Mas a pressão sobre as comunidades e lideranças indígenas que lutam pelo bem de seus povos aumenta a cada dia. Estranhamente, o relator das ações diretas de inconstitucionalidade contra a Lei 14.701/2023, que recuperou a tese do Marco Temporal, o ministro Gilmar Mendes, suspendeu a tramitação das mesmas e convocou uma mesa de conciliação. Neste sábado (27), foi assassinado Hariel Paliano, do povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La Klaño, em Santa Catarina. Quantos mais terão que morrer para que o governo entenda a gravidade da situação?
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O presidente Lula se elegeu prometendo que sua política indigenista seria absolutamente oposta à do governo passado. E como esse significou a encarnação das trevas para os Povos Indígenas a expectativa era que a luz finalmente brilhasse com intensidade. Após a euforia das primeiras e importantes medidas de criação do Ministério dos Povos Indígenas e a nomeação de lideranças indígenas para funções estratégicas, muito pouco avançou.
Ufa! Admitir isso parece um tabu para muitos que integram o campo progressista e se empenharam pela eleição do atual governo. Como se o fato de se tecer críticas ao governo significasse apoiar o projeto neofascista anterior. Ou ainda como se se devesse contentar com qualquer migalha, porque é melhor do que nada. Para alguns militantes tudo não passa do jogo político e esperar outra coisa é mera ingenuidade, falta de paciência histórica ou de experiência política. Condescendência exagerada ou falta de ousadia política dos cabelos brancos?
Mesmo para o desagrado de bons amigos, é preciso repetir: diante do enorme passivo para com os Povos Originários, pode-se dizer que quase nada avançou até agora. Não se desconhece a importância da representatividade indígena nas altas esferas do poder em Brasília. Todavia, isso necessita se concretizar em medidas efetivas e não somente permanecer no simbolismo histórico. Subir a rampa do Palácio do Planalto com o Cacique Raoni e receber Davi Kopenawa rende boas fotos e excelente repercussão internacional. Mas não são suficientes para mudar o cenário de sistemáticas violações aos direitos indígenas!
Na véspera do Dia dos Povos Indígenas, o presidente participou de cerimônia da reinstalação do Conselho Nacional de Política Indigenista – uma decisão importante, diga-se de passagem, com grande participação do movimento indígena. Conforme havia sido anunciado pela ministra Sônia Guajajara dias antes, o governo iria homologar seis Terras Indígenas. Aquelas mesmas que estavam prontas desde 1º de janeiro de 2023 e sob as quais havia expectativa de homologação logo nos primeiros dias de governo. O tempo foi passando e o ato adiado.
Para forte e compreensível frustração de indígenas e indigenistas, o presidente decidiu homologar apenas as Terras Indígenas Aldeia Velha (BA) e Cacique Fontoura (MT). E não satisfeito, ao se explicar trouxe mais indignação ainda para as lideranças indígenas dizendo que os governadores pediram mais tempo e que era preciso negociar. Direitos estabelecidos na Constituição e confirmados pelo Supremo Tribunal Federal, ao rejeitar a tese do Marco Temporal, não se negociam, presidente! Aquele que foi o maior líder sindical do país deveria saber disso.
Entre esses territórios pendentes estão Potiguara de Monte-Mor, na Paraíba, Xukuru-Kariri, em Alagoas e Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, em Santa Catarina. Os dois primeiros são governados por aliados do presidente, ao passo que o governador de Santa Catarina, membro do PL e apoiador do desgoverno anterior, é um dos maiores opositores da atual administração. A quem interessa essa negociação? Evidentemente não aos Povos Indígenas que há décadas esperam que o Estado brasileiro rompa sua inércia criminosa e observe a sua própria legislação.
E que os apaixonados defensores do presidente Lula não venham com mil e uma justificativas querendo soar razoáveis! Ceder aos interesses dos governadores, aliados ou opositor, significa prolongar a situação de indignidade e fragilidade a que estão submetidos esses povos. As comunidades originárias sofrem um brutal processo de marginalização e estão expostas a todo tipo de violência quando sequer tem seu território assegurado.
Sabe desde quando os Guarani Mbya aguardam a homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC)? Desde o ano de 2009! Ou seja, já os governos Lula 2 e Dilma tiveram a oportunidade de resolver a questão, mas não o fizeram. Assim, a escusa de que é preciso tempo para se planejar o que fazer com os invasores, como se fosse uma questão nova e não algo que se arrasta há décadas, chega a ser inteiramente absurda.
Há anos que o Estado brasileiro possui todas as informações necessárias para agir. Em termos jurídicos ou administrativos não existe qualquer óbice para garantir o direito das comunidades indígenas. O que falta então? Simplesmente, o mínimo de vontade política! E não venham com as usuais desculpas dos últimos tempos, como inexistência de base parlamentar no Congresso ou polarização social que dificulta os consensos mínimos. Afinal, nesse caso em discussão, basta tão somente uma assinatura do chefe do Poder Executivo federal.
O processo de demarcação de territórios indígenas é de competência da União. Infelizmente, mesmo sendo longo e burocrático, parece que não é suficiente para o atual governo. Incluir uma nova etapa de transação com os governos estaduais, além da ausência de qualquer previsão legal, beira a crueldade e insensibilidade com as comunidades indígenas afetadas. Conforme ensina Aníbal Quijano, a colonialidade do poder está tão arraigada na política nacional, que as diferenças com o governo anterior parecem se tornar cada dia menores:
“A sociedade continuou organizada, largamente, segundo o padrão de poder produzido debaixo do colonialismo. Era então, e seguia sendo, uma sociedade colonial, ao mesmo tempo e movimento histórico em que se tornava independente, se formava e se definia o novo Estado. Esse novo Estado era independente do poder colonial, mas, simultaneamente, em seu caráter de centro de controle de poder, era uma justa expressão da colonialidade do poder na sociedade”. [1]
De acordo com o compromisso assumido pelo presidente, seu governo irá demarcar todas as Terras Indígenas até o final do seu mandato. Acontece que, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ainda restam mais de 860 territórios sem o reconhecimento do Estado. Portanto, alguém precisa avisar o Lula que nesse ritmo paquidérmico e hesitante, em que somente 10 Tis foram homologadas em quase um ano e meio de gestão, jamais conseguirá manter a sua palavra e zerar o passivo com os povos originários.
Dormitam pelos escaninhos do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, 25 Terras Indígenas passíveis de serem declaradas por meio de portaria, aquela que é considerada a penúltima etapa do processo de demarcação. Se nada havia andado sob a gestão de Flávio Dino, tampouco com o atual titular da pasta as coisas parecem ter mudado. E mesmo nessa Semana dos Povos Indígenas nem um território indígena teve a sua portaria declaratória assinada.
No encontro de representantes do Acampamento Terra Livre (ATL) com o presidente nessa quinta (25), tragicamente a ministra Sônia Guajajara parece ter embarcado na terrível estratégia do governo ao tentar justificar o inaceitável. “Não se pode assinar as homologações desconsiderando toda a ocupação não indígena que há dentro desses territórios”, afirmou aquela que um dia ocupou a coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Insistindo na mesma linha de postergar as decisões, Lula prometeu criar, em duas semanas, uma força-tarefa para fazer avançar as demarcações. Resultado? Tudo continua como dantes no quartel de Abrantes, sem prazo para as quatro Terras Indígenas serem homologadas. Para Kretã Kaingang, um dos atuais coordenadores da Apib, “não tem negociação nenhuma”, porque “direitos originários não se negociam”.
Mas a pressão sobre as comunidades e lideranças indígenas que lutam pelo bem de seus povos aumenta a cada dia. Estranhamente, o relator das ações diretas de inconstitucionalidade contra a Lei 14.701/2023, que recuperou a tese do Marco Temporal, o ministro Gilmar Mendes, suspendeu a tramitação das mesmas e convocou uma mesa de conciliação. Neste sábado (27), foi assassinado Hariel Paliano, do povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La Klaño, em Santa Catarina. Quantos mais terão que morrer para que o governo entenda a gravidade da situação?
Uma economia que a tudo monetiza e trata como mercadoria não pode continuar controlando a política do país. Desista da ideia perversa de explorar petróleo na foz do rio Amazonas ou de aprovar uma nova política que estimule a destrutiva mineração, como tem sido ensaiado pelos teus ministros, presidente Lula. Não siga adiante com megalomaníacos projetos de infraestrutura, como o apoio dado pelo seu vice-presidente à exploração de potássio na terra dos Mura (AM) e à BR-319, com nefastas consequências para a Amazônia e suas populações tradicionais. A tragédia de Belo Monte não foi suficiente para aprender a lição?
Se empresários inescrupulosos, a bancada ruralista e os governadores anti-indígenas o querem emparedar, presidente, o governo precisa reagir com altivez e adotar uma política assertiva de comunicação pública. A população deve ser esclarecida sobre a importância do respeito aos territórios ancestrais dos Povos Indígenas e a defesa de uma ecologia integral, como apontado na Encíclica Laudato Si'. E que isso em nada irá atingir a capacidade do país continuar produzindo alimentos no campo ou crescendo economicamente, como propagam alguns mal-intencionados. Use o seu vasto capital político e sua enorme respeitabilidade internacional.
Caro presidente Lula, preocupe-se menos com Jorginho Melo e mais com o exemplo do papa Francisco. Não permita que uma economia mortífera continue exterminando os Povos Indígenas:
“Uma nova economia, inspirada em Francisco de Assis, pode e deve hoje ser uma economia amiga da terra e uma economia amiga da paz. Trata-se de transformar uma economia que mata (cf. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 53) em uma economia da vida, em todas as suas dimensões. Chegar àquele ‘bem viver’, que não é a doce vida ou passar bem, não. O bem viver é aquela mística que os povos aborígenes nos ensinam a ter em relação com a terra”. [2]
Tudo isso só tem alguma chance de avançar se as forças de esquerda não se acovardarem e silenciarem cumplicemente, com escrúpulos infundados e imorais. Se a direita pressiona, pressionem também todos os homens e as mulheres desse país que, para além de cegos partidarismos, apostam no Estado Democrático de Direito, nos Direitos Humanos, na construção de uma sociedade plural, livre e democrática.
Do contrário, a corresponsabilidade pelas violações aos direitos indígenas também será de cada um que preferir a concordância acrítica ou o contentamento medíocre com os pequenos acenos dados. Passar dos discursos para as ações concretas é preciso, caso o presidente Lula não queira entrar para a história como um traidor dos Povos Indígenas, como aquele que preferiu fazer concessões aos algozes do que dar o que de direito aos oprimidos. O tempo está se esgotando.
[1] QUIJANO, Aníbal. El movimiento indígena y las cuestiones pendientes de la América Latina. In: QUIJANO, Aníbal. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estrutural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014. p. 641.
[2] PAPA FRANCISCO. 3ª Mensagem ao Encontro da Economia de Francisco. 24 set. 2022. In: BRASILEIRO, Eduardo (Org.). Realmar a economia: a economia de Francisco e Clara. São Paulo: Paulus, 2023. p. 292.