05 Novembro 2015
O termo "teoria do gender", de fato, representa uma simplificação alterada e uma tradução caricatural do termo inglês gender theory, mas onde theory não significa "uma teoria", mas o "conjunto dos estudos teóricos". As pesquisas científicas, além do bom senso, permitem-nos pensar em quais poderiam ser as consequências de uma renúncia às importantíssimas aquisições dos estudos teóricos sobre o gênero, que têm um impacto direto sobre os contextos de vida e de crescimento, em particular dos adolescentes e dos jovens adultos.
A opinião é de Paolo Rigliano, psiquiatra e psicoterapeuta sistêmico-relacional, criminologista e sexólogo italiano, membro do Comitê Ético-Científico da Sociedade Italiana de Psicoterapia para o Estudo das Identidades Sexuais (Sipsis).
O artigo é um trecho do livro Il genere. Una guida orientativa, co-organizado por Rigliano, Federico Ferrari e Enrico M. Ragaglia. O texto foi publicado no sítio do projeto Gionata, 30-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Apesar dos reais objetivos dos gender studies, foi desencadeada por diversos grupos fundamentalistas uma campanha contra uma suposta "teoria de gênero". É muito importante tentar compreender os objetivos e os métodos. Ela representa uma invenção da última década que tem o claro propósito reacionário de impedir a emancipação, por um lado, das mulheres e, por outro, das pessoas gays, lésbicas e transexuais.
De acordo com os promotores dessa campanha, a "ideologia de gênero" (ou "teoria de gênero") seria o pressuposto da ação que, principalmente, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (organizadas em "lobbies gays" que penetraram no tecido social, escolar, econômico e político do país) estariam levando em frente para impôr:
De acordo com a narração de tais grupos fundamentalistas, o mundo do associacionismo gay (com o qual entendem, na realidade, todos os gays, todas as lésbicas e todas as pessoas transexuais!) propagandeariam a "teoria do gender" a fim de transformar meninos e meninas em pequenos autômatos "neutros", confundidos sobre as suas identidades, para seduzi-los, plagiá-los e instigá-los à promiscuidade.
Para fazer isso, ela defenderia que cada um pode escolher o gênero de pertença ao seu próprio gosto, de acordo com o capricho do momento. Isto é, gays, lésbicas e transexuais pretenderiam anular as diferenças biológicas entre machos e fêmeas, e visariam com isso a subverter a família "natural", portanto, a favorecer todas as possíveis aberrações sexuais, sociais e educacionais.
O "gender" que gostaria de se insinuar nas escolas, sob o pretexto dos projetos de educação sexual, representaria, de fato, o êxito de um ilícito desenvolvimento e uso das tecnologias reprodutivas (como no caso da maternidade de sub-rogação, incorretamente chamada de "barriga de aluguel"). Ele pretenderia desimpedir e tornar lícita a pedofilia e abriria as portas para a criação de "fábricas de crianças".
Para compreender até o fim as intenções dessa campanha, porém, é necessário entender bem a natureza do pensamento fundamentalista.
Sobre o que se baseia o pensamento fundamentalista?
Por pensamento fundamentalista entende-se uma concepção do mundo que mistura dois planos diferentes do discurso, o da ciência e o da fé e da moral religiosa, para obter uma representação simplificada e reconfortante da única e absoluta realidade, de modo a remover todo espaço para a dúvida e a discussão.
Esse modo de raciocinar, no caso do movimento contra a "teoria do gender" dá origem, no entanto, a respostas e afirmações remendadas, ideológicas e agressivas, do tipo:
O pensamento fundamentalista, portanto, se baseia na ideia de que existem diferenças naturais, eternas, sagradas, definitivas e absolutas entre a mulher e o homem, fundamentadas na biologia do corpo. Tais diferenças seriam dedutíveis, de uma vez por todas, das Sagradas Escrituras e da descrição que ali se encontra sobre as relações entre mulheres e homens – que remontam há mais de 2.000 anos.
Na interpretação fundamentalista, isso se traduz diretamente na contraposição entre quem é fraco, incapaz, inferior por sua natureza, destinado, portanto, a sofrer a opressão do desejo e da vontade alheia, e quem está destinado, ao contrário, por natureza, a comandar, guiar, até mesmo prevaricar.
A tradição religiosa é usada, portanto, para impor respostas que transcendem a capacidade de compreensão humana à ciência. O ponto, obviamente, não é que o plano científico e o religioso e moral não podem se falar, mas, primeiro, é preciso reconhecer e enfrentar o fato de que lhes correspondem lógicas e linguagens diferentes: não é correto criar uma "linguagem única", que submeta a ciência à teologia, apelando a uma suposta antropologia universal e eterna a ser imposta a todos e para sempre.
