13 Setembro 2023
"A experiência dos trabalhadores chilenos com os cordões industriais, apesar de suas contradições e limites, deve ser tomada como uma autêntica experiência revolucionária", escreve Gabriel Teles, doutorando em sociologia na USP e professor de sociologia no Instituto Federal de Goiás (IFG), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 10-09-2023.
“Porque esta vez no se trata
de cambiar un presidente
será el pueblo quien construya
in Chile bien diferente…
Ya nadie puede quitarnos
el derecho de ser libres
y como seres humanos
podremos vivir en Chile”
(Inti-Illimani, Canción del Poder Popular).
O período de governo (1970-1973) de Salvador Allende, ancorado na política da Unidade Popular, aparece como uma grande experiência histórica no seio das tramas políticas latino-americanas ao longo do século XX. Os latentes embates políticos, as especificidades via institucional para o “socialismo”, a participação popular em assuntos governamentais e a reação de alguns setores da burguesia ante a um governo que não atendia alguns de seus interesses imediatos, são elementos que chamaram a atenção de numerosos estudiosos, pesquisadores e militantes de diversas matizes teóricas e expressões políticas.
Muitos destes, bem-intencionados ou não, criam verdadeiras apologias do governo Allende, analisando toda uma experiência histórica, rica e complexa, tão-somente a partir daqueles que estão na cúpula do poder institucional; como se um processo de transformação social, que objetiva criar novas formas de sociabilidade e organização dos seres humanos, pudesse ser feita a partir de uma minoria dirigente alocadas em formas de organização hierarquizadas e essencialmente capitalista. Enfim, dentro do estado capitalista em suas velhas instituições e velhas práticas dominantes.
À vista disso, análises que partam da perspectiva do movimento operário e demais classes e setores explorados chilenos daquela época, radicalizados e auto-organizados em sua luta, são poucas e negligenciadas por grande parte dos pesquisadores e militantes. Diante deste cenário, as nossas contribuições vão ao sentido de resgatar as experiências dos trabalhadores em suas lutas contra o capital e contra aqueles que dizem representá-los. Nesse sentido, apresentaremos brevemente a experiência de auto-organização dos trabalhadores chilenos conhecida como Cordões Industriais.
A experiência dos cordões industriais não pode ser compreendida negligenciando o histórico de lutas do movimento operário chileno e sua relação com a totalidade das relações sociais do modo de produção capitalista. Nesse sentido, empreender a análise da forma como o capitalismo assume em terras chilenas e sua relação com o movimento operário é apreender a dinâmica das lutas de classes e a correlação de forças entre as classes sociais, sobretudo a classe operária e a burguesia, na esfera da produção.
O Chile, bem como os demais países latino-americanos, desde o início da acumulação primitiva de capital a partir de saques da Europa sobre as colônias (MARX, 2013), faz parte do processo da construção e ampliação do capitalismo. Inicialmente enquanto colônia e posteriormente como um país inserido na divisão internacional do trabalho, o Chile se conforma ao bloco de países de capitalismo subordinado. Isto significa que com a crescente ampliação e expansão do domínio do capital, os países capitalistas europeus que se industrializaram inicialmente, devido à acumulação primitiva de capital, conseguem manter uma subordinação dos países capitalistas retardatários, como é o caso do Chile.
Portanto, o capitalismo chileno é subordinado e dependente, concatenado às formas de exploração internacional que a cada regime de acumulação constitui. É a partir do regime de acumulação intensivo, que se inicia no final do século XIX e vai até a II Guerra Mundial (VIANA, 2009), que o neocolonialismo dá lugar para a nova dinâmica de exploração internacional: o imperialismo, calcado na exportação de capital-dinheiro (BENAKOUCHE, 1980). Este processo irradia-se em toda América Latina e reconfigura a forma como engendra a produção capitalista nos países latino-americanos, sendo o Chile uma experiência notória deste processo.
É neste bojo de múltiplas determinações que o movimento operário chileno se confronta ao longo de seu desenvolvimento histórico no século XX. Logo após a Guerra do Pacífico (1879-1884), o Chile se insere e se integra efetivamente no capitalismo internacional a partir de sua massiva produção de salitre, sendo o único produtor do mundo. Durante muito tempo a produção de salitre será o grande dinamizador do conjunto da economia chilena (CURY, 2013), desenvolvendo, aos poucos, um exército de força de trabalho operária que culmina, posteriormente, em sua cristalização a partir da exploração de minérios em várias regiões do país.
Progressivamente, ao longo da primeira metade do século XX, o cenário econômico chileno vai se reconfigurando na medida em que ocorre um grande impulso para a industrialização, o que significou um exponencial aumento de estabelecimentos manufatureiros, de indústrias e fábricas. Do ponto de vista populacional, em 1926 havia 84.991 trabalhadores operários alocados em diversas áreas de produção. Já em 1940 este número sobe para 287.872 e culmina, em 1949, com 389.700 (CORREA; FIGUEROA, 2001, p. 162). A condição de “superexploração” (MARINI, 2000) a que foram relegados os países de capitalismo subordinado, cria condições precárias e intensas jornadas de trabalho, provocando resistência por parte dos explorados e oprimidos.
Nesse sentido, o movimento operário chileno, ao longo de sua luta de resistência e, em alguns casos, de negação do capital em vias de transformação social, reflete a correlação de forças entre as classes sociais, o desenvolvimento das contradições capitalistas e as possibilidades de emancipação. Algumas experiências são marcantes para a história do movimento operário chileno, tais como algumas greves e mobilizações como a Domingo Rojo (1905), Santa María de Iquique (1907), San Gregorio (1921) e entre outras.
Entre os países latino-americanos até meados da década de 1970, o Chile se apresentou como o país com maior tradição democrática consolidada, respeitando a dinâmica institucional capitalista, sem muita fissura em sua coerência interna. Mas é com a vitória da coalização da Unidade Popular (UP) nas eleições presidenciais de 1970 que ocorre um processo de intensificação das lutas de classes, onde cada classe social manifesta sua correlação de forças e seus interesses.
Allende ganhou as eleições presidenciais do Chile em 1970 com apoio da Unidade Popular. [i] A Unidade Popular visava a “construção do socialismo” pelos moldes institucionais, congregando uma maior participação política dos trabalhadores. Apostava também na tomada do poder legislativo e executivo, além de visar o desenvolvimento da economia por meio da nacionalização de áreas econômicas tais como o setor de minérios, comércio exterior, sistema financeiro, monopólios de distribuição, monopólios industriais, distribuição de energia elétrica, bancos, etc.
Essa política de nacionalização das indústrias foi implementada com o propósito de reduzir a dependência econômica em relação ao capital estrangeiro. Nesse sentido, após as eleições vitoriosas da Unidade Popular, instituiu um programa para a divisão dos setores da economia em áreas de gestão específicas. A Área Social seria controlada pelo Estado, a Área Mista jungia o Estado e setores privados, e a Área Privada que coligava pequenas e médias empresas, sendo estas últimas protegidas de possíveis tentativas de expropriação por parte do operariado.
É neste programa que aparece a questão da participação política dos trabalhadores. No entanto, esta participação só se deu nas áreas sociais e em algumas indústrias e empresas das áreas mistas, onde o Estado tinha maior poder de decisão. Por consequência, o grosso da população operária, que ainda se localizava nas áreas privadas, permaneceu sem qualquer forma de participação.
Esta participação política, entretanto, não se configurou um efetivo controle operário sobre os meios de produção das indústrias chilenas. O programa, que foi na realidade elaborado pela CUT (Central Única de Trabajadores de Chile) em colaboração com o governo de Allende, limitou a participação dos trabalhadores a meros espaços consultivos, sem poder de decisão e deliberação, uma autoridade ainda mantida principalmente nas mãos da burocracia estatal.
Este foi, sem dúvidas, um dos fatores que fizeram uma parcela da classe operária chilena daquela época, à medida que ia avançando suas lutas, a gradualmente perder suas esperanças na Unidade Popular e suas ações que minavam qualquer tipo de autonomia e auto-organização do movimento operário.
Qualquer tipo de ação dos trabalhadores que extrapolassem as vias institucionais, qualquer tipo de radicalização, expressão das iniciais formas de auto-organização e tomada de suas consciências revolucionárias, eram afligidas pelo governo de forma incisiva. A CUT, a maior central sindical da época, ligada umbilicalmente a Unidade Popular, sendo correios de transmissão dos interesses estatais nas fábricas e industrias, servia como um verdadeiro amortecedor da ação radicalizada dos trabalhadores e um grande vetor de desmobilização em geral.
A situação política do país se intensifica mais ainda com a greve patronal de outubro de 1972, medida dos empresários donos dos meios de circulação fundamentais do país (tanto o transporte de mercadorias quanto o transporte urbano de pessoas). Os responsáveis pela articulação da greve patronal, além das transportadoras, foi o conjunto do empresariado chileno, as confederações industriais e as multinacionais do setor de minérios. Tal articulação tinha como aval e patrocínio, o governo norte-americano, [ii] que via tanto nas medidas do governo de Salvador Allende a curto-prazo, quanto nas crescentes e radicalizadas mobilizações dos trabalhadores a médio/longo-prazo, uma ameaça aos seus interesses imediatos no caso do Governo Allende, e dos interesses da própria manutenção do modo de produção capitalista em geral, no caso das mobilizações dos trabalhadores.
A paralização do setor de transporte prejudicou todo o sistema de distribuição e abastecimento, trazendo para a população em geral e, de forma mais profunda, para as classes exploradas, uma crise de consumo, desde a básica alimentação até o transporte coletivo que os levavam para o trabalho. Como agravante, a SOFOFA (Sociedad de Fomento Fabril) e a confederação do comércio varejista e pequena indústria instruem as fábricas a se solidarizarem com a greve das transportadoras e paralisarem suas atividades; a Confederação da Produção e do Comércio conclama a não abertura do comércio.
Muitos sindicatos, organizações autônomas e ramificações de movimentos sociais tomam posição e entram em greve: proprietários de ônibus, Conselho de Medicina, dentistas, engenheiros, contadores, bancários, oficias da marinha mercante, algumas associações de engenheiros e técnicos, a Ordem dos Advogados, alunos farmacêuticos, algumas associações de técnicos da Marinha Mercante, os taxistas, os estudantes da Universidade Católica e uma parte dos estudantes secundários da Universidade do Chile. Nas ruas, grupos de extrema-direita atacaram os caminhões em operação, disseminando miguelitos (dispositivos que danificam os pneus) e realizaram 52 ataques contra torres de transmissão de energia, linhas ferroviárias e empresas estatais.
Nesse sentido, os proprietários de caminhões, passo a passo, obtiveram o apoio das organizações patronais bem como uma expressiva parcela das classes auxiliares da burguesia chilena (“classe média”). Em síntese, a greve patronal significou a resposta da burguesia daquele momento histórico vivido no Chile, colocando em cheque tanto o governo de Salvador Allende, quanto as iniciais formas de organização e mobilização dos trabalhadores. A reação do governo ante à situação das greves patronais expressou, de forma clara e sistemática, a sua política burocrática e sua posição de colaboração com a burguesia nacional. Allende adotou a conciliação com a burguesia e demais classes auxiliares da mesma, medida presente em praticamente todo o seu mandato.
A primeira medida foi a mudança da linha econômica do governo, demitindo o ministro Pedro Vuskovic, independente, para assumir Orlando Millas, do Partido Comunista, objetivando frear as nacionalizações, congelar os salários e negociar um acordo com a Democracia Cristã (DC), partido de “oposição”, a propósito da extensão das propriedades sociais. O resultado disso foi que, das 120 inicialmente previstas para passar à área de propriedade social, restariam apenas 49. [iii]
A segunda medida, mais dura e em franca oposição aos trabalhadores, foi outro acordo com a Democracia Cristã para a inclusão de comandantes das Forças Armadas ao gabinete no executivo. Este gabinete, cívico-militar, tinha dois objetivos: garantir as eleições parlamentares de março de 1973 e devolver as fábricas ocupadas durante a greve patronal (adiante, falaremos sobre estas ocupações). O conjunto destas medidas ficaram conhecidas como plano Prats-Millas, em “homenagem” aos seus articulares, o general Prats, comandante do exército, e Orlando Millas, o novo ministro da economia.
