13 Janeiro 2024
"Em particular, perguntamos: o cristianismo é negar e destruir aspectos da nossa vida humana natural, para adquirir a vida em Cristo? Ou é Deus Pai que em Cristo nos procura, nos acolhe, nos liberta, doando toda a sua vida por plena fidelidade ao seu amor por nós? Aquele de Jesus na cruz é sacrifício mortal da melhor pessoa humana, o preço para apaziguar a ira de Deus contra o nosso pecado? Ou é a oferta de si mesmo, até ao fim (“amou-os até ao fim”, Jo 13,1)", escreve Enrico Peyretti, teólogo, ativista italiano, padre casado e ex-presidente da Federação Universitária Católica Italiana (Fuci), em artigo publicado por Il Foglio, 08-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É concebível para nós um cristianismo sem sacrifício? Ou seja, sem a morte sacralizada de algo ou alguém para obter um bem, um perdão, uma salvação? Parece que não, que não é possível.
Uma imagem ampla da religião de Cristo pede-nos que estejamos na cruz com ele, como o preço por ter a vida. Cristo é o homem da cruz, e as cruzes da vida, quer venham, quer as assumamos por nossa conta, como um cilício, pareceram o único caminho para a salvação. As “mortificações”, “atos de morte” voluntários, são indicados como caminho de aperfeiçoamento, para obter os bens da nova vida. Em um nível monstruoso, num Islã mal-entendido, o sacrifício violento, até de si mesmo, contra os "inimigos de Deus", é o acesso ao paraíso.
É evidente uma forte ambiguidade do termo e do conceito de “sacrifício”. Vamos pensar nos sacrifícios religioso de animais, ou mesmo de seres humanos, nas religiões primitivas, mas também presentes na Bíblia.
Graças à morte de outros, de um “bode expiatório”, carregado com os meus pecados, ganho para mim a libertação da culpa. Mas chamamos de sacrifício também aquele de quem expõe e perde a sua própria vida para salvar outra vida, do fogo ou da água: ele se “sacrificou” por outros. Aqui estão duas ações de significado radicalmente oposto: destruir a vida de outra pessoa para salvar a minha; doar minha vida para salvar a vida de outra pessoa. Será necessário superar esse equívoco no pensamento religioso!
Em particular, perguntamos: o cristianismo é negar e destruir aspectos da nossa vida humana natural, para adquirir a vida em Cristo? Ou é Deus Pai que em Cristo nos procura, nos acolhe, nos liberta, doando toda a sua vida por plena fidelidade ao seu amor por nós? Aquele de Jesus na cruz é sacrifício mortal da melhor pessoa humana, o preço para apaziguar a ira de Deus contra o nosso pecado? Ou é a oferta de si mesmo, até ao fim (“amou-os até ao fim”, Jo 13,1), até dar a vida ("não há amor maior...", Jo 15,13), oferta gratuita que o Justo faz para nos salvar de mal, comunicando-nos o novo sopro do Espírito de Deus, assim como o corajoso dá novo sopro a quem está prestes a se afogar ou morrer no fogo? Jesus é aquele corajoso. Se entendermos bem o evangelho, a cruz de Jesus não é o preço pago por nós a um Deus implacável, que não seria um Pai bom. Pelo contrário, é o sinal de que Deus é amor, porque assumiu carne humana em Jesus e ofereceu-a até o fim, para apagar o mal com o amor. O caminho cristão não é “o que é tirado da terra para dá-lo ao céu" (Nietzsche), mas, pelo contrário, é o que Deus perde para doar a nós. Mas também mostra que doar não é perder, mas afirmar vida verdadeira.
A cruz de Jesus é a sua total imersão na solidariedade conosco, com todas as vítimas da nossa maldade, injustiças, discriminação, violências e guerras. E conosco, culpados, para nos curar. Ele mergulhou nos redemoinhos dos afogados para nos levar da morte para a vida. Sua morte não é o fracasso de um generoso ingênuo e iludido, mas é a força do amor que assume a condição dos mais pobres, e até dos culpados que somos nós ("tornou pecado", 2 Cor 5,21, condenado entre os malfeitores). Sua morte é como aquela de alguém que se afoga para salvar um outro, mas na realidade, está vivo com ele, mais do que aqueles que nada fazem pelo necessitado.
No livro do Gênesis o homem, depois do pecado, é expulso do paraíso. No Prólogo de João 1,11, lemos que é o próprio Deus em Cristo quem é expulso de nós, do mundo; que se deixa expulsar, invertendo o mito da expulsão (cf. Paola Mancinelli, p. 145). Deus, sua Palavra e o a sua Luz “veio para o que era seu, e os seus não o receberam”, condenaram-no. Cristo é sacrificado por nós, e esse é o fim de todos os sacrifícios (René Girard), agora já todos indignos. Cristo não pede outros sacrifícios, porque fez o dom de si mesmo, que os torna inúteis, vãos, maus. Pede para estar com ele no amor também aos pecadores, porque é o amor que extingue o pecado. Não é um nosso sacrifício que nos purifica do pecado, mas somente o ato de acolher e praticar o amor que perdoa e cria: “Façam o bem aos que os odeiam” (Lucas 6, 27). Aquele de Jesus não é um sacrifício de morte, para matar o mal, como a guerra absurdamente quer fazer. É um dom total de si mesmo, que cobre e submerge o mal. Só o bem tira o mal. Jesus sofre a cruz, mas da cruz ama a todos, perdoa, comunica o amor que salva, que dá vida.
“Vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus” (Jo 16,2). O mundo quer matar o mal, em nome de Deus, e assim duplica o mal. A vingança pela violência afirma e duplica a violência: a guerra “justificada” (privada ou estatal), que abusa da justiça, é essa diabólica divindade. Vemos isso de novo, hoje em dia, com horror.
Seria Jesus um fracassado diante da força do poder religioso e político que o sacrificou por prestar honra a Deus, à justiça, ao templo, à religião, à verdade oficial, à tradição, à paz imperial? Jesus não é um fracassado, porque o amor com que morre é mais vivo do que todas as pretensões de verdade e de justiça, nas míseras concepções humanas. É por isso que os cristãos acreditam que Jesus é o vivente sobre a morte através da morte, porque o amor que se doa, mesmo morrendo, é uma vida mais forte que a morte. Não há mais necessidade nem espaço para “mortes sagradas”, isto é, obrigatórias, justas, vingadoras, purificadoras, fundadoras, porque o “santo”, aquele que ama até o dom total, não tem aquela tremenda ambiguidade do “sagrado”, da qual as religiões, as ideologias, as civilizações soberbas, terão que se salvar, se libertar. Realmente sagrado é o que há de santo no homem, isto é, o amor universal, sem “justiças” sacrificiais.
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Cristianismo sem sacrifício. Artigo de Enrico Peyretti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU