"Em todo caso, a via constitucional para canalizar o mal-estar social parece chegar a um aparente impasse. Em outras palavras, o mal-estar continua lá, mas o cartucho constitucional terminou de queimar sem alcançar o resultado esperado após os protestos de 2019. Em vez de chegar a uma estabilidade baseada em um novo pacto social inclusivo, é provável que as próximas eleições aprofundem ainda mais o colapso da política nacional".
O comentário é de Noam Titelman, economista formado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile, mestre em Métodos de Pesquisa Social pela London School of Economics and Political Science (LSE) e doutorando pela mesma universidade.
Pela segunda vez, o eleitorado chileno rejeitou um texto constitucional. Se em 2022 o texto foi rejeitado por ser considerado "muito à esquerda", desta vez foi rejeitado por ser "muito à direita". Após isso, não há uma demanda por mero "centrismo", mas subjaz um clima de "Que se danem todos". Esse resultado desorganiza a casa da direita e impacta fortemente as ambições presidenciais do radical José Antonio Kast, embora não organize a casa da esquerda.
Recentemente, o Chile, que costumava ser visto como uma estranha e entediante exceção na política latino-americana, tornou-se foco de atenção pela intensidade de suas disputas eleitorais. Estas confirmaram uma mobilização social antipolítica implacável. O resultado do último plebiscito constitucional em 17 de dezembro confirma essa realidade. Nesta consulta, em que, pela segunda vez em menos de dois anos, o eleitorado chileno teve que escolher entre a favor e contra o projeto constitucional, 55,7% votaram contra e 44,2% a favor.
Não há registro de um caso como este, em que um processo constitucional tenha terminado em duas consultas populares com resultados adversos. Em muitos aspectos, o que aconteceu no Chile é excepcional, mas ao mesmo tempo parece fornecer algumas pistas sobre a intensificação de uma tendência política regional. Dois momentos (e duas imagens) permitem sintetizar esse processo.
Momento 1. No já distante março de 2021, o país estava imerso na campanha eleitoral para escolher seus representantes na Convenção Constitucional, órgão encarregado de redigir uma proposta de nova Constituição para substituir a redigida em 1980 e parcialmente reformada durante a transição democrática. Conforme estabelece a lei chilena, as diferentes forças políticas tinham o direito de transmitir suas mensagens em um espaço televisivo gratuito: a chamada 'franja eleitoral'. Entre os múltiplos candidatos e comerciais de televisão, sem dúvida, houve um que roubou toda a atenção. Tratava-se de uma mensagem com fundo preto em que celebridades e reconhecidos atores e atrizes nacionais pediam votos por uma lista de candidatos independentes: a chamada Lista do Povo. Sua mensagem era claramente definida:
"Sem empresas, sem triangulações, sem mentiras, sem trapaças, sem partidos políticos (...) para salvar a nova Constituição dos mesmos de sempre. Esses partidos que sequestraram a política (...) sequestraram nossa felicidade. Você sente que ninguém te representa e que todos são uns vendidos? Junte-se a nós em 11 de abril e vote na Lista do Povo."
Nas eleições, esta lista teve um resultado espetacular que marcaria o primeiro processo constituinte. Um processo com um grande protagonismo das forças independentes de esquerda que acabaria por produzir uma proposta de Constituição vanguardista em vários aspectos cruciais para o progressismo. Mas a proposta acabaria sendo esmagadoramente rejeitada em um plebiscito pouco mais de um ano depois, com apenas 38% dos votos a favor (a mudança do voto opcional para o obrigatório parece ter acentuado o resultado adverso).
Momento 2. Em dezembro de 2023, o Chile estava novamente em um processo eleitoral. Desta vez, o que estava em votação era uma proposta constitucional redigida por um novo órgão, escolhido após o fracasso da Convenção Constitucional original. Neste segundo processo, um órgão com maiorias claras de direita e extrema direita havia redigido um texto que era o oposto exato da proposta de 2022. Um texto maximalista e com vários elementos programáticos fundamentais para a direita, como a constitucionalização de isenções fiscais, o papel predominante do mercado na prestação de bens e serviços públicos, e uma concepção conservadora da pátria e do patriotismo, entre muitos outros.
Ao contrário do texto anteriormente rejeitado, cujos impulsionadores confiavam até o último momento em sua aprovação, a nova proposta conservadora aparecia em todas as pesquisas predominantemente rejeitada. Diante dessa realidade e com receio de sofrer a mesma sorte que o primeiro processo constituinte, o mundo da direita abandonou uma estratégia de comunicação centrada na defesa do texto. Nesse contexto, no comercial mais impactante da franja eleitoral, aparecia a seguinte mensagem com a voz de cidadãos chilenos, entre bandeiras nacionais e imagens do país em chamas:
"Aqueles que queimaram um país inteiro para ter uma nova Constituição agora querem manter a que existe. Querem manter tudo como está (...) Aqueles que ficaram famosos por exigir uma educação de qualidade para todos agora estão no poder. E o que fizeram? Aqueles que acreditavam que o Chile se curaria com fogueiras nas ruas agora querem continuar com a Constituição que existe (...) Eu vou votar a favor. E que se danem todos."
A discussão em torno do segundo processo constitucional foi marcada por vários elementos que explicam seu desfecho. O fracasso do processo anterior implicou um esforço consciente e sustentado para garantir que desta vez fosse "diferente". No entanto, este segundo intento nunca despertou um interesse significativo por parte da cidadania, que, segundo pesquisas de opinião, permaneceu majoritariamente alheia e cética. Finalmente, observou-se uma crescente presidencialização do novo processo constitucional, à medida que a pré-candidatura de José Antonio Kast, o postulante da extrema direita, se associava cada vez mais fortemente à nova proposta de texto constitucional. O voto a favor, por sua vez, aparecia como um voto plebiscitário contra o governo de Gabriel Boric.
Dessa forma, é possível dividir o segundo processo em três etapas: a lua de mel consensualista, a "Kastituição" e o "Que se danem todos".
Quando o primeiro rascunho de uma nova Constituição foi rejeitado, uma das interpretações frequentes foi que a Convenção Constitucional havia falhado porque havia ido ao extremo (à esquerda), e, portanto, para ter um novo processo bem-sucedido, era necessário garantir maiores níveis de acordo. A mensagem da centro-direita seguia nessa linha. Seus lemas de campanha contra a primeira proposta constitucional eram a favor de "uma [Constituição] que nos una" e "uma com amor", referindo-se ao mandato de unir as diferentes visões do Chile e não se apresentar como defensores do texto de 1980. Ou seja, era uma campanha centrada em uma crítica ao primeiro processo constitucional por ter ido muito à esquerda e deixado de fora amplos setores da sociedade.
Alinhada a essa visão, 77% dos chilenos afirmavam preferir acordos, mesmo que isso implicasse ceder em certos temas, e ao mesmo tempo, 61% percebiam que isso não era o que tinha acontecido. De fato, segundo a pesquisa Cadem, a rejeição ao primeiro texto era majoritária entre aqueles que se identificavam com a direita, no centro e entre aqueles que não se identificavam com o eixo esquerda-direita. Além disso, no final do processo, aumentou a já alta demanda de que especialistas redigissem o texto constitucional, passando de 63% para 80%.
Essa convicção resultou na formação de uma Comissão de Especialistas, designada pelo Congresso, que refletia a diversidade ideológica das forças políticas chilenas. Esses especialistas foram responsáveis por redigir um "anteprojeto" que serviria de subsídio para a discussão posterior entre representantes eleitos na redação da nova Constituição. Talvez o melhor exemplo da força que essa "lua de mel" consensualista teve foi o fato de a comissão ter conseguido aprovar o anteprojeto de forma unânime, com o voto da extrema direita e do Partido Comunista. Esse surpreendente feito contrastava com a dificuldade que a política chilena teve em concordar em quase todas as reformas significativas (como saúde e previdência), paralisando essas discussões ao longo da última década.
No entanto, as expectativas de convergência esbarraram em um obstáculo quando finalmente foi votado para eleger os membros do novo Conselho Constitucional, que utilizariam o anteprojeto dos especialistas como um insumo não obrigatório. O resultado das eleições de 7 de maio de 2023 foi um golpe duro para o novo otimismo das forças moderadas. A centro-direita obteve um resultado muito aquém das expectativas, e a centro-esquerda não conseguiu eleger sequer um representante. Essa última derrota foi especialmente dolorosa, pois a lista de candidatos estava repleta de figuras ilustres da política chilena da transição, com ampla presença de ex-ministros e ex-parlamentares. Sem dúvida, os grandes vencedores dessas eleições foram os candidatos de extrema direita do relativamente novo Partido Republicano de Kast. Assim, não venceram nem a moderação nem a experiência.
O peso da direita – tradicional e radical – implicava que a nova Constituição poderia ser aprovada sem um único voto do centro, da centro-esquerda ou da esquerda. Além disso, a extrema direita conquistava o poder de veto sobre qualquer artigo que fosse discutir. A mesma direita que se opunha à ideia de ter uma nova Constituição – pois defendia a de 1980 – de repente se viu no comando da redação do novo texto.
A mudança no tom do debate constitucional a partir desse momento foi bastante notável. Quando o novo Conselho Constitucional foi instalado, sua presidente, a conselheira do Partido Republicano Beatriz Hevia, repetia insistentemente a importância da unidade e dos acordos. Mas no discurso de encerramento desse mesmo órgão, quando o documento foi entregue para ser plebiscitado, a frase central do discurso final da mesma conselheira foi que esta seria uma Constituição para os "verdadeiros chilenos". No meio, a lua de mel consensual foi quebrada, e, em seu lugar, a nova Constituição carregava a marca indelével do Partido Republicano e, principalmente, a de seu pré-candidato presidencial José Antonio Kast. Se a sorte do "Apruebo" no primeiro processo parecia vinculada em algumas ocasiões ao apoio ao presidente Gabriel Boric, no segundo processo, o apoio ao novo texto movia-se em paralelo ao apoio a Kast, que conseguiu alinhar-se (e à proposta constitucional) a toda a centro-direita e sufocar as poucas vozes de resistência ainda existentes.
O problema era que as pesquisas estavam mostrando sistematicamente uma rejeição majoritária ao segundo texto constitucional. À medida que as forças políticas se polarizavam entre o a favor e o contra, ficava cada vez mais claro que associar uma dessas posições a uma força política era mais um fardo do que um apoio. Cientes disso, as forças de centro-esquerda enfatizavam a ligação do texto constitucional com Kast. A ideia de que era uma "Kastituição", e de um plebiscito pela candidatura presidencial de Kast, mostrou-se um forte obstáculo para a campanha do a favor. A "Kastituição" não conseguia convencer.
Diante dos negativos prognósticos das pesquisas, a campanha do a favor optou por uma nova mudança na estratégia discursiva, refletida em sua propaganda televisiva. Tentando tirar o foco da futura candidatura de Kast, ela tentou capitalizar o sentimento antipolítico da população associando o contra ao governo e, de maneira geral, à política. Não isenta de controvérsias internas, a centro-direita passou de pedir "uma [Constituição] com amor" para o "que se danem" no trecho final da campanha, com claras intenções polarizadoras.
O giro comunicacional parece ter dado resultado. De maneira geral, as pesquisas pareciam mostrar que, à medida que o a favor se afastava da discussão sobre a proposta constitucional e se apresentava como uma rejeição ao governo e à política, aumentava a visão favorável à nova Constituição. Por exemplo, após essa virada comunicacional, a pesquisa Cadem mostrou um aumento de 40%, onde o a favor estava estagnado, para 46%, em 7 de dezembro (última pesquisa disponível antes das eleições). Além disso, poucos dias antes do plebiscito, uma tempestade perfeita de acontecimentos, que incluiu as detenções de dois membros do partido no poder por acusações de corrupção (caso das transferências de dinheiro para a fundação Democracia Viva) e a prisão de um indultado de 2019, acusado de sequestro, consolidou um clima de protesto antigovernamental. Nunca saberemos quantos votos foram mobilizados por esses eventos de última hora, mas o que é inegável é que o contexto imediatamente anterior ao plebiscito não poderia ser mais favorável à estratégia do "que se danem todos".
Para além do que aparece na cédula, as eleições sempre envolvem muitas questões simultaneamente. Isso é especialmente verdadeiro em uma votação na qual está em jogo um texto legal complexo e extenso, como uma Constituição. Portanto, não é surpreendente que, tanto no primeiro rejeição quanto no segundo, fatores contextuais que excediam o debate constitucional desempenharam um papel importante.
Dois são os quadros de interpretação que têm definido a política chilena na última década e que permitem entender os resultados eleitorais recentes. Primeiramente, há uma disputa tradicional que poderia ser classificada como intrapolítica. Em termos gerais, a primeira proposta constitucional era percebida como de esquerda, enquanto a segunda era percebida como de direita. Coerentemente com essa interpretação, as pesquisas mostravam um apoio muito majoritário à primeira proposta entre aqueles que se identificam com a esquerda, mas não em todos os outros setores ideológicos da sociedade, e a segunda proposta constitucional tinha nos identificados com a direita o único setor ideológico onde se observava uma clara maioria de apoio.
O problema com esse quadro interpretativo pode ser sua insuficiência. Isso é especialmente verdadeiro devido ao progressivo abandono pela população chilena dos quadros ideológicos tradicionais da política. De acordo com dados do Centro de Estudios Públicos, a porcentagem de pessoas que se identificavam com algum partido caiu de 53% da população em 2006 para 19% em 2019. Da mesma forma, a porcentagem de cidadãos identificados com algumas das posições do eixo esquerda-direita caiu de 88% na década de 1990 para apenas 38% em 2019. Ou seja, para além das preferências daqueles que se identificam com a esquerda ou com a direita, a enorme maioria dos chilenos não se identifica com nenhuma delas, e é um quadro anti ou extrapolítico que os mobiliza. Essa situação foi exacerbada pelo fato de que o primeiro plebiscito constitucional coincidiu com o início do voto obrigatório no Chile, que trouxe a incorporação de entre quatro e cinco milhões de novos eleitores, com baixos níveis de relação histórica com a política.
Dessa forma, o estudo do Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social (COES) mostra um novo universo de eleitores com ainda menos identificação com o eixo esquerda-direita, com uma visão mais antelitista e com posições mais tradicionalistas ou conservadoras quando se trata dos chamados "temas sociais". Por outro lado, a pesquisa UDD mostra que esses novos eleitores tendem a ser mais religiosos e a dar mais importância à sua religião. Em questões como ordem e segurança pública, aborto e diversidade sexual, esses eleitores apresentam posições que tipicamente se associam ao conservadorismo chileno, mas enquadradas em um forte antelitismo e uma identificação muito baixa com os espaços de mediação política. Esses novos eleitores, de acordo com um estudo recente de David Altman et al. (2023), se inclinaram esmagadoramente pelo rejeição no primeiro processo. Ou seja, em termos do quadro interpretativo que mobiliza esses novos eleitores, era possível explicar seu voto tanto por um sentido antipolítico quanto por preferências ideológicas mais tradicionalistas.
A vitória do contra sepulta definitivamente a ideia de que apenas apelando aos seus posicionamentos tradicionalistas a direita poderia convocar esses eleitores sem se dar conta de que seu sentido antipolítico aponta igualmente para eles e para a esquerda. Em outras palavras, nessas eleições, os eleitores chilenos parecem ter dito "Sim, que se danem", mas adicionaram "que se danem todos". Nem a direita nem a esquerda parecem capazes de conduzir esse sentido antipolítico.
O resultado do plebiscito marcará os próximos passos eleitorais em direção às eleições presidenciais de 2025. Por um lado, a centrodireita se entregou completamente a Kast. Após este plebiscito, o desconforto dos setores liberais e institucionalistas aumentará e provavelmente se traduzirá em algumas tentativas de rebeldia.
Nos partidos de direita, a derrota do texto desordena a casa e permite a emergência de lideranças mais moderadas; em particular, surgiu a figura da prefeita Evelyn Matthei, que manteve uma posição de apoio muito mais tímida à proposta constitucional – quase sem campanha – e tem se consolidado como a alternativa moderada a Kast.
Por outro lado, o governo e a esquerda enfrentam um cenário que torna muito difícil avançar com sua agenda. Embora o resultado possa ter freado um ressurgimento da extrema direita, também consolida o ambiente antipolítico. O pior que poderiam fazer é interpretar isso como um apoio às suas ideias, como fizeram na direita com sua maioria no Conselho Constitucional. No final, o "contra" da esquerda foi uma posição muito desconfortável, já que ao triunfar permanece em vigor a "Constituição de Pinochet", que, embora muitas vezes reformada, foi um dos alvos dos protestos de 2019.
O debate constitucional estava condenado a terminar como terminou, ou poderia ter havido uma trégua entre elites com apoio popular? Uma pista para responder a essa pergunta está no fato de que, concluída a discussão constitucional, os atores mais bem avaliados eram os especialistas que tiveram um papel no início e chegaram a um acordo transversal. A antipolítica também tem sua versão "especialista" ou técnica. O sentimento antipolítico não é o mesmo que o antielite. Muitos se perguntarão hoje se era possível de alguma forma manter a lua de mel consensual que marcou o início do processo.
Em qualquer caso, a via constitucional para canalizar o mal-estar social parece chegar a um aparente impasse. Em outras palavras, o mal-estar continua lá, mas o cartucho constitucional terminou de queimar sem alcançar o resultado esperado após os protestos de 2019. Em vez de chegar a uma estabilidade baseada em um novo pacto social inclusivo, é provável que as próximas eleições aprofundem ainda mais o colapso da política nacional. É possível que o Chile esteja se aproximando de um momento semelhante ao "Que se vayan todos" argentino. Afinal, "que se vayan" ou "que se jodan" não parece muito diferente.