Como podemos observar, o governo da Unidade Popular preocupou-se tão-somente com conservar o seu governo, deixando às claras seus reais interesses e sua máxima conciliação com a burguesia nacional, bem como sua oposição ao processo de aprofundamento das lutas operárias, servindo como uma importante ferramenta de desmobilização popular.
Nesse contexto, os trabalhadores enfrentavam uma desafiadora dualidade de objetivos. Eles precisavam responder e resistir tanto ao avanço do capital internacional, com suas práticas tradicionais de exploração e estratégias inovadoras de dominação, quanto à burocracia estatal e sindical que, aparentemente, se autodeclarava como um governo popular, de orientação “socialista” e supostamente em representação dos trabalhadores.
A reação de parcela da classe operária e demais trabalhadores explorados foi a radicalização. O rompimento absoluto com a institucionalidade e o desenvolvimento, mesmo que embrionário, da auto-organização de suas lutas. A criação e o desenvolvimento dos Cordões Industriais é resposta e consequência direta desta conjuntura, tanto de ataque do capital quanto daqueles que dizem representar os trabalhadores. É esta resposta bem como seu processo e suas consequências que veremos a seguir.
O esboço e criação do primeiro cordão industrial nos arremete ao final de junho de 1972, antes mesmo da greve patronal de outubro, onde os cordões industriais se alastram por todo o país, criando um impacto político sem precedentes na história chilena. É importante expressar aqui este processo, demonstrando que a radicalização das lutas operárias chilenas é fruto de um acúmulo de experiências, imbuídas de contradições e avanços.
Em meados de abril de 1972, começa um processo de constituição de colaboração e solidariedade política organizada por diversos movimentos populares da região industrial de Cerrillos-Mapú. Esta região abarcava uma grande concentração de indústrias, bairros populares e acampamentos (sem-teto), onde todos eles apresentavam graves problemas de infraestrutura (transporte, escola, hospitais e etc.) e abastecimento. O estopim da revolta da população desta população foi o precário serviço de transporte público oferecido pela municipalidade.
O conjunto dos movimentos populares, trabalhadores e diversas direções de partidos políticos convocaram a população a tratar do problema, debater uma plataforma política e organizar um Conselho Comunal de Trabalhadores, tendo como inspiração a organização e experiência dos sovietes da revolução russa. Este conselho organizou um documento a ser entregue às autoridades locais que não compareceram à atividade. Sob a organização e mobilização feita sobretudo por operários que viviam e trabalhavam na comuna, a principal deliberação do documento foi a necessidade de “suplantar ambos – la Municipalidade y el Alcalde – por um organismo paralelo próprio de los Trabajadores, o Consejo Comunal” (PESTRANA; THEREFALL, 1974, p. 110-11).
Embora o êxito inicial do conselho, as exigências não foram acolhidas em sua totalidade por parte do governo e nem a mobilização da população em geral conseguiu se manter. No entanto, uma parte daquele conjunto de movimentos, continuaram a ser organizar e, em junho de 1972, com o processo de greves e de ocupação das indústrias Perlak (conserva de alimentos), Polycron (química industrial e fibras sintéticas) e El Mono (alumínios), a população da comuna de Maipú retorna a se mobilizar. De acordo com Elisa de Campos Borges (2014), os trabalhadores fizeram denúncias contra os proprietários das empresas, acusando-os de promover boicotes à produção, realizar vendas no mercado negro, reduzir a compra de matérias-primas e até mesmo esconder produtos, o que contribuiu para a escassez de bens no mercado.
A principal demanda dos trabalhadores era a intervenção do governo nas indústrias e sua incorporação nas Áreas de Propriedade Social (APS). A proximidade geográfica das empresas e o apoio fundamental da população local acabaram por incentivar a formação de uma coordenação conjunta no movimento.
