25 Janeiro 2024
O ensaio de Emmanuel Durand questiona se o Pai emotivo bíblico (mas não só) é apenas uma projeção hipertrofiada do ser humano.
O artigo é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, publicado em Il Sole 24 Ore, 21-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Deus das Escrituras judaico-cristãs é evidentemente “patético” no sentido de que é percorrido no seu ser e agir por um pathos profundo e até desconcertante, diferentemente do gélido Motor Imóvel divino aristotélico. Suas emoções registram toda a gama de reações, desde o frio violeta da raiva (aliás expressa em hebraico com um termo onomatopeico ligado ao "bufar" do nariz, 'af) até o vermelho ardente da compaixão visceral (formulada com a palavra que designa o ventre materno, rahamîm).
Claro que já existe uma tentativa de desmistificar esses perfis típicos do antropomorfismo, como numa passagem de livro dos Números: “Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa; porventura diria ele, e não o faria? Ou falaria, e não o confirmaria?” (23,19). No entanto, em outras passagens bíblicas acontece dele "arrepender-se" e mudar seu juízo e até tornar incompreensíveis algumas de suas reações. É natural que, abandonando o disfarce do literalismo fundamentalista, seja necessário abraçar uma ferramenta hermenêutica correta. Evitará a racionalização que recompõe tanto um rosto frígido e distante de Deus, ou o antípoda da implacável divindade opressora cara a uma certa pregação do medo, quanto uma visão tão tolerante a ponto de resultar quase amoral.
Contudo, a questão subjacente permanece: até que ponto uma definição das emoções humanas pode prestar-se a uma transposição divina pertinente? Tenhamos em conta, de fato, que já há tempo - especialmente com o surgimento da psicologia e da psicanálise – foi abandonada a suspeita do puro e simples irracionalismo, atribuído às emoções, que, em vez disso, se revelam canais adicionais de conhecimento, inteligência e criatividade. No entanto, a questão básica permanece em aberto que uma interpretação autêntica que deve responder: o Deus bíblico emotivo (mas não só) simplesmente é uma projeção hipertrofiada do ser humano? A pergunta é respondida com uma ampla argumentação do teólogo francês Emmanuel Durand, nascido em 1972, professor da Universidade de Friburgo, na Suíça.
Emmanuel Durand. Le emozioni di Dio. Queriniana (Foto: Divulgação)
Ele está ciente que se trata de uma questão delicada porque “a passagem do mítico ao racional é cheia de armadilhas. A empreitada deve ser tentada, mas é oneroso fazê-lo lucidamente no plano intelectual". O percurso proposto é muito ramificado e deve necessariamente basear-se num arcabouço de múltiplas qualidades que revelam diferentes abordagens, exegéticas, literárias, filosóficas, teológicas, psicológicas, em páginas incrustadas de referências sugestivas. Só para exemplificar, pensamos em Agostinho que trata das teorias estóicas, ou na tabela analítica das paixões elaborada por Tomás de Aquino, mas também no inevitável Descartes e outros vários interlocutores privilegiados. Entre esses, não se pode excluir o diálogo com Sartre e sua Esquisse d'une théorie des Emotions (1939) que colocou novamente em discussão “uma certa ingenuidade epistemológica da psicologia experimental”.
No contexto mais específico da hermenêutica bíblica, entre as muitas ideias oferecidas por Durand, gostaríamos de assinalar apenas uma trilogia de abordagens. A primeira é a aquela literária do recurso à metáfora, em vez da tradicional “analogia”, na esteira da conhecida reflexão de Paul Ricoeur. Ela permite ultrapassar da sua pertença primária à retórica para a semântica, segundo “uma translação de sentido baseada numa afinidade criativa entre termos à primeira vista díspares”. Um segundo componente é de natureza primorosamente teológica e tipicamente cristã: é a Encarnação, coração da fé cristológica. As emoções humanas são assumidas realmente pelo Filho de Deus na sua própria carne e, portanto, criam uma interação/intersecção entre humanidade e divindade.
A terceira abordagem sustenta o próprio corpus da obra do teólogo francês: depois de ter delineado nos dois componentes anteriores a epistemologia adotada, são delineadas em um quadro muito vivo as principais inervações emocionais divinas. Inicia-se com a paixão do amor em suas variações como cônjuges e pais, marcadas por eros e ágape. Segue-se, depois, para o terreno plano, mas acidentado, das “paixões convenientes e inconvenientes” para um Deus, que estão, no entanto, registradas nas Escrituras. Assim, entram em ação a ira de Deus, que às vezes tem como corolário um paradoxal arrependimento, e a tristeza expressa em seu lamento que se alimenta de uma vulnerabilidade e sensibilidade em relação à recusa humana e à consequente deturpação da criatura pelo pecado.
Essas e outras emoções têm a sua epifania mais explícita em Jesus Cristo. Assim se retorna à superação do Deus imutável e imóvel em sua transcendência dourada, celebrada por uma determinada teologia clássica. Dante é mais uma vez admirável por não abrir mão dessa transcendência, porém, cruzando-a com a imanência emotiva. Na profissão de fé que fez diante de São Pedro proclama-se a união da perfeita eternidade divina com o amor e o desejo: “Em um só Deus eu creio onipotente, Eterno, que, imutável, os céus move No desejo e no amor sempre clemente. " (Paraíso XXIV, 130-132).
Emmanuel Durand. Le emozioni di Dio. Queriniana, págs. 236, 27€
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As emoções profundas habitadas por Deus. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU