24 Fevereiro 2024
O Vaticano tem tentado há anos desmentir a ideia de que seus venerados arquivos secretos são tão secretos assim: Ele abriu os arquivos do controverso Papa Pio XII da era da Segunda Guerra Mundial para estudiosos e mudou o nome oficial para remover a palavra "Secretum" de seu título. Mas uma certa aura de mito e mistério persistiu — até agora.
A reportagem é de Nicole Winfield, publicada por National Catholic Reporter, 19-02-2024.
O longevo prefeito do que agora é chamado de Arquivo Apostólico do Vaticano, Arcebispo Sergio Pagano, está revelando segredos pela primeira vez, revelando alguns dos segredos que descobriu nos 45 anos em que trabalhou em um dos mais importantes e incomuns repositórios de documentos do mundo.
Em uma nova entrevista em formato de livro intitulada "Secretum", a ser publicada em 20 de fevereiro, Pagano revela alguns dos detalhes desconhecidos, menos conhecidos e dos bastidores de sagas conhecidas da Santa Sé e suas relações com o mundo exterior ao longo dos últimos 12 séculos.
Em conversas ao longo de um ano com o jornalista italiano Massimo Franco, Pagano mergulha em tudo, desde o saque de Napoleão ao arquivo em 1810 até o caso Galileu e o peculiar conclave — a assembleia de cardeais para eleger um papa — de 1922, financiado por doações de última hora de católicos americanos.
"É a primeira vez e também será a última, porque estou prestes a sair", disse Pagano, 75 anos, em uma entrevista à Associated Press em seu escritório no arquivo, antes de sua esperada aposentadoria ainda este ano.
O Papa Leão XIII abriu o arquivo para estudiosos pela primeira vez em 1881, depois de ser usado exclusivamente para servir ao papa e preservar documentação dos papados, concílios ecumênicos e escritórios do Vaticano datados do século VIII.
Com 85 quilômetros de estantes, grande parte delas subterrâneas em um bunker de concreto armado à prova de fogo de dois andares, o arquivo também abriga documentação das embaixadas do Vaticano ao redor do mundo, bem como coleções específicas de famílias aristocráticas e ordens religiosas.
Embora muitas vezes seja fonte de conspirações à la Dan Brown, funciona como qualquer arquivo nacional ou privado: os pesquisadores solicitam permissão para visitar e depois solicitam documentos específicos para revisar em salas de leitura dedicadas.
Pagano os observa de perto por meio de uma tela de televisão gigante ao lado de sua mesa, que fornece uma transmissão ao vivo e fechada das salas de leitura no andar de baixo.
Recentemente, os estudiosos têm se reunido ao arquivo para ler os documentos do pontificado do Papa Pio XII, o papa da guerra que foi criticado por não ter falado o suficiente sobre o Holocausto.
O Papa Francisco ordenou a abertura dos documentos de seu pontificado antecipadamente, em 2020, para que os estudiosos finalmente tivessem o quadro completo do papado.
O Vaticano sempre defendeu Pio, dizendo que ele usou a diplomacia silenciosa para salvar vidas e não falou publicamente sobre os crimes nazistas porque temia retaliações, inclusive contra o próprio Vaticano.
Pagano não é apologista de Pio e se destaca entre os hierarcas do Vaticano por sua disposição de criticar o silêncio de Pio. Especificamente, Pagano diz que não consegue conciliar o relutância continuada de Pio em condenar publicamente as atrocidades nazistas mesmo depois que a guerra acabou.
"Durante a guerra, sabemos que o papa fez uma escolha: ele não podia e não falaria. Ele estava convencido de que um massacre ainda pior teria acontecido", disse Pagano. "Depois da guerra, eu teria esperado uma palavra a mais, por todas essas pessoas que foram para as câmaras de gás."
Pagano atribui o silêncio contínuo de Pio após a guerra às suas preocupações com a criação de um estado judeu. O Vaticano tinha uma longa tradição de apoio ao povo palestino e estava preocupado com o destino dos locais religiosos cristãos na Terra Santa se os territórios fossem entregues ao recém-criado estado de Israel.
Qualquer palavra de Pio sobre o Holocausto mesmo após a guerra "poderia ter sido lida em termos políticos como um apoio à fundação de um novo estado", disse Pagano.
No livro, Pagano não poupa críticas à pesquisa incompleta por trás da causa de santidade de Pio, que aparentemente está em espera enquanto os estudiosos dissecam a documentação recém-disponibilizada.
Os dois pesquisadores jesuítas que compilaram o dossier de santidade de Pio, os falecidos Padres Peter Gumpel e Paolo Molinari, basearam-se apenas na compilação parcial de 11 volumes dos documentos do papado publicada em 1965, revelou Pagano.
"Nem o Padre Gumpel nem o Padre Molinari puseram os pés no Arquivo Apostólico", diz ele no livro. Ele disse que acreditava que a causa de santidade de Pio deveria ter esperado até que o arquivo completo do pontificado fosse catalogado e estivesse disponível, e os estudiosos tivessem tempo para tirar conclusões.
"Os documentos escritos devem pesar muito na vida de um servo de Deus, não se pode ignorar os arquivos", disse Pagano a Franco, o jornalista. "Mas a postulação pelos jesuítas queria contornar isso."
Além das histórias bem conhecidas de intriga no Vaticano, o livro também revela algumas novidades, incluindo as origens da importante relação financeira entre a igreja dos EUA e o Vaticano, que continua até hoje e remonta ao conclave de 1922.
Pagano disse que depois que o Papa Bento XV morreu, o camerlengo — o cardeal responsável pelo tesouro e contas papais — foi ao seu cofre e descobriu que estava "literalmente vazio. Não havia um papel, nota bancária ou moeda." Acontece que Bento não era muito responsável financeiramente e deixou a Santa Sé um pouco no vermelho quando morreu em 22 de janeiro daquele ano.
Os cofres papais sempre foram usados para financiar o conclave para eleger um novo papa, o que significa que a Santa Sé estava em uma crise de caixa em um momento em que a Europa ainda estava se recuperando financeiramente da Primeira Guerra Mundial.
O livro, pela primeira vez, reproduz os telegramas codificados nos quais o secretário de Estado do Vaticano pediu a seu embaixador em Washington que enviasse urgentemente "o que você tem no cofre" para que a votação pudesse ocorrer.
De acordo com os telegramas, a embaixada do Vaticano enviou o que as igrejas dos EUA haviam arrecadado dos fiéis americanos, até os centavos: US$ 210.400,09, permitindo a votação que eventualmente elegeu o Papa Pio XI.
Pagano sugere que a decisão de Francisco em 2019 de remover a palavra "Secretum" do nome do arquivo e renomeá-lo como "Arquivo Apostólico do Vaticano" foi talvez outro aceno financeiro para a rica igreja dos EUA — uma rebrandização para remover quaisquer conotações negativas e assim incentivar doações potenciais, principalmente via "Tesouros da História", uma nova fundação com sede nos EUA que apoia o arquivo.
No final da entrevista, Pagano orgulhosamente mostrou aos visitantes uma das preciosidades do arquivo, que ele mantém em um armário de madeira aparentemente comum perto da entrada de seu escritório. Lá, atrás de vidro e iluminada com luzes especiais, está a carta original de 1530 de nobres britânicos instando o Papa Clemente VII a conceder ao Rei Henrique VIII uma anulação para que ele pudesse se casar com Ana Bolena.
Como é bem conhecido, o papa recusou e o rei seguiu em frente e se casou, rompendo com Roma.
"Você pode dizer que estamos aqui no nascimento da Igreja Anglicana", diz Pagano enquanto segura um ponteiro com luz para mostrar os selos de cera vermelha de alguns dos signatários.
Pagano se deleita em revelar como o documento sobreviveu: Quando Napoleão Bonaparte famosamente apoderou-se dos arquivos do Vaticano em 1810 e os levou para Paris, o antecessor de Pagano como arquivista-chefe enrolou a carta de 1530 e a escondeu dentro de uma gaveta secreta em uma cadeira na antessala do arquivo.
"Os franceses nunca o encontraram", diz Pagano orgulhosamente, muito ciente de que o principal trabalho de um arquivista é preservar o arquivo.