O Governo Allende, querendo manter a legalidade de seu governo, estabeleceu inúmeras barreiras para evitar a estatização das empresas demandadas pelos trabalhadores. Consequentemente, esse processo começou a gerar desilusão entre os trabalhadores, especialmente devido à crise nas negociações com os representantes do Estado. Esse contexto propiciou a criação de um Comando de Coordenação das Lutas dos trabalhadores do Córdon Industrial Cerrillos-Maipu. Tal movimento surgiu durante uma reunião que contou com a presença de trabalhadores de cerca de 30 empresas, sendo notável a participação em massa de trabalhadores autônomos, além de alguns ligados aos partidos de esquerda chilena. No total, esse grupo englobou aproximadamente meio milhão de trabalhadores.
Foi criada uma plataforma do Comando de Coordenação de Lutas [iv] contendo 10 pontos, buscando articular pautas comuns a camponeses, plobadores e operários: (i) apoiavam o governo e o presidente na medida em que ele representasse as lutas e mobilizações dos trabalhadores; (ii) exigiam a expropriação das empresas monopólicas assim como daquelas que não cumprissem os compromissos laborais; (iii) controle operário da produção por meio da constituição de Conselhos de delegados eleitos pela base; (iv) aumento de salários; (v) dissolução do Parlamento; (vi) instalação da Assembleia Popular; (vii) criação da Empresa Estatal da Construção com controle de “pobladores” e operários; (viii) ocupação de todos os fundos expropriados e controle camponês mediante conselho de delegados; (ix) solução imediata aos moradores dos acampamentos; (x) expressavam repúdio aos patrões, à burguesia, ao poder judicial, à controladoria, ao parlamento e aos burocratas do Estado.
De acordo com Cury (2013, p. 290), “[…] o outro elemento significativo da formação deste Cordão foi a demonstração da congregação das formas de luta com os objetivos presentes na lógica de ação dos trabalhadores num claro enfrentamento aos limites estabelecidos pelo sistema. Tratou-se do primeiro cordão industrial cujo êxito de organização inspirou outros diversos movimentos por Santiago e pelo restante do país. A mobilização se deu, assim como em grande parte dos casos, devido a conflitos trabalhistas nas empresas daquele setor específico e a problemas no abastecimento”.
Trancoso (1988) demonstra que o Comando Coordenador/Cordão Cerrillos foi o primeiro esboço de uma coordenação geográfica dos trabalhadores chilenos e que romperam com os canais e instituições sindicais. É aqui que se encontra o que o autor vai chamar de “autonomia classista”, apesar de não esclarecer o que significa esta expressão. Em nossa perspectiva, no entanto, podemos dizer de forma mais precisa que esta experiência significou um inicial rompimento com a burocracia estatal apontando para a auto-organização. Ainda, nesta época, existia um apoio ao governo Allende, mas só quando este contribuísse para a luta e mobilização dos trabalhadores.
Com a chegada da greve patronal de outubro de 1972, os trabalhadores já haviam experimentado organizações de forma autônoma. Nesse sentido, a reação às consequências da greve (desabastecimento, ataques e atentados da direita, sabotagens, mercado negro e etc.), foi imediata e surpreendente, tanto para a burguesia, que percebia uma sólida organização de resistência dos trabalhadores, quando a burocracia estatal, que percebeu que a luta dos trabalhadores extrapolava a dinâmica institucional capitalista.
A resposta dos trabalhadores foi a massiva e generalizada tomada de fábricas e a consolidação dos cordões industriais em todo o território chileno. A tomada de fábricas não obedeceu nenhum critério utilizado pelo governo Allende; indistintamente as fábricas foram ocupadas, sobretudo as das áreas privadas, onde os trabalhadores não tinham nenhum controle sobre a produção. Por meio das ocupações se enfraquecia a posição dos patrões dentro de suas próprias fábricas e se potencializavam as coordenações de trabalhadores. Nasceram assim os cordões de Vicuña Mackenna e Estación Central em Santiago e de Hualpencillo, em Concepción, em consequência da paralisação de outubro.
Não há dúvidas que a inicial tomada e ocupação de fábricas foi fruto de uma tentativa de ajudar o governo a superar as dificuldades da greve. Contudo, com o desenvolver das ocupações e das novas formas de solidariedade entre os trabalhadores e as populações dos cordões, ultrapassaram todas as expectativas em relação aos seus objetivos iniciais.
Os intentos da burguesia em fomentar o caos foram predominantemente impedidos pelos esforços dos trabalhadores e da população em geral, que, por iniciativa própria, colocaram os meios de produção em operação por meio de uma auto-organização eficaz. Allende, como já dissemos anteriormente, busca a saída da crise a partir da conciliação com a burguesia; nesse sentido, diminui o número de fábricas a serem nacionalizadas (de 120 para 43) e coloca o exército para garantir o cumprimento dessa medida. No entanto, como o grande número de apoiadores do governo eram trabalhadores, não podia se utilizar da repressão para retomar as fábricas recuperadas e estabilizar o seu governo frente aos acordos que firmara com a Democracia Cristã e a burguesia. Nesse sentido, o governo da Unidade Popular utiliza da burocracia sindical, a Central Única del Trabajadores de Chile (CUT), para tentar cooptar e convencer os operários a retrocederem e saírem das fábricas ocupadas.
Ainda assim, os representantes da CUT, ao tentarem convencer os operários a desocuparem as fábricas e voltarem a confiar no governo Allende, são recebidos com vaias e respostas expressando a recusa a burocracia e a necessidade de avanço para auto-organização dos trabalhadores.
É emblemática a discussão entre um operário e um burocrata da CUT no famoso e clássico documentário A Batalha do Chile do cineasta Patrício Guzmán: o operário, em resposta ao sindicalista da CUT, demonstra que a ocupação das fábricas não trata-se tão-somente de uma defesa do Governo Allende; significa, mais do que isso, um processo de transformação social a partir dos trabalhadores, que superou a própria institucionalidade e apoio do Estado, já que estes estão alheios aos interesses dos trabalhadores.
Trecho do documentário "A Batalha do Chile", de Patrício Guzmán. (Imagens: Reprodução)
A ocupação das fábricas trouxe, além do controle operário, novas formas de sociabilidade e distribuição de bens consumíveis. A solidariedade entre as indústrias, bem como o intenso debate e intercâmbio tanto de ideias, quanto de experiências laborais, possibilitou novas formas, mesmo que embrionárias, de uma sociabilidade oposta aos valores burgueses e aos interesses capitalistas.
Com a crise de abastecimento causada pelas greves e paralizações patronais, os operários dos cordões industrias em articulação com a população de suas respectivas regiões (muitos deles organizados em comandos comunais), foram responsáveis por estruturar e organizar um novo sistema de relações comerciais para neutralizar o efeito da crise sobre a população. Assim, se incumbiram de tomar os comércios, a se responsabilizarem pela distribuição e pelo transporte; na utilização do caminhão da fábrica para transportar leite às poblaciones, na organização das feiras populares, no intercâmbio de produtos e de matérias-primas entre as fábricas, e na formação de comitês de defesa com pobladores e operários contra possíveis ataques.
Com um pouco mais de um ano existência, os cordões industriais conseguiram agrupar grande parte do operariado chileno. Em Santiago, se organizaram os seguintes cordões: Cerrillos e Vicuña Mackenna, O'Higgins, Macul, San Joaquín, Recoleta, Mapocho-Cordillera, Santa Rosa-Gran Avenida, Panamericana Norte, Santiago Centro e Vivaceta. Em Valparaíso foram desenvolvidos os Cordón Puerto, Cordón Centro, Cordón Almendral, Cordón Quince Norte, Cordón El Salto, Cordón Concón e Cordón Quintero-Ventanas. Ainda se desenvolveram em cidades como Arica, Concepción, Antofagasta e Osorno (BORGES, 2011).
E como se dava a auto-organização dos trabalhadores dos cordões industriais? Após a criação e consolidação dos cordões, os trabalhadores começaram a sistematizar a forma de organização. Segundo Trancoso (1988), começa-se a adotar, a partir do primeiro semestre de 1973, um modelo orgânico, com especificidades locais de cada cordão industrial: (a) Assembleia de Trabalhadores de cada indústria ou empresa por Cordón, que elegeria de 2 a 3 representantes para o seu Conselho, não necessitando ser um representante sindical; (b) Conselho de delegados do Cordón; (c) Direção do Cordón Industrial que era escolhida por eleição no Conselho de Delegados. Esta “direção” (com caráter executiva, não deliberativa) englobava a presidente e Secretarias de organização, agitação e propaganda, defesa cultura e imprensa.
Nesse sentido, era nas assembleias que eram deliberadas as ações de cada cordão. Devido à pouca documentação e registros, é difícil analisar a dinâmica interna de cada cordão industrial. Mas podemos dizer em linhas gerais que as formas de organização variavam de região para região. Alguns cordões, mais avançados, conseguiram desatar o nó e desvencilhar da burocracia sindical e partidária; outros, porém, mantinham uma grande influência de lideranças sindicais e partidárias – como é o caso do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), com tendência trotskistas e influências da revolução cubana. Mas em ambos os casos, a insatisfação dos trabalhadores com seus representantes lhe permitia eleger outro delegado. Em síntese, as reuniões dos cordões em geral eram abertas, livres, e muitas vezes contavam com a participação de pobladores da região.
No primeiro dia de fevereiro de 1973, divulgado pelo jornal Tarea Urgente (1973), surge a primeira plataforma de luta em conjunto dos Cordões Industrias do período com as principais bandeiras e orientações para os trabalhadores das várias indústrias que compunham o movimento: (1) A luta pela transição para o setor social, realizada pelos trabalhadores de todas as empresas relacionadas à produção de produtos básicos, alimentos e à indústria de materiais de construção. (2) A luta pela expropriação imediata das grandes distribuidoras privadas. (3) A expropriação de todas as propriedades rurais que excedam 40 hectares e tenham acesso a irrigação básica. (4) Estabelecer o controle operário da produção no setor privado e o controle popular da distribuição. Os trabalhadores participarão das decisões sobre a produção destinada ao povo, os lucros e a distribuição de alimentos. É incentivada a formação imediata de comitês de supervisão operária em todas as indústrias privadas.
(5) Não devolver qualquer indústria que esteja nas mãos dos trabalhadores e retirar imediatamente o projeto Millas. (6) Distribuição direta da cesta básica para o povo por meio de Armazéns Populares. Propõe-se a criação de uma única distribuidora estatal. (7) Formação de uma comissão bipartite, Governo-Povo, encarregada do planejamento, execução e controle do abastecimento. (8) Conferir poder sancionatório às Juntas de Abastecimento e Preços (JAP) e aos Comandos Comunais para supervisionar a distribuição aos comerciantes e punir aqueles que não vendam, acumulem ou especulem. Exige-se o fechamento de negócios e a venda direta aos habitantes locais. Os trabalhadores dos Cordones Industriales se mobilizarão para fazer valer esse poder.
(9) Garantir trabalho estável e seguro para os trabalhadores da construção civil. (10) Criar uma empresa estatal de construção que gerencie um sistema unificado de planejamento de aquisições, suprimentos e maquinaria. (11) Defender os meios de comunicação que apoiem a luta revolucionária dos organismos de poder dos trabalhadores, moradores e agricultores. (12) Convocar todos os trabalhadores a estabelecer Comandos Industriales por Cordón e Comandos Comunales como a única forma de contar com um órgão de ação eficaz capaz de mobilizar e propor novas tarefas à classe trabalhadora.
Muitas dessas reivindicações entraram em conflito com as políticas e propostas da Unidade Popular, indicando não mais uma oposição inicial ou relativa ao governo, mas uma relação inequívoca de confronto.
Em 11 de setembro de 1973, com o Golpe de Estado executado pelo exército chileno, fez com que bruscamente o avanço dos trabalhadores parasse. A experiência dos cordões industriais durou pouco tempo. Mas neste pouco tempo, o avanço da consciência de classe, a ameaça de rompimento com as relações capitalistas, bem como o desvencilhamento com o governo e muitas das burocracias sindicais e partidária, demonstra o caráter revolucionário desta experiência.
Enquanto o exército bombardeava o Palácio de La Moneda destruindo a resistência do governo Allende, tropas rumavam para os cordões industriais para reprimir e aniquilar qualquer tipo de resistência à ditadura militar que estava porvir. Mesmo com uma inicial resistência por parte dos trabalhadores, a desigualdade de forças fez com que o exército esmagasse toda e qualquer tipo de resistência. Centenas de mortos por parte dos explorados e oprimidos. Aos agitadores, mais avançados politicamente, foram relegados à campos de concentração que se tornaram os estádios de futebol chilenos. As lideranças do governo que sobreviveram, bem como as das demais burocracias partidárias e sindicais, fugiram em exílio para não serem perseguidos. Aos trabalhadores, que não tinham condições de fugir, restou a barbárie e o terror.
À guisa de síntese, podemos dizer que os cordões industriais, como bem disse Cury (2013), podem ser caracterizados como uma organização de caráter territorial conformada por fábricas de diversos setores produtivos que visava, além da organização política, mantendo o permanente debate entre os trabalhadores locais, as ações conjuntas para a manutenção da produção sob o controle dos trabalhadores. [v]
A sua importância está em seu avanço nas lutas operárias chilenas, buscando se auto-organizarem, criando estruturas igualitárias de ação coletiva que entram em antagonismo direto com as relações sociais existentes na sociedade atual:
A auto-organização operária é temida tanto pela repressão a serviço do status quo, como também pela esquerda tradicional, sendo que ambas pretendem, por meio da burocratização e da manipulação da informação, manobrar as organizações operárias. Daí as relações socialistas serem fruto da auto-organização operária unida à consciência social que os trabalhadores tenham de sua prática (TRAGTENBERG, 2008, p. 3).
Os limites desta experiência se expressam tanto pelo não rompimento com a totalidade daquilo que Tragtenberg chama de “esquerda tradicional”, quanto pela dualidade entre o apoio ao governo e o seu rompimento total. Acreditamos que este rompimento total seria consequência direta das próprias ações dos cordões, que a cada dia entravam em antagonismo com as medidas do governo. Infelizmente esta hipótese não pode ser verificada posto a destruição dos cordões pelo golpe do exército chileno, reprimindo os trabalhadores em sua radicalização.
Nesse sentido, podemos relegar a experiência dos cordões industriais, apesar de suas contradições e limites, como uma experiência revolucionária, onde a máxima basilar da AIT, escrita por Marx, foi posta em prática: “A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores!”.
[i] Coalizão política que incluía os partidos Comunista e Socialista, Partido Radical, Movimiento de Acción Popular Unitario (MAPU), Acción Popular Independiente (API) e Izquierda Cristiana (IC).
[ii] O relatório Corvert de ação no Chile indica que a CIA introduziu três milhões de dólares no país no ano de 1972 – uns U$135 milhões atuais.
[iii] É preciso reiterar que as nacionalizações previstas pelo governo da Unidade Popular não representaram mais do que 20% dos trabalhadores industriais chilenos, ou seja, a política de alianças proposta deixava de fora os demais trabalhadores industriais, sem contar os trabalhadores da construção civil, os desempregados, os artesãos, e um largo percentual de trabalhadores rurais não integrados à reforma agrária.
[iv] A partir de outubro de 72, passa a se chamar Cordón Cerrillos.
[v] Devido ao espaço (e por não ser o objetivo do presente texto), não poderemos abordar a questão do Poder Popular. No entanto, o conjunto das ações da população em suas organizações autônomas do governo, ficou conhecida como Poder Popular. Há um rico e complexo debate sobre este ponto, suscitando discussões tanto no calor do momento quanto discussões teóricas acerca do significado do Poder Popular. Em outro momento, apresentaremos uma discussão sobre.
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As lutas autônomas dos trabalhadores chilenos. Artigo de Gabriel Teles - Instituto Humanitas Unisinos - IHU