26 Janeiro 2024
“Hoje vou lhes contar sobre o inferno”. Essa era uma das frases com que Nedo Fiano, um dos últimos sobreviventes de Auschwitz, falecido em dezembro de 2020, começava os encontros com os estudantes nas escolas. Entre estes, estava também aquele que escreve. A experiência da deportação, juntamente com outras onze pessoas da família todas exterminadas, “tornaram-no testemunha vitalícia”, conta ao telefone o terceiro filho, Emanuele, ex-deputado do Partido Democrático.
A entrevista é de Silvia Morosi, publicada por Corriere della Sera, 25-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“O meu pai foi uma pessoa totalmente marcada pelo campo de concentração, em sentido positivo e negativo. O que prevaleceu, depois, foi o primeiro aspecto, que marcou sua matriz de comportamento por toda a existência. Nunca teve medo das dificuldades, resumidas naquela mensagem aprendida nos campos de concentração: “É na hora mais escura da noite que o amanhecer está mais próximo”.
Um homem que soube encontrar forças para recomeçar, depois do inferno...
Tinha uma grande força de vontade, que o guiou na vida, no estudo, na vontade de reconstruir uma família que não tinha mais, ele que ficou órfão aos 18 anos. Com a chegada do terceiro filho, eu, decidiu seguir a promessa que fez à mãe de se formar. Assim, em 1963 ele se inscreveu em Línguas e Literaturas Estrangeiras na Bocconi: com esposa e três filhos dependentes, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Para ajudá-lo, ou ‘niná-lo’, como ele dizia, o ritmo da máquina de lavar louça. No álbum de família uma foto que o retrata no verão, em Forte dei Marmi, enquanto estuda na frente da cabine enquanto nós tomamos banho de mar. A ética do trabalho era muito forte nele: nunca escrevi isso, mas ele sempre dizia ‘antes o dever e depois o prazer’, quando, por exemplo, eu não queria fazer os temas de casa das férias.
Ironia e empreendimento sempre caracterizaram sua abordagem ao trabalho.
Sim, uma vez – lembro-me – ele respondeu a uma oferta de emprego em Milão: ele que havia estudado como perito têxtil foi convidado para testar um produto. Ele escolheu percorrer a pé, ida e volta, todo o corso Buenos Aires, e entrevistar cada estabelecimento, num período em que ainda não existiam as pesquisas de marketing.
Depois da guerra reencontrou em Florença uma amiga de infância, de cujas longas tranças ele se lembrava, que se tornou sua esposa (Rina Lattes, ndr). O que os uniu até as suas mortes, com dois meses de distância?
Na minha mãe encontrou uma figura feminina para amar, para toda a vida. Uma pessoa que podia assumir o lugar de sua mãe, abraçada pela última vez na plataforma de Auschwitz em 23 de maio de 1944, com quem reconstruir o núcleo de uma família dilacerada e destruída. Uma mulher que ele chamava de ‘mãe’ e que foi capaz de sustentar, com amor, um homem tão sofrido, mas também forte.
Que tipo de avô ele foi?
Um avô amoroso que via nos netos o retorno à vida e a renovação da nossa linhagem.
Como quando meu irmão mais velho se casou em Israel em 1973, eu tinha dez anos e quando ele voltou se empenhou para organizar uma casa para ele e a esposa israelense. Era a primeira vez que voltava à pátria: ajoelhou-se e beijou o chão em frente à escadinha do avião, em Tel Aviv. Ele dizia que se houvesse o Estado judeu na época, nada teria acontecido...
Ele precisava de tempo e distanciamento para falar sobre sua experiência: como respondia à sua “curiosidade” de criança sobre o número A5405 tatuado em seu braço?
O meu pai não falava muito sobre os campos de concentração em família: eu fiquei sabendo de tudo pelos livros em casa e pelas fotos atrozes que continham. Sobre a tatuagem ele dizia: “’Pais esquecidos precisam anotar, é o telefone de casa’. Ele começou a contar a história numa noite de 1977, numa conferência num salão da comunidade judaica. Eu tinha 14 anos. ‘Trouxe uma mala comigo e vou abri-la para vocês’, disse ele.
Ali fiquei sabendo os primeiros detalhes da fuga, prisão e deportação. Foi um dos primeiros sobreviventes a escolher uma comunicação pública: a história do Holocausto, não só na Itália, começou muito tarde.
Fisicamente, de repente, aquele pai naquele palco, de pai privado, virou personagem público.
Uma lembrança pessoal que ainda lhe faz sorrir?
Ele adorava a sociabilidade. Ele ria muito quando assistia o Gordo e o Magro, mas também os filmes de Charlie Chaplin. Lembro-me das noites juntos no sofá.
O que fala de seu pai é também um perfume, que ele continuou a usar.
Sim... aquele dos sabonetes Lifebuoy, de laranja: os empilhava no banheiro, os comprava em Livorno no mercado dos americanos. Eles lhe lembravam do cheiro do homem que o salvou do campo, o primeiro a entrar no barracão. Aquele perfume de limpeza estava ligado ao momento da liberação, do renascimento. Um perfume que, ainda hoje, me mantém ligado a ele de uma forma inexplicável: está gravado em minhas células cerebrais. Dei de presente a mesma barra de sabonete para meu filho mais velho, como amuleto de boa sorte para os exames universitários, para levar com ele. E funcionou.
Num livrinho anotava os encontros nas escolas e os testemunhos públicos: chegou a contar quase mil. Que valor dava à memória?
A sua era a memória de um sobrevivente que, como outros, pedia para não esquecer e não ser esquecido. Não esquecer que muitos foram torturados, mortos, violentados, mas eram sobreviventes. Primo Levi também tinha essa preocupação: de não ser acreditado, como lhe repetiam os soldados da SS.
E hoje, a quem é confiada?
Restam poucos sobreviventes: estamos agora na pós-memória, mantida viva pelas segundas gerações e por quem quer ser partícipe. Ele, como outros, confiou-nos a tarefa de extrapolar as lições da memória, atualizando-as e transformando-as em um código moral de comportamento e juízo. Segui o seu caminho: entre novembro e dezembro realizei 60 encontros, com a alegria de confrontar-me também com as perguntas mais difíceis sobre o que está acontecendo hoje.
Após a libertação, foi a Milão industrial que lhe ofereceu uma nova oportunidade. E deixou para trás uma Florença que ele já não reconhecia mais. O que essas duas cidades representavam?
Era um homem extraordinariamente aberto ao futuro: ensinava a não lutar contra a mudança.
Para ele, Florença representava a Europa madrasta, o túmulo da nossa família. Os EUA eram o novo, uma terra virgem comparada ao câncer representado pelo fascismo e pelo nazismo, a terra dos libertadores. E quando se mudou para Milão, aquela era a cidade italiana mais parecida com os EUA. Depois, quando lhe foi oferecida a possibilidade de um emprego nos EUA, decidiu renunciar por amor à minha mãe.
Uma pergunta que você nunca teve coragem de fazer ou que ele não respondeu?
Gostaria de ter-lhe perguntado mais sobre o seu pai, o avô Olderigo, fascista, cujas memórias são menos enfatizadas nas histórias da nossa família. Meu pai o viu definhar, envelhecer no espaço de algumas semanas em Auschwitz, como aconteceu a Sami Modiano com seu pai. Eu pensava que falar sobre isso o teria feito sofrer demais.
Como encarou seu envolvimento na política?
Mal. Não gostava de política, creio que em parte, por causa da história do avô. Ele queria que eu estudasse arquitetura. Depois, quando me tornei deputado, se apaixonou pelo meu empenho.
E que relação tinha com a religião e o judaísmo?
Era ligado a tradições e ritos, de forma leiga. Ele sempre cantava para a comunidade nas ocasiões da Páscoa judaica: era uma emoção poder cantar como um homem livre em hebraico, com sua voz de tenor.
Naquele canto revivia a libertação da escravidão do povo e a reconquista de uma liberdade que a cada Páscoa deve ser celebrada. Uma tradição que permanece na família.
Que legado ele deixou?
Como diz De Gregori, ‘a história somos nós’: são os nossos comportamentos e as nossas escolhas que determinam quem somos. Ele sempre me repetia para não ter medo. Ele tinha uma grande humanidade, evitava as polêmicas inúteis. Ele me ensinou que as relações humanas são a base de todo futuro.