A história nos deu muitos exemplos aos quais é possível se referir para captar o espírito do discurso: um dentre todos, o caso de Galileu Galilei. Como cientista católico, apenas dividindo o pensamento científico da sua fé religiosa, ele pôde levar adiante uma pesquisa que abalou os próprios fundamentos da doutrina eclesiástica e da visão antropocêntrica do homem, afirmando que é a Terra que gira em torno do Sol e não vice-versa.
Hoje, quem poderia pôr em dúvida essa "descoberta"? De acordo com essa confusão ideológica dos planos, portanto, para responder acima de tudo ao magistério doutrinal, sem nunca pô-lo em discussão, os diversos níveis da identidade sexual são "soldados" juntos com base no pressuposto de uma "natureza" necessária e prescritiva.
Não poderia acontecer de outra forma para o "gênero masculino", por exemplo, senão ter herança genética sexual XY, possuir uma identidade de gênero masculina coerente com o sexo biológico, assumir certos papéis de gênero e não outros, ter uma orientação heterossexual, adotar comportamentos e práticas sexuais apenas de um determinado tipo, ter personalidades, atitudes, psicologia e capacidades em todos os caso "masculinas" e se identificar com o estereótipo do "homem que nunca deve perguntar".
Eis, então, que tudo o que "sai" desse roteiro infundado (e, por isso, destinado a entrar em crise) e que, no passado, era mais obviamente posto ao lado da ideia do crime ou da patologia hoje é referido à "teoria do gender", atribuída aos "suspeitos do costume", aqueles perversos inimigos da humanidade e da "natureza" que são gays, lésbicas, transexuais.
Esses fundamentalistas, desse modo, criaram um inimigo cômodo, portador de um perigo que não existe, mas que é agitado artisticamente para alarmar as famílias e as "pessoas normais". É uma técnica muito antiga e sempre foi empregada – pelos ditadores de todas as épocas – para suscitar a identificação de um grupo incômodo com um monstro, um opositor letal que organiza complôs, que deve ser perseguido e eliminado a todo o custo.
Existe realmente a "teoria de gênero"?
À pergunta se existe uma "teoria do gender", a resposta é: não. A "teoria do gender" é o modo claramente distorcido em que essa campanha fundamentalista e reacionária se refere aos estudos de gênero, propondo uma visão incorreta e falsa deles.
O termo "teoria do gender", de fato, representa uma simplificação alterada e uma tradução caricatural do termo inglês gender theory, mas onde theory não significa "uma teoria", mas o "conjunto dos estudos teóricos".
As pesquisas científicas, além do bom senso, permitem-nos pensar em quais poderiam ser as consequências de uma renúncia às importantíssimas aquisições dos estudos teóricos sobre o gênero, que têm um impacto direto sobre os contextos de vida e de crescimento, em particular dos adolescentes e dos jovens adultos.
Viver e crescer em um ambiente intolerante, que propõe esquemas rígidos demais, é um fator de risco para distúrbios psicológicos, particularmente em jovens que começam a se descobrir homossexuais/bissexuais/transexuais. O mesmo fator de risco tem influência, por sua vez, sobre o aumento do número de episódios de bullying homofóbico.
Por outro lado, o tipo de pensamento e de raciocínio que está por trás dos ataques contra os estudos de gênero – justamente por se basear em uma "tradição intuitiva" (ou seja, um esquema de raciocínio pré-crítico e pré-científico) que, ao longo dos séculos, na maior parte das pessoas, tornou-se "pensamento comum" – não custa a convencer até mesmo aqueles que não podem ser identificados como um fundamentalista e, contudo, reage instintivamente e por medo em defesa de certezas que nunca pôs em discussão. Pessoas que, em termos gerais, se definem como "abertas", mas que, no clima emotivo criado pela campanha fundamentalista, se sentem ameaçadas na sua identidade pela suposta "teoria do gender".
Não é por acaso, além disso, que a campanha na Itália está apontando para aquilo em que cada um concentra a própria atenção protetiva, ou seja, as crianças. Com slogans como "defendamos os nossos filhos", visa-se a despertar novamente necessidades ancestrais de proteção em relação aos mais fracos e indefesos, que, obviamente, seriam as primeiras vítimas do fantasmagórico complô homossexualista.
A tarefa do pensamento científico, nesse caso, é fazer com que se entenda através de quais mecanismos o costume se transforma em nome e, de norma, se torna "normatividade" (isto é, como é possível passar de: "As coisas sempre foram assim" a: "Elas não podem se de outra forma senão assim, porque são justas assim"), para mostrar como até mesmo as diferenças inesperadas podem ser perfeitamente funcionais e devem ser protegidas quanto ao seu desenvolvimento e identidade.
Quem defende e conduz essa campanha?
Os efetivos inventores da chamada "ideologia gender" são organizações e movimentos político-religiosos extremistas que dizem se mover "em defesa da família tradicional". Há muitos pequenos grupos que se remetem a um pensamento fundamentalista de origem tanto protestante (os chamados evangélicos) quanto católica, mas também existem grupos fundamentalistas islâmicos, judeus, hindus. O fundamentalismo, de fato, particularmente nestes tempos, é um problema muito grave que aflige a todas as religiões.
Certamente, há pessoas comuns que agem de boa fé, pensando que estão atuando a fim de defender valores e ideais nobres, mas é possível identificar como promotores dessa vasta operação midiática (apoiada por muitos órgãos de informação católicos) algumas personalidades do mundo cultural, político e universitário católico reacionário, declaradamente contrárias à afirmação dos direitos das pessoas gays, lésbicas e transexuais, e alarmadas com a possibilidade de que a homofobia e a discriminação se tornem comportamentos puníveis.
Eles estão alimentando um ódio perigoso contra aqueles que são portadores de "diversidades": um retorno aos tempos passados, em que se falava da homossexualidade como de uma "patologia" e de algo a devia ser mantido às escondidas. Os seus grupos atacam supostos "lobbies gays" ou "laicistas", mas se opõem realmente a todas aquelas atividades voltadas a proteger a dignidade daqueles seres humanos que não se encaixam no esquema de uma ordem que pretende ser eterna e sagrada, além do seu direito a uma plena e serena existência.
Nessa campanha "anti-gender", reconhece-se a tentativa de uma fé fundamentalista agressiva e intolerante de evitar toda forma de tutela das formas de relação e de amor diferentes, de impedir a sua expressão, além de negar o valor de toda liberdade pessoal, começando pela das mulheres.
Desaparecendo as clássicas argumentações contra o reconhecimento do amor homossexual, construiu-se hoje essa teoria segundo a qual admitir o amor homossexual significaria desconhecer a diferença sexual e exacerbar as relações entre os gênero, a tal ponto que cada sexo poderia agir por conta própria, chegando ao ponto de negar a existência do outro.
É possível observar, além disso, nas práticas desses grupos, outra atitude típica do "complotismo", ou seja, o emprego de uma forma de doutrinação anticientífica e um uso preconceituoso e falso dos dados científicos para fins de propaganda, muitas vezes reduzindo pesquisas complexas a poucos slogans em panfletos de "chamada às armas".
Analogamente, assiste-se ao desprezo mais absoluto dos dados científicos quando a sua evidência não está de acordo com as próprias afirmações. Nesses casos, eles são desqualificados como fruto dos "lobbies gays" e, consequentemente, usados para incitar a luta contra a "teoria do gender" e a defesa da "liberdade de opinião".
Um exemplo da modalidade dessa luta é oferecido pelas reuniões nas praças, pelos produtos editoriais, pelos debates e pelos programas de televisão, muitas vezes, conduzidos na ausência de contrapartidas ou de profissionais do setor adequadamente informadas, de modo a alimentar apenas discursos "instintivos", mistificações, confusões e mal-entendidos.
É bastante preocupante que esse tipo de debates em sentido único ocorra principalmente nas paróquias, onde expoentes fundamentalistas pronunciam os seus sermões diante de um público amedrontado e privado da possibilidade de mostrar um ponto de vista diferente. Quem dirige essas comunidades assume uma séria responsabilidade em dar o seu apoio a tais encontros.
Na Itália, os fundamentalistas se referem a um núcleo de crenças inatacáveis, fundamentadas na leitura de passagens do Antigo Testamento, das cartas de São Paulo e da teologia de Santo Tomás de Aquino. Segundo os cruzados da luta contra o "gender", esses textos estabeleceriam e justificariam a submissão da mulher ao homem, a necessidade de procriar sem limites dentro das uniões sagradas e naturais desejadas por Deus, além da exclusividade do domínio sexista masculino.
Na Itália, tais crenças são difundidas por organizações histórica e amplamente enraizadas no território, fortalecidos pelo apoio de algumas das lideranças da Igreja Católica e que, muitas vezes, também defendem as terapias reparativas da orientação sexual: ou seja, praticas pseudocientíficas e pseudoespirituais invalidadas e condenadas pelo mundo científico, que começam a se tornar ilegais em tantos Estados e das quais muitos ex-apoiadores estão revelando as violências psicológicas que elas envolvem para as pessoas que a elas se submetem.
O que desconcerta é que a Igreja Católica – geralmente cautelosa e não propensa a se deixar condicionar pelo primeiro pregador de plantão – está lentamente se alinhando com as posições mais fundamentalistas que surgiram dentro dela, com o risco de provocar um descolamento do ambiente acadêmico, secular e teológico, como aconteceu no passado para o caso Galileu, para os non expedit [proibição papal aos católicos italianos de participar das eleições políticas], para os judeus, para as mulheres.
Por fim, preocupa o silêncio dos expoentes moderados, que deveriam atentar para não deixar que a Igreja se deixe envolver em uma luta que não tem nenhuma razão de existir, justamente porque se baseia em fantasmas ilusórios, agitados por personagens pouco transparentes e cientificamente despreparados, que instigam uma batalha ideológica sem fundamento.
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Existe realmente a "teoria de gênero"? Artigo de Paolo Rigliano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU