-vida, precisamos ter essas circunstâncias em mente”, disse ele gentilmente. Mas depois acrescentou: “Aquilo a que me oponho são essas mulheres que abortam simplesmente porque querem sair de férias”. Eu disse a ele que chamava isso de defesa de Jezebel em relação à proibição do aborto. Ele disse que não considerava essas mulheres Jezebéis; ele as considerava pouco humanas.
Assisti à missa no domingo seguinte à decisão Dobbs versus Jackson [que decretou que a Constituição dos Estados Unidos não confere o direito ao aborto]. Eu amo a missa. Amo a eucaristia. Apesar de toda a angústia que a minha Igreja causou no mundo e no meu coração, nunca me foram negadas a paz, a compreensão e a renovação da esperança e do amor que a celebração da missa sempre me proporcionou. Mas, naquele dia, vi a minha presença na minha própria igreja como uma espécie de conluio – conluio com a misoginia, com a hipocrisia, com a convicção de que ser mulher é ser o “outro”, ser inferior. Menos complexo, menos moral, menos valioso, menos inteligente, menos digno, menos humano.
Como católicos, somos conscientes dos – e celebramos os – sinais exteriores da graça interior. Os nossos rituais baseiam-se na importância desses sinais e símbolos, e a nossa Igreja e o nosso espírito alimentam-se deles como fonte de bem. Mas, se existem sinais exteriores de graça interior, então, certamente há sinais exteriores de corrupção interior, sinais que revelam as nossas falhas, a nossa pecaminosidade, a nossa cegueira, os nossos fracassos. O sacerdócio exclusivamente masculino da Igreja Católica, a minha Igreja, tornou-se para mim um desses sinais. E assim persisto, com vários graus de esperança. Questiono e questiono novamente: por que não as mulheres? Eu rezo por mudança.
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Por que não as mulheres? Artigo de Alice McDermott - Instituto Humanitas Unisinos - IHU