25 Abril 2024
O campo político bolsonarista é socialmente heterogêneo, policlassista e, por isso, repleto de contradições. A sua unidade não é tão sólida quanto pode parecer.
O artigo é de Armando Boito, professor de ciência política na Unicamp, autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp), publicado por A Terra é Redonda, 23-04-2024.
A política brasileira entrou numa fase nova a partir de 2015, quando se iniciaram as grandes manifestações de rua pela deposição de Dilma Rousseff. Tendo a classe média, e principalmente a sua camada superior como a principal força motriz desse movimento, ele foi, contudo, dirigido pela grande burguesia associada cujo propósito era restaurar a hegemonia política que perdera com os governos do PT.
O referencial dessa fração da burguesia brasileira era a política do Estado mínimo dos governos FHC, que os governos de Lula e de Dilma Rousseff haviam abandonado para implantar uma política de intervenção do Estado na economia para estimular o crescimento econômico e reduzir a pobreza, política que podemos denominar “neodesenvolvimentista”.
O movimento pelo impeachment, após depurações e também com adesões, inclusive a adesão do Partido militar, resultou na formação de um movimento de massa de tipo neofascista, agregando, além da fração superior da classe média, a pequena burguesia e os proprietários de terra capitalistas principalmente das regiões Sul e Oeste do país. Heterogêneo desde o seu nascedouro, o movimento neofascista funcionou como um agente catalizador para a formação de um novo campo político, o campo neofascista, que, por sua vez, é mais amplo e mais heterogêneo ainda que o movimento que lhe deu origem.
E a política foi ingrata com o movimento inicial. Os pioneiros do movimento neofascista foram empurrados, como veremos, para a periferia do campo político cuja formação haviam propiciado. Embora permaneçam como forças motrizes principais desse campo, e a origem social dos financiadores e dos participantes da Intentona golpista de 08 de janeiro de 2023 é prova disso, não são eles que o dirigem, isto é, não são eles que dão a última palavra sobre o programa do campo político que deve a sua existência à militância dos pioneiros do neofascismo.
A grande burguesia associada, que já controlara politicamente o movimento pelo impeachment, logrando restaurar neoliberalismo ortodoxo com o governo de Michel Temer, atraiu o movimento neofascista e, no início da campanha para a eleição presidencial de 2018, assumiu a sua direção, ao obter, em novembro de 2017, o compromisso do candidato neofascista de nomear Paulo Guedes para o Ministério da Fazenda. Nessa nova fase, destacou-se o setor financeiro dessa fração burguesa, conhecido na linguagem jornalística pela metonímia “Faria Lima”.
A política brasileira que se encontrava dividida, até 2015, entre, de um lado, o campo político neoliberal e democrático e, de outro, o campo político neodesenvolvimentista, passou a contar com um terceiro campo que, também ele, assumiu o neoliberalismo, trajando-o, no entanto, com uma vestimenta autoritária. O campo político neofascista expandiu-se também para baixo, atraindo setores das classes populares arregimentados pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. Esse novo campo político é, tal qual os campos neoliberal democrático e neodesenvolvimentista, socialmente muito heterogêneo e, por isso, repleto de contradições no seu interior.
É certo que esse campo possui um denominador comum que é partilhado por todos os seus integrantes e que os unifica. Esse denominador é composto pelo anticomunismo e pelo autoritarismo político. Porém, cada um dos seus integrantes possui também interesses e valores particulares que podem gerar conflitos mais ou menos graves e ameaçar a sua unidade.
Isso significa que elementos como a defesa do da família patriarcal, que são muito vistosos e que um observador mais apresado poderia atribuir ao conjunto do campo bolsonarista, não são, na verdade, consensuais entre as classes sociais as frações de classe que integram esse campo político, ou, pelo menos, não têm a mesma importância para todos os seus integrantes. Essas distinções todas, frequentemente desconsideradas pelos analistas do fenômeno, ajudam, contudo, a ter uma visão mais clara do bolsonarismo, percebendo a heterogeneidade desse campo político e indicando suas possíveis fissuras, de modo a permitir que os trabalhadores e os democratas definam táticas mais precisas de combate a esse inimigo.
A grande burguesia associada, que abandonou o campo neoliberal democrático e é a força social hegemônica do campo neofascista, tem de administrar interesses os mais variados dos seus aliados e dos seus subalternos. Essa fração burguesa está focada na defesa da irrestrita expansão do capital financeiro internacional na economia brasileira e na defesa da política fiscal e monetária que garanta alta remuneração para esse capital e seus associados internos, ou seja, a política fiscal dita restritiva ou de austeridade – restrição e austeridade para os outros, não para o capital financeiro. Veremos que parte do capital financeiro integra a grande burguesia interna, não apoia parte importante das reivindicações da Faria Lima e abandonou publicamente Jair Bolsonaro na campanha eleitoral de 2022.
Voltando à Faria Lima. Os companheiros de classe desse setor e de seu campo político, os fazendeiros capitalistas, têm sérios problemas com as restrições fiscais. Eles aspiram ao crédito público farto e subsidiado, ao financiamento governamental para o seguro rural, para a construção de silos em suas propriedades, clamam por obras públicas como estradas de ferro, de rodagem e portos e por outras políticas e iniciativas que aumentam o gasto público e dificultam a obtenção de superávit primário. São defensores convictos da empresa estatal Embrapa.
Essas demandas dos fazendeiros geram um dos conflitos que ameaçam a unidade do campo fascista. Convém mencionar que os proprietários de terra capitalistas fizeram parte da frente política neodesenvolvimentista durante o ciclo de governos do PT. Vindos de um período de vacas magras em decorrência da política econômica fiscalista dos governos FHC, melhoraram, e muito, os seus negócios a partir de 2003. Começaram a mudar de posição política somente a partir de 2013, momento em que passaram a priorizar a luta por outra política social, ambiental e de ordem, que calasse os movimentos indígenas, camponês, quilombola e ambientalista. A história política desses fazendeiros mostra que eles podem oscilar entre um campo político e outro.
O médio capital é outra fração da classe dominante que se aliou à grande burguesia associada e passou a integrar o campo político neofascista. Na preparação do golpe de Estado entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, tanto a participação dos proprietários de terra e de suas associações, quanto a das médias empresas espalhadas por todo o Brasil, participação que se deu fundamentalmente como financiadores dos acampamentos defronte aos quartéis e também da “Marcha sobre Brasília”, essa participação está suficientemente documentada nos processos judiciais.
O médio capital se encontra excluído da disputa pela hegemonia no interior do bloco no poder – o próprio desenvolvimento econômico do capitalismo marginalizou-o e ele não considera a iniciativa de propor uma aliança com o movimento operário e popular, cuja força política poderia compensar sua fraqueza econômica. Como não tem, portanto, a ambição de fazer com que a política econômica do Estado priorize os seus interesses específicos de fração, a média burguesia passou a valorizar, mais que todas as outras frações burguesas, a dimensão antioperária e antipopular do neoliberalismo.
O que ela não ganha como fração, quer ganhar como classe. Integrou-se, então, ao campo neofascista pelo fato de ser esse campo que garante, na nova situação, a aplicação da versão mais radical da política social do neoliberalismo, política que representa, para o médio capital, uma compensação frente ao que ele perde ou deixa de ganhar com política econômica, seja a dos governos neodesenvolvimentistas, seja a dos governos neoliberais, neofascistas ou democráticos. Trocando em miúdos: procura tirar dos trabalhadores, por intermédio de medidas de política social, aquilo que não consegue tirar da grande burguesia, por intermédio de medidas de política econômica.
Mas, o médio capital entretém relação complexa com a política econômica do grande capital e, por isso, nem sempre é um aliado seguro para a grande burguesia, seja ela a grande burguesia interna ou a associada. Basta lembrar que o médio capital já esteve no campo neodesenvolvimentista. Ressentiu-se, particularmente, com a política do BNDES focada no financiamento do grande capital interno – os então chamados “campeões nacionais” – e iniciou, então, a sua marcha para a direita. No movimento do impeachment, a média burguesia industrial paulista foi mobilizada pela Fiesp de Paulo Skaf para fazer o corpo-a-corpo junto aos deputados na votação do impeachment.
Diversos segmentos das classes trabalhadoras, a começar pela classe média, representam, hoje, a grande força desse campo político – estão mobilizados nas ruas, dão os votos que os candidatos fascistas necessitam e podem dar a impressão de que sua posição é inamovível e permanente. Examinando as coisas mais de perto, podemos afirmar que não é bem assim.
Os caminhoneiros autônomos, importante setor da pequena burguesia, bolsonaristas militantes e pioneiros do movimento neofascista, aspiram a uma remuneração maior para o frete rodoviário e ao barateamento do combustível. Aspiram também a financiamentos públicos para a renovação da frota. Num caso, se chocam com os interesses dos fazendeiros, que são, no entanto, seus aliados políticos, porque os fazendeiros pretendem reduzir o custo do escoamento da produção, e, noutro caso, se chocam com os interesses do capital financeiro, que dirige o campo político no qual os caminhoneiros estão inseridos, e que almeja manter o chamado preço de paridade internacional para os combustíveis de modo a aumentar a lucratividade da Petrobrás e, assim, engordar os dividendos que a petroleira lhe paga.
Os caminhoneiros, que já foram base de apoio dos dois primeiros governos Lula, mas que, hoje, ainda se mantêm na frente política neofascista, foram os primeiros prejudicados pelo governo de Jair Bolsonaro, que os traiu para atender os interesses dos acionistas da Petrobrás, e ao longo desse período governamental o fascismo dos caminhoneiros alimentou-se de ideologia.
A alta classe média, revoltada com a pequena melhoria nas condições de vida das famílias de mais baixa renda, luta pela manutenção de sua distinção social. Essa preocupação da classe média com a distinção social não comove nem um pouco o coração dos “faria limers” – esses estão no topo da hierarquia social, têm consciência da solidez dessa posição privilegiada e pouco se importam com a redução da desigualdade que separa a classe média, socialmente insegura, dos trabalhadores de baixa renda – desde que, é claro, a conta dessa redução não recaia sobre o capital financeiro.
Uma política real de reindustrialização pode, com a criação de grande número de empregos mais qualificados, atrair grande parte da classe média, e até a alta classe média, para uma posição mais progressista e, isso, a despeito dessa mesma política elevar as condições de vida dos trabalhadores de menor renda e qualificação. Lula da Silva venceu a eleição presidencial nos Estados do Sul e do Sudeste em 2002.
Os pentecostais, setor mais popular da frente neofascista, estão focados na defesa da família patriarcal – daí o machismo e a homofobia que os caracteriza. Porém, os populares que aderiram ao pentecostalismo, dadas suas condições de vida, não se opõem – na verdade aspiram – a medidas de proteção social que destoam da política neoliberal. A família patriarcal, tão cara aos pentecostais, não entra em linha de consideração para qualquer uma das frações burguesas definir a sua relação com o governo. O que as move nesse caso é a questão de saber se as medidas de política econômica e social do governo atendem ou não os seus interesses específicos de fração.
Uma fração burguesa qualquer pode, eventualmente, tomar posição a favor ou tomar posição contra a luta dos pentecostais se isso lhe fornecer um aliado na sua luta no interior do bloco no poder. Ou seja, a unidade nesse caso não se basearia em interesse e valores comuns, mas em circunstâncias da luta política.
É verdade que essa frente ou campo político neofascista, embora amplo e heterogêneo, continua unido. Já vimos que o anticomunismo e o autoritarismo político formam uma base comum para essa unidade – embora o anticomunismo para os fazendeiros, para os pentecostais e para a classe média não signifique a mesma coisa. Mas, as bancadas da bíblia, da bala e do boi estão votando junto no Congresso Nacional e são conscientes da força que cada uma das partes obtém com essa unidade.
A burguesia associada já aprendeu que sem manobras golpistas, como foi a manobra do impeachment de Dilma Rousseff, ou sem o movimento neofascista, que representou a sua salvação eleitoral em 2018, é muito difícil para ela assumir e manter o poder governamental. Sabe que não pode avançar sozinha.
O campo neofascista ainda está unido, mas poderão surgir defecções, algo semelhante ao que ocorreu com o campo neoliberal no final da década de 1990, quando a grande burguesia interna e a classe média iniciaram a sua caminhada em direção ao neodesenvolvimentismo proposto pelo PT, e que, posteriormente, ocorreu em meados de 2010 com o campo neodesenvolvimentista, quando a burguesia interna começou a se afastar do governo de Dilma Rousseff.
Um caso preocupante para o bolsonarismo: grande parte dos fazendeiros, base pioneira e engajada do bolsonarismo, começa a se aproximar do governo Lula 3. Os mais recentes episódios dessa aproximação foram a reação favorável dos fazendeiros diante do primeiro Plano Safra do Governo Lula 3, plano que destina para o financiamento público e subsidiado da safra um montante 30% maior que o do último ano do governo Guedes-Bolsonaro, e o apoio dos fazendeiros ao projeto dos biocombustíveis do mesmo governo. Para não entrar em choque com a sua própria base social, o Partido Liberal (PL) viu-se obrigado a apoiar essa política governamental.
A unidade do campo político neofascista depende da evolução da economia, da política e da ação governamental. Mas depende, também, da ação do movimento antifascista. O movimento democrático e popular tem de levar em consideração a heterogeneidade do campo político neofascista ao definir a sua tática de luta contra o fascismo. São necessárias propostas políticas específicas, em primeiro lugar e acima de tudo, para o setor popular reunido pelas igrejas pentecostais, mas também, para a classe média e inclusive para o médio capital. É preciso minar e dividir a frente política fascista.
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Fissuras do campo político bolsonarista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU