23 Março 2024
O último relatório global sobre resíduos eletrônicos indica que o ritmo em que descartamos aparelhos eletrônicos excede a nossa capacidade de reciclagem; na Espanha, cada cidadão gera 19,6 quilos deste lixo, dois acima da média europeia.
A reportagem é de Antonio Martínez Ron, publicada por El Diario, 20-03-2024. A tradução é do Cepat.
Em 2022, a humanidade produziu 62 milhões de toneladas de lixo eletrônico, o equivalente a um milhão e meio de caminhões carregados de lixo que, se colocados em fila, dariam a volta ao mundo pela linha do Equador, segundo dados do quarto Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Lixo Eletrônico, que é publicado nesta quarta-feira. O documento conhecido como GEM (da sigla em inglês de Global E-waste Monitor) mostra que os europeus fomos os mais sujos em termos per capita, com mais de 17 quilos de lixo digital por pessoa, e coloca sobre a mesa um ritmo de produção insustentável, uma vez que a geração deste tipo de resíduos está aumentando cinco vezes mais rapidamente do que a reciclagem documentada.
De acordo com o relatório, elaborado pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa da Organização das Nações Unidas (UNITAR) e pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), a geração anual de resíduos eletrônicos aumenta 2,6 milhões de toneladas por ano em todo o mundo e está no caminho para atingir 82 milhões de toneladas anuais até 2030. Este crescimento nos levará a um potencial colapso, alertam seus autores, devido à diferença cada vez maior nos esforços de reciclagem em relação ao crescimento da geração de resíduos eletrônicos em todo o mundo. Em 2020 só conseguimos gerir 22% desta quantidade de lixo e a percentagem será reduzida para 20% em 2030, segundo as suas previsões.
Para se ter uma ideia da quantidade de lixo que geramos, os autores do relatório destacam que esses 62 milhões de toneladas equivalem ao peso de 107 mil dos maiores aviões de passageiros do mundo ou de 800 dos maiores porta-aviões em carga máxima. Metade dos resíduos corresponde a metais (31 milhões de toneladas) e 27% (17 milhões de toneladas) são plásticos. Um terço deste lixo corresponde a pequenos aparelhos como fornos micro-ondas, torradeiras ou aspiradores; uma quarta parte são aparelhos de grande porte, como máquinas de lavar, lava-louças e geladeiras; e cerca de 7% correspondem a equipamentos como notebooks, celulares e aparelhos GPS.
O relatório destaca a necessidade de aumentar a capacidade de reciclagem e os benefícios econômicos que a recuperação destes materiais produziria, embora na realidade todo este suposto sistema de “economia circular” esteja naufragando em todos os lugares. A realidade é que em 2023 apenas 81 países no mundo tinham legislação sobre resíduos eletrônicos (três a mais do que em 2019) e 67 têm um instrumento legal para regular a sua gestão com disposições que promovem a responsabilidade ampliada do produtor. E o que é mais grave: até 8,2% do total mundial deste tipo de lixo (5,1 milhões de toneladas) foram enviados para países terceiros em 2022, 65% dos quais foram enviados de países de alta renda para países de baixa e média renda através de movimentos fora do radar das autoridades.
“A força impulsionadora por trás destes movimentos transfronteiriços é muitas vezes comercial, uma vez que a procura de equipamentos eletrônicos usados, mais baratos, é alta nos países receptores”, afirma o relatório. “Por exemplo, grandes quantidades de equipamentos e acessórios de comunicação digital estão sendo importados para países de renda baixa e médio-baixa como dispositivos falsificados e de má qualidade”. Neste sentido, os autores apelam às autoridades responsáveis para que regulamentem as telecomunicações e se certifiquem de que os equipamentos importados cumprem os padrões funcionais e de qualidade.
Por continente, o relatório indica que os europeus geram 17,6 kg de resíduos eletrônicos per capita por ano, seguidos pela Oceania (16,1 kg) e pela América (14,1 kg), enquanto as taxas de coleta e reciclagem foram de 7,5 kg na Europa, 6,7 kg na Oceania e 4,2 kg na América. Na Espanha, cada cidadão gerou 19,6 kg destes resíduos num ano, dois quilos acima da média europeia. “A situação não está melhorando”, reconhece Pascal Leroy, diretor-geral do WEEE Forum, uma entidade sem fins lucrativos que reúne organizações que promovem a gestão responsável destes resíduos em todo o mundo. “Mesmo na Europa, onde a legislação está em vigor há mais de 20 anos, apenas 43% destes resíduos são documentados como recolhidos formalmente”. Isto significa que 57% do fluxo europeu de lixo eletrônico não é contabilizado, um número que sobe para 77,7% em escala global.
Esta situação mostra – na opinião de Leroy – tudo o que falta fazer, incluindo apelar aos consumidores para que comprem melhor e descartem os resíduos através dos canais oficiais. Esta acumulação de lixo eletrônico “requer uma atenção urgente”, segundo Nikhil Seth, diretor executivo da UNITAR, enquanto Cosmas Zavazava, da UIT, salienta que este relatório deve “soar o alarme para a necessidade de regulamentações fortes para aumentar a coleta e a reciclagem”.
Ethel Eljarrat, diretora do Instituto de Diagnóstico Ambiental e Estudos Hídricos do CSIC (IDAEA-CSIC), acredita que estes resultados deveriam fazer as pessoas pensarem que a reciclagem não é a solução milagrosa para os problemas dos resíduos. “Em geral, parece que se criarmos uma economia circular em que reciclamos teremos o problema resolvido, e isso não é verdade”, explica ao elDiario.es. “Se, pelo fato de conseguirmos reciclar, aumentamos exponencialmente os resíduos que geramos, nunca sairemos deste ciclo”, alerta. “A administração deve se concentrar em tentar impedir o consumo de todos os tipos de materiais”.
Félix Antonio López Gómez, pesquisador do CENIM-CSIC especializado na gestão deste tipo de resíduos, acredita que o relatório nos dá uma ideia da magnitude do problema. “Isso também nos mostra que o lixo eletrônico está mudando; agora são encontrados muitos painéis fotovoltaicos ou lâmpadas LED, que antes não existiam”, destaca. Na sua opinião, por trás deste grande aumento parece deduzir-se que a transição energética e digital está desencadeando a procura de determinados metais. “E que a economia circular como conceito é muito boa, mas a realidade diz que não se consegue essa circularidade e será muito difícil alcançá-la em todos os setores”.
Um dos problemas, destaca López Gómez, é que embora se tenha feito muitos progressos na recuperação dos metais mais abundantes, ainda existe uma grande dificuldade tecnológica para aproveitar o resto. Neste sentido, ele e a sua equipe do CSIC estão trabalhando no projeto Recuperação de matérias-primas críticas (RC-METALS) e a empresa Atlantic Copper tem um projeto para o tratamento de 60 mil toneladas de material eletrônico por ano em Huelva a partir de 2026. “Ainda há esperança, mas estamos produzindo tanto e em tal velocidade que não conseguimos tratar os resíduos que geramos”, ressalta. “Um aspecto muito importante é que na Espanha conhecemos os dispositivos elétricos e eletrônicos que importamos, mas não temos ideia de para onde vão e onde são utilizados os resíduos que geramos: falta rastreabilidade”.
Eljarrat também destaca a necessidade de parar de usar os países em desenvolvimento como lixões e fazê-lo corretamente dentro das nossas próprias fronteiras. E lembra que os compostos químicos presentes nos diversos resíduos podem ser liberados durante os diversos processos de reciclagem e recuperação, podendo também estar presentes em produtos produzidos a partir de materiais reciclados. “Quando você recicla um televisor de 20 anos, você reintroduz no meio ambiente um composto tóxico que hoje é proibido”, ressalta. Isto implica um risco para a saúde de quem trabalha nestas fábricas, mas também para os consumidores e para o ambiente em geral.
Recentemente, Eljarrat e sua equipe demonstraram que era isso que estava acontecendo em uma usina de reciclagem na Catalunha, onde detectaram a presença de retardadores de chama que estão proibidos há anos devido à sua toxicidade, mas que retornam à cadeia produtiva sem que ninguém os controle. “Se você fabrica um produto novo com esse material reciclado, você está introduzindo um composto que hoje está proibido de ser fabricado”, explica. “Se tiver que fabricar um celular, por exemplo, é proibido colocar esse retardante, e numa fábrica ninguém vai colocá-lo. Mas se você usar um circuito reciclado, esse circuito já o possui e ninguém vai controlar se ele está lá ou não”. Um exemplo de que em todo este conglomerado de interesses está em jogo não só a sustentabilidade do sistema industrial, mas também a saúde das pessoas.
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Lixo eletrônico cresce cinco vezes mais rápido que reciclagem, segundo ONU - Instituto Humanitas Unisinos - IHU