01 Novembro 2023
O líder do EZLN, rebatizado de Galeano em 2014, mata seu personagem em comunicado em que assume um papel menor dentro da guerrilha e abre as portas para uma mudança geracional.
A reportagem é de Alejandro Santos Cid, publicada por El País, 31-10-2023.
O subcomandante Marcos, o homem por trás do rosto encapuzado que simboliza o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), deu mais um passo atrás. O guerrilheiro, líder retórico e político que deu voz, tinta e um toque de poesia às reivindicações revolucionárias daquele grupo de indígenas e despossuídos que se levantou contra a desigualdade em 1º de janeiro de 1994, havia se distanciado da linha de frente zapatista em 2014. Pelo menos no papel: matou o personagem que havia criado, assumiu o nome de Galeano – em homenagem a um companheiro de armas assassinado – e nomeou o subcomandante Moisés, primeiro substituto geracional da organização, como seu sucessor. Ninguém duvidou, ainda assim, que a decisão tinha um caráter mais estético do que prático: o enésimo golpe de Estado de um comunicador com engenho e gosto pelo teatral. Neste fim de semana, a metamorfose continuou com uma carta assinada de próprio punho na qual anunciava a morte, por sua vez, do subcomandante Galeano.
“Galeano morreu. Morreu como viveu: infeliz”, começa a carta, veiculada no portal EZLN e impregnada daquele estilo ácido e autoparódico que caracteriza o tom dos escritos de Marcos desde os anos noventa. O texto é assinado pelo “Capitão Insurgente Marcos”, nova função do ex-vice-comandante, cada vez mais distante retoricamente da primeira página da organização guerrilheira. “É claro que ele teve o cuidado de, antes de falecer, devolver o nome daquele que é de carne e osso herdado de Mestre Galeano. Ele recomendou mantê-lo vivo, ou seja, lutando. Então Galeano continuará caminhando por essas montanhas”.
A morte do velho Galeano, escreve Marcos, “foi algo simples”. “Ele começou a cantarolar algo como 'Eu sei que sou piantao, piantao, piantao' e, pouco antes de expirar, disse, ou melhor, perguntou: 'Os mortos espirram?' E já. Essas foram suas últimas palavras. Nenhuma frase para a história, nem para uma lápide, nem para uma anedota contada diante do fogão. Só aquela pergunta absurda, anacrônica, extemporânea: “Os mortos espirram? (...) Claro que salvamos o funeral. Embora tenhamos perdido o café e os tamales [sic]”.
A declaração de Marcos ocorre em um momento de movimentação interna no EZLN. O dia 17 de novembro marca 40 anos desde a fundação da guerrilha, em 1983. O próximo dia 1º de janeiro marcará o aniversário de três décadas desde o levante armado, quando rifles, balaclavas e seu discurso contra a globalização invadiram as salas de metade do mundo graças a globalização, num desses paradoxos complicados do mundo moderno. As duas datas, de enorme importância dentro de uma organização que dá grande peso ao simbolismo, parecem apontar para uma mudança geracional.
Fontes próximas ao grupo especulam há meses com uma transferência de poder que coincide com um dos dois aniversários e consolida uma nova etapa dentro do EZLN: aquela em que os filhos e filhas dos guerrilheiros que se levantaram em 94, os as novas gerações que cresceram em suas comunidades independentes, isoladas do mundo exterior, assumem o controle e trazem nova vida à organização. O retrocesso do ex-vice-comandante alimenta esta teoria. Vozes familiarizadas com a sua forma de agir acreditam que serão as mulheres zapatistas que assumirão cargos de responsabilidade nos próximos meses, um símile ao movimento de libertação do povo curdo, que partilha semelhanças ideológicas e organizacionais com o zapatismo.
A teoria é alimentada por mais pistas. Depois de anos de silêncio mediático, o zapatismo voltou a avançar com pequenos passos nos últimos meses. Em maio deste ano, após o ataque de um grupo paramilitar a uma de suas comunidades, que deixou um ferido por arma de fogo, o EZLN divulgou um comunicado com ares de ultimato - semelhante a outro publicado em 2021 - no qual soou o alarme devido a a espiral de violência que Chiapas sofre: “Chiapas está à beira da guerra civil, com paramilitares e assassinos de vários cartéis lutando pela praça e grupos de autodefesa, com a cumplicidade ativa ou passiva dos governos de Rutilio Escandón Cadenas [governador de Chiapas] e [o presidente da República] Andrés Manuel López Obrador”. Após o manifesto, as bases de apoio da guerrilha organizaram manifestações e protestos em todo o mundo para exigir o “fim da guerra” na região.
No dia 22 de outubro, o site Enlace Zapatista, onde divulgam seus escritos, publicou um texto com a manchete: "Primeira Parte: Os motivos do Lobo" (a declaração deste domingo sobre a morte simbólica do subcomandante Galeano intitula-se "Segunda Parte: Os mortos espirram?", o que estabelece uma continuidade entre um e outro). "Os motivos do Lobo" é um poema escrito em 1913 pelo poeta nicaraguense Rubén Darío, uma fábula sobre um animal faminto, odiado e maltratado pelos habitantes da cidade, que tenta se aproximar dos humanos, mas acaba se isolando no montanhas fugindo do ódio e da violência. Nas mãos de Marcos, uma alegoria da situação do EZLN contra o governo mexicano. “(...) ele deixou aquela poesia como referência. Mais como uma resposta a alguém que perguntou como explicar o que está acontecendo agora em Chiapas, no México e no mundo”, escreve ele em Do the dead sneeze?
O subcomandante Marcos, de nome civil Rafael Sebastián Guillén Vicente, nasceu em 1957 e liderou os rebeldes de Chiapas por mais de duas décadas, apesar de ser natural de Tamaulipas, segundo a Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Na UNAM estudou filosofia – e ganhou prêmios pelo seu desempenho acadêmico – antes de partir para as montanhas, pegar em armas e tornar-se o ideólogo da guerrilha mais emblemática da história moderna. “O melhor escritor latino-americano de hoje, o mais livre, o mais perspicaz, caminha pela selva com uma balaclava no rosto”, disse o pensador francês Régis Debray em 1995.
Em 2014, data em que declarou sua primeira morte, Marcos declarou: “Através da minha voz a voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional não falará mais”. Ele relegou o comando ao subcomandante Moisés, ele próprio da etnia indígena Tojolabal. Quem conhecia bem a organização, porém, sabia que a mudança era mais retórica do que funcional. No mesmo ano em que deu o passo atrás, mudou seu nome para Galeano, em homenagem a um colega zapatista, José Luis Solís Galeano, assassinado pouco antes. Apesar da metamorfose de identidade, Marcos continuou escrevendo comunicações e participando da tomada de decisões. Nesta ocasião, resta saber qual será o seu novo papel dentro do EZLN, após a rebaixamento de subcomandante a “capitão Insurgente”. E para que destino apontam os ventos de mudança da guerrilha que queria mudar tudo.
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A segunda morte do subcomandante Marcos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU