21 Julho 2023
Passados cinquenta anos do cruel assassinato do cantor e compositor e com a notícia de que o governo dos Estados Unidos revogou a nacionalidade de um dos seus principais autores, está disponível La vida es eterna. La biografía de Víctor Jara (Ediciones B, 2023), sua primeira biografia histórica.
A entrevista é de Juan Carlos Ramírez Figueroa, publicada por Página/12, 20-07-2023. A tradução é do Cepat.
A menos de dois meses das comemorações dos 50 anos do golpe de Estado no Chile, há novidades sobre o caso do assassinato do cantor e artista Víctor Jara. O evento ocorrido no dia 16 de setembro de 1973 – apenas cinco dias depois que a Junta Militar liderada por Pinochet derrubou o presidente Salvador Allende – foi emblemático por sua brutalidade: após prendê-lo na Universidade Técnica do Estado (a atual Universidade de Santiago), foi levado ao Estádio do Chile – que fica nas imediações e muitas vezes é confundido com o Estádio Nacional – e submetido a tortura, queimaduras nas mãos e finalmente morto com 44 tiros.
O ex-tenente Pedro Pablo Barrientos, que se estabeleceu nos Estados Unidos assim que começou a reabertura para a democracia em 1990, acaba de perder a cidadania estadunidense, obtida em 2010, por ter prestado “falso testemunho” no momento da tramitação da nacionalidade assegurando não ter prestado serviço militar ou ter participado de atividades ilícitas, por um lado, e por ter sido considerado responsável pela morte de Jara em um tribunal federal de Orlando, Flórida, em 2016, após uma ação movida pela viúva Joan Turner e suas filhas Manuela e Amanda, por outro.
Estes fatos abrem as portas para a sua extradição e o julgamento em território chileno, além de determinar outras responsabilidades em um caso que, como tantos outros, parece ter sido assimilado pela sociedade chilena como consequência da polarização política daquele momento, apesar dos esforços infrutíferos do governo de Gabriel Boric para buscar a condenação transversal das violações dos Direitos Humanos.
O jornalista espanhol Mario Amorós é o autor de La vida es eterna (A vida é eterna), a primeira biografia histórica dedicada à vida do também ator, acadêmico e ativista político, juntamente com as memórias de Joan Jara (Víctor Jara: un canto truncado e depois Víctor, uma canção inacabada, publicado pela Expressão Popular). Um fato curioso, tendo em conta o amplo reconhecimento da sua figura, do seu projeto social e da forma como se tentou silenciar a sua voz. Aqui podemos ter acesso a informação de primeira mão, juntamente com uma cuidadosa verificação de dados e documentação a nível internacional, marca registrada de Amorós, que também escreveu biografias de Allende, Pablo Neruda, Miguel Enríquez (secretário geral do Movimento de Esquerda Revolucionária, MIR) e Pinochet.
“Resolvi centrar-me na figura de Víctor Jara por ser um membro destacado e representativo da Nova Canção Chilena e do movimento cultural que acompanhou a Unidade Popular”, explicou ao Página/12. “O maior esforço da minha pesquisa foi localizar e consultar a documentação sobre Jara dentro e fora do Chile e poder ter acesso ao sumário do julgamento aberto no Chile por seu assassinato. Posteriormente, processar toda essa documentação, principalmente as milhares de páginas do sumário judicial, foi um trabalho bastante complexo”. Isso incluiu mais de 11.000 páginas do processo judicial aberto no Chile para esclarecer seu assassinato, onde Barrientos evidentemente está incluído.
“Víctor Jara é, sem dúvida, um dos símbolos da música comprometida no Chile, na América Latina e no mundo. O seu talento, a sua capacidade de trabalho e a sua criatividade deixaram-nos uma obra musical que está viva, que sobreviveu à passagem do tempo e que nos emociona porque abordou de forma muito singular e com qualidade indiscutível os temas que comovem o ser humano: a fraternidade, a busca da justiça social, a beleza, a alegria de viver, a denúncia dos abusos dos poderosos, o amor. É o caso de ‘Te recuerdo Amanda’, sua canção mais universal (interpretada por inúmeros artistas de diferentes gêneros), um dos seus versos dá o título à biografia”.
Quais foram as grandes surpresas ou descobertas pessoais ao escrever sobre Víctor? Começo pela primeira coisa: que Víctor nasceu em Santiago, por exemplo.
Sendo uma biografia histórica, o livro aponta com precisão inúmeras passagens e proezas da vida e trabalho de Víctor Jara. Por exemplo, sua decisão, longamente refletida, de abandonar o trabalho no teatro para se dedicar integralmente à música. Foi uma decisão que amadureceu ao longo dos anos e que foi muito difícil para ele. Em outubro de 1965, dirigiu a estreia de “La remolienda” (peça escrita pelo seu amigo Alejandro Sieveking), um dos maiores sucessos do teatro chileno, e a revista Ecran o escolheu como o melhor diretor de teatro daquele ano.
Ao mesmo tempo, já havia começado a cantar como solista na Peña de los Parra, e desde 1966 começou a gravar seus primeiros discos. A recepção de suas primeiras gravações, especialmente “El cigarrito”, foi esplêndida. Era o tempo da música comprometida. Em junho de 1969, um mês depois de dirigir a estreia da obra Viet-Rock, foi colocado à venda seu álbum “Pongo en tus manos abiertas”, gravado, com o acompanhamento de Quilapayún, pelo selo discográfico das Juventudes Comunistas, organização da qual ele era membro há uma década.
Este álbum marcou o início da etapa de sua criação musical engajada politicamente, pois incluía canções dedicadas a Luis Emilio Recabarren (fundador do Partido Comunista), Ernesto Che Guevara, as lutas camponesas (“A desalambrar”, música de Daniel Viglietti), as mobilizações estudantis (“Movil Oil Special”) ou a denúncia da repressão (“Preguntas por Puerto Montt”). Em 1970, Víctor Jara participou intensamente da campanha eleitoral de Salvador Allende, assim como os demais integrantes da Nueva Canción Chilena (Isabel e Ángel Parra, Inti-Illimani, Quilapayún…).
No início de 1970, havia pedido licença como professor titular do Departamento de Teatro da Universidade do Chile (sua fonte estável de renda) para se dedicar integralmente à criação musical (publicou o álbum Canto libre) e para acompanhar com seu violão a Allende e a Unidade Popular (UP). A vitória eleitoral da esquerda e o início do governo da Unidade Popular aumentaram o seu compromisso político e como criador. No final das contas, ele acreditava que a música lhe permitiria atingir um público muito maior do que o teatro.
Amorós explica que, embora por volta de 1967 Jara se definisse como um “cantor de protesto”, posteriormente rejeitou esse termo, por considerá-lo instrumentalizado e manipulado pela indústria fonográfica. “Ao longo do livro aparecem suas reflexões, extraídas de entrevistas, cartas ou outra documentação inédita, sobre sua obra e seu papel naquele movimento popular que, em meio a dificuldades crescentes e com poderosos inimigos dentro e fora do país, lutava para construir o socialismo: “sou um trabalhador da música, não sou um artista. O povo e o tempo dirão se sou artista”, disse em Lima em 29 de junho de 1973. “Neste momento sou um trabalhador e um trabalhador que se situa com uma consciência muito definida como parte da classe trabalhadora que luta para construir uma vida melhor”.
Há outros pontos que você esclarece e explica, mas que ficaram presentes na memória coletiva internacional como essa de que cortaram suas mãos.
De fato, no livro descrevo em detalhes a origem dessa lenda e como ela se espalhou pelo mundo após a publicação do relato de Miguel Cabezas em 2 de janeiro de 1974 no jornal argentino La Opinión. Este texto é um compêndio insuperável de mentiras e exageros macabros, que foi amplamente divulgado, inspirou filmes e músicas, foi incluído em livros e foi reproduzido inúmeras vezes até estabelecer aquela lenda, que Joan Jara sempre desmentiu.
De que forma acredita que Víctor Jara dialoga com a sociedade chilena? Há apenas três anos e meio, os chilenos recorreram a “El derecho de vivir en paz” para os grandes protestos da Explosão Social, não era uma música da atualidade, mas uma música que misturava o rock com a música popular chilena.
É emocionante como, cinquenta anos depois de seu assassinato, a figura de Víctor Jara sobrevive e está viva, assim como suas músicas, dentro e fora do Chile. Sua “presença” na rebelião popular de outubro e novembro de 2019 foi impactante – não gosto da palavra “explosão” –, mas também é impressionante o grande número de eventos que o lembram no Chile e fora do Chile.
Você acha que há uma diferença entre a forma como os chilenos e o resto do mundo percebem Víctor Jara?
Certamente haverá chilenos e chilenos que se incomodam com a memória de Víctor Jara, que é inseparável da memória da Unidade Popular. Mas recordá-lo é um dever e uma bela tarefa que reúne muitas pessoas, dentro e fora do Chile.
Qual você acha que é o desafio que temos como sociedade em relação a Víctor Jara 50 anos depois do golpe que finalmente tirou sua vida?
O 50º aniversário do golpe me parece uma oportunidade para recordar e reivindicar o governo do presidente Salvador Allende, fruto de décadas de luta e trabalho político do movimento popular. Teve uma vertente cultural muito importante, cuja marca (Quimantú, Chile Films, o Tren Popular de la Cultura, a Nueva Canción Chilena, as Brigadas Ramona Parra…) é indelével. É preciso recordar o compromisso de tantos compositores e artistas com um projeto político democrático que buscava construir uma sociedade mais justa.
Víctor Jara fez parte de um movimento político, social e cultural que marcou profundamente a história. “Não há revolução sem música”, indicava a faixa colocada no ato cultural de apoio a Salvador Allende realizado em 29 de abril de 1970 no teatro Caupolicán de Santiago, diante de quase cinco mil pessoas. E assim foi.
A revolução chilena sobrevive na memória universal pela figura de Salvador Allende, pela singularidade de seu projeto político, pela consciência e mobilização do povo que a apoiou e também por algumas músicas que são patrimônio da humanidade. Músicas que, durante os longos anos do exílio chileno e a luta dentro do país pela recuperação da democracia, clamavam pela solidariedade e pela luta contra a ditadura de Pinochet e pela democracia. Músicas que também evocam o tempo histórico da Unidade Popular no Chile, que não é apenas a história de um final trágico, mas que também foi o “tempo das cerejas”, o momento em que a utopia parecia possível...
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“A memória de Víctor Jara é indissociável da memória da Unidade Popular”. Entrevista com Mario Amorós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU