05 Novembro 2016
"O anúncio de uma candidatura zapatista em 2018 parece apontar para um processo de mobilização e organização", analisa Alex Hilsenbeck, pesquisador do Consejo Latino-Americano de Ciencias Sociales (CLACSO – Argentina) e professor de Ciência Política na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (FCL), em artigo publicado por Passa Palavras, 03-11-2018.
Segundo ele, "durante essa última década os zapatistas não tiveram muita presença no cenário nacional, pouco influindo nos debates do país e é exatamente nesse contexto de crescente repressão em âmbito nacional às comunidades indígenas, bem como de avanço da perda de direitos conquistados pela classe trabalhadora em âmbito internacional (e no declínio da década de experiências latino-americanas de eleições presidenciais de partidos identificados ao campo progressista, com a exceção do México), que os zapatistas lançam o comunicado em conjunto com o CNI sobre a consulta de uma possível candidata independente indígena".
De acordo com o pesquisador a decisão remete a lembrança de uma outra iniciativa dos zapatistas, a da Outra Campanha, quando afirmaram: “Chegou a hora de arriscar outra vez e dar um passo perigoso”.
Foto e Fonte: Passa Palavras
Eis o artigo.
Os zapatistas, uma vez mais, convertem-se no epicentro das discussões políticas no México (com importantes ressonâncias em outras partes do mundo, sobretudo nos setores mais à esquerda). Desta vez, ao anunciarem em conjunto com o Congresso Nacional Indígena (CNI) a consulta às comunidades indígenas para a possibilidade de lançarem uma candidatura independente (isto é, sem partido) à presidência mexicana em 2018. Uma candidata indígena. Que seria a voz coletiva de um conselho indígena de governo, formado por um coletivo de representantes com paridade de gênero de cada representação no CNI. [1]
As interpretações e vozes não tardaram nada a se polarizarem, num esquema binário e empobrecedor de pensamento. Os zapatistas “pelegaram” e se renderam à forma política do capitalismo democrático? Ingressarão os rebeldes indígenas na política institucional mexicana via eleições democráticas? Reconheceram que além de marchas, tomada dos meios de produção, ações performáticas, também devem disputar o jogo eleitoral e, dessa forma, disputar o poder do Estado? O zapatismo, outra vez, está fazendo o “jogo da direita” e compondo uma coalizão anti-Andrés Manuel López Obrador (AMLO) do Partido da Revolução Democrática (PRD) e sua candidatura do Movimento de Refundação Nacional (MORENA)? [2]
Não nos parece que os insurgentes chiapanecos deram um giro de 180º (ou de 360º) graus em suas linhas de ação. Para tentar compreender essa ação política zapatista é preciso não abandonar a perspectiva da história e da conjuntura mexicana e mundial (a tal da análise concreta da realidade concreta), tampouco recair em enquadramentos dos movimentos sociais como expressões puras e tipos ideais de formulações de teoria política (ou de anseios – pessoais e políticos – militantes). Desde o seu levante armado, o zapatismo percorreu diversas táticas para levar adiante sua estratégia de autonomia e autogestão em seus territórios.
Muitos procuraram interpretar o zapatismo a partir de suas preferências políticas e ideológicas, ressaltando aquilo que acreditavam ser o elemento mais “correto”, por vezes como um movimento de fluxos comunicacionais, de guerra de palavras; de negação total do Estado e desta forma de política democrática ocidental (ou de capitalismo democrático); dando ênfase às características indígenas do movimento; a presença marxista em sua formação e o fato de terem tomado os meios de produção para levar adiante sua luta; a leitura anarquista e libertária de negação da tomada do poder do Estado e a prática de ação direta no seu processo de autogestão. Normalmente uma forma de leitura que considera irrelevantes – ou secundários – os elementos destacados pela outro modo de ler ou enxergar os zapatistas.
Estas leituras não estão de todo erradas, o que significa, também, que não estão de todo certas. O fato é que o movimento zapatista não pode ser lido exclusivamente em nenhuma dessas matrizes interpretativas, sob o risco de perdermos a complexa totalidade que o compõe. Mas bem, ele comunga diversos elementos delas, constituindo-se, não por um acaso, num tipo de antípoda das clássicas experiências guerrilheiras de décadas passadas.
Já no ano do levante armado, em 15 de maio de 1994, as bases zapatistas e seu porta-voz e chefe militar Subcomandante Marcos receberam o candidato do PRD Cuauhtémoc Cárdenas – filho do ex-presidente (1934-1940) e militar Lázaro Cárdenas, um dos presidentes mais populares do país. Dois meses após a visita, os insurgentes zapatistas lançam a II Declaração da Selva Lacandona e promovem o chamado (inclusive aos partidos políticos independentes) à Convenção Nacional Democrática, que teria por objetivo uma transição pacífica do país, no qual haveria de “emanar um governo provisório ou de transição, seja através da renúncia do Executivo Federal ou através da via eleitoral”, que levaria a uma nova Constituição “como expressão civil e a defesa da vontade popular”, tendo à frente Cuauhtémoc Cárdenas. E em 21 de agosto desse mesmo 1994, nos marcos dos comícios eleitorais para a presidência do país, os zapatistas chamam a votar contra o Partido da Revolução Institucional (PRI), uma amálgama de Partido-Estado que governou o México por mais de 70 anos por meio de “eleições” diretas e livres, fazendo com o que o país fosse dos únicos no “semicontinente” latino a não ter uma ditadura militar como governo, mas uma “ditadura perfeita”, uma máquina de repressão seletiva aos oposicionistas, cooptação e assimilação de personalidades, grupos e organizações, e acúmulo de longas controvérsias sobre fraudes eleitorais. A vitória de Ernesto Zedillo, do PRI (após o assassinato do candidato oficial Colosio), fez minguar a iniciativa da CND.
Nas eleições locais de Chiapas em 1994, os zapatistas apoiaram a candidatura do advogado e jornalista Amado Avendaño Figueroa para o governo (sob a sigla do PRD). Ele perdeu as eleições, sob fortes suspeitas de fraude, além de pouco antes do pleito ter ocorrido uma tentativa de assassinato contra o candidato (que acabou com três de seus correligionários mortos). Neste caso, interessante notar qual havia sido o “acordo” de Amado com o EZLN na época:
Os zapatistas não querem que eu seja um governador comum, mas sim um governador-em-transição, apenas até fazer a transição… O que significa: você vai participar nas eleições, vencerá, vai chamar uma assembleia constituinte, apresentar um projeto constitucional que será modificado, aprovado, ou qualquer outra coisa que seja, e quando isso acabar, convocará novas eleições. Para o vencedor, você vai passar o bastão e voltar para sua casa. Perfeito [eu disse], dessa forma, sim, eu participo.
O EZLN ainda compôs, em outros momentos, a tentativa de construção de frentes amplas de esquerda, envolvendo partidos independentes e organizações políticas das mais distintas correntes no campo progressista e da esquerda.
Mas, reparem bem que não se tratou até o presente de uma espécie de reedição do Projeto Democrático (Nacional) Popular brasileiro, em que as lutas por reformas democráticas na sociedade gerariam um acúmulo de forças para o projeto socialista – a partir da tática de “pinça” que, em linhas gerais, pode ser definida como a combinação da luta institucional com a auto-organização dos trabalhadores, isto é, por um lado a pressão de organizações populares (CUT e MST) e a ação institucional (PT), formando uma aliança histórica entre estas três organizações, tendo por polo aglutinador o Partido dos Trabalhadores.
Atentemos, sobretudo, para a própria experiência prática das comunidades autônomas indígenas zapatistas de uma democracia substantiva e participativa, em que existem instrumentos de revogação de mandatos como mecanismo popular, rotação dos cargos que, aliás, não possuem remuneração (considerados mais como um dever para com a comunidade). E, não menos importante, a partir do início dos anos 2000 a passagem do poder militar para o civil nas comunidades.
No que a negativa zapatista a “tomar o poder” não significa uma negação ao exercício autônomo do poder popular em suas comunidades (poder popular tão declamado em atos e ritos América afora). Assim, não é um descalabro sem sentido buscar inverter a lógica do exercício do poder, questionando a conquista do poder a partir da indagação histórica do que foram as experiências nas quais a esquerda obteve esse exercício do poder (com todas as mediações necessárias), mas tão pouco parece que esta questão era um Oxímoron zapatista, tal como a leitura de títulos de livros nos pode fazer pressupor.
Cabe ainda lembrar as mesas de diálogo com o governo referente aos Acordos de San Andrés/Sakamch’en de los Pobres sobre direitos e culturas indígenas, que culminou na proposta – inicialmente aceita pelo governo – da Lei COCOPA, bem como a tentativa zapatista e popular de pressionar os três poderes mexicanos a aprovarem em forma de lei nacional os acordos estabelecidos nestas mesas de diálogo. Foi assim que na Marcha da Cor da Terra, em 2001, em que os zapatistas saem de Chiapas até a capital do país, tendo recebido em todo o seu percurso o respaldo popular mais massivo que nenhum candidato político conseguiu alcançar, os insurgentes encontram um Zócalo (a praça principal da Cidade do México) lotado de apoiadores, contrapondo-se ao vazio do Congresso da União e dos três poderes (com todos os representantes dos partidos, inclusive do PRD) que se negaram a aprovar as Leis Indígenas da COCOPA tal qual acordado nos Acordos de San Andrés/Sakamch’en de los Pobres, das quais os zapatistas, demais organizações da CNI e setores progressistas da sociedade participaram ativamente, e, pelo contrário, os políticos aprovaram uma contrarreforma que deturpava os acordos estabelecidos.
Daí principia a perspectiva exposta por Marcos de que com essa classe política mexicana não há mais nada a se fazer, nem mesmo rir. E que caberia aos zapatistas e suas bases de apoio levarem adiante unilateralmente os Acordos, a partir do fortalecimento de suas autonomias em seus territórios.
Ao lançar a Outra Campanha em 2005, nos marcos da publicação da VI Declaração da Selva Lacandona, o zapatismo colocou o objetivo de uma democracia mais direta, a partir de suas próprias experiências, questionando o simulacro democrático de participação e representatividade que imperaria nos sistemas democráticos modernos. E, mais que isso, propôs outra agenda, para conhecer as distintas e fragmentadas formas de resistências, desde abaixo e à esquerda, anticapitalistas, e as enlaçar para elaborar um plano nacional de lutas, a partir de uma rede de redes de rebeldias micros e cotidianas, para buscar outros modos de organização.
É nesse contexto que se dá o percorrido do então “Delegado Zero” por todo o país, e que foi abortada em grande medida pela brutal repressão as resistências populares em Atenco e Oaxaca.
Também é certo que a Outra Campanha “coincidiu” com as datas das campanhas oficiais à presidência (que tinha AMLO com alguma chance real de sair vitorioso). Mas há diversos fatos concretos, expostos em comunicados e declarações, que levaram os zapatistas a não apoiar essa candidatura do PRD e do AMLO, tais como assassinatos, prisões e repressões cometidas por (ou a mando de) membros do partido e ligados à candidatura de Obrador. Não se trata tão somente de uma questão principista de não participação nas eleições, ou de não convocar votos num determinado partido e candidato, mas de fatos concretos e que levaram o movimento a acreditar que, inclusive, com a provável vitória de Obrador (como tudo indicava), no decorrer do que seriam seus cinco anos de governo, as pessoas perceberiam que não havia diferença substancial entre as políticas capitalistas e neoliberais desenvolvidas por um ou outro partido, fosse do PRI, PAN ou PRD.
A perspectiva zapatista propunha algo para além, levando adiante ações diretas para a construção de um mundo onde caibam muitos mundos (não todos os mundos), a partir da pertinência de construir um polo de resistência social autônoma dos partidos e do jogo eleitoral. Exemplificado na postura antissistêmica zapatista de não receber nenhum tipo de apoio de programas governamentais e construir autonomamente as novas relações políticas e sociais que apregoam. Contudo, também demonstram que suas comunidades não são “uma ilha de utopia para uma esquerda órfã”, e que se faz necessária a ampliação das lutas pelo país, e pelo mundo, sob o risco de regredirem os avanços que eles próprios conquistaram e mantêm nas mais difíceis situações. Uma ampliação que significa, também, a união na diversidade das distintas lutas fragmentadas da classe trabalhadora.
“Assim, o EZLN tem resistido há 12 anos de guerra, de ataques militares, políticos, ideológicos e econômicos, de cerco, de perseguição, de hostilidade, e não nos venceram, não nos vendemos, nem nos rendemos, e temos avançado. Mais companheiros de muitos lugares têm entrado na luta, de tal forma que, no lugar de tornarmo-nos mais fracos depois de tantos anos, nos fazemos mais fortes. Claro que há problemas que podem ser resolvidos separando mais o político-militar do civil-democrático. Mas há coisas, as mais importantes, como são nossas demandas pelas quais lutamos, que não foram completamente atingidas.
Conforme nosso pensamento e o que vemos em nosso coração, chegamos a um ponto em que não podemos ir além e, além disso, é possível que percamos tudo o que temos se ficamos como estamos e não fazemos nada para avançar. Ou seja, chegou a hora de arriscar outra vez e dar um passo perigoso, mas que vale a pena. Porque, talvez, unidos com outros setores sociais que têm nossas mesmas carências, será possível conseguir o que precisamos e merecemos. Um novo passo adiante na luta indígena só é possível se o indígena se une aos operários, camponeses, estudantes, professores, empregados… ou seja, aos trabalhadores da cidade e do campo (VI Declaração da Selva Lacandona).
Os zapatistas afirmavam sobre as eleições:
“Se preferem crer, não vamos discutir, cada um tem a maturidade e a capacidade para decidir. O que nós dizemos é que não cremos, porque já vimos passar todos, e não há solução, a outra coisa que podemos fazer é organizar nossas lutas, que agora estão isoladas”. E, em 2015, o Comandante Moisés reafirmou essa posição zapatista, “Nestes dias, como cada vez que há essa coisa que chamam ‘processo eleitoral’, escutamos e vemos que dizem que o EZLN chama à abstenção, ou seja, que o EZLN diz que não tem que votar. Dizem isso e outras besteiras (…) Como zapatistas que somos, não chamamos a não votar nem tampouco a votar. Como zapatistas que somos, o que fazemos, cada qual que possa, é dizer para as pessoas que se organizem para resistir, para lutar, para ter o que necessita”. (Sobre as eleições: organizar-se).
Obviamente que essa perspectiva – não necessariamente abstencionista, mas com vistas a promover a organização e a luta por fora do sistema institucionalizado – gerou diversas críticas à atuação política zapatista, inclusive certo isolamento no cenário político nacional, perdendo muitos “aliados” no campo progressista e da esquerda institucional. Nestes últimos dez anos muito se colocou na conta dos zapatistas a derrota do AMLO à presidência (independente das acusações de fraude eleitoral). Não por acaso, os eventos e encontros zapatistas tornaram-se mais endógenos, com um público mais cativo, mas também menor, voltados à discussão do processo de consolidação de suas autonomias. Durante essa última década os zapatistas não tiveram muita presença no cenário nacional, pouco influindo nos debates do país, o que coincide com a pouca presença das questões indígenas em âmbito nacional, apesar de não cessarem as repressões, bem como as formas de resistência por todo o México.
E foi exatamente nesse contexto de crescente repressão em âmbito nacional às comunidades indígenas, bem como de avanço da perda de direitos conquistados pela classe trabalhadora em âmbito internacional (e no declínio da década de experiências latino-americanas de eleições presidenciais de partidos identificados ao campo progressista, com a exceção do México), que os zapatistas lançam o comunicado em conjunto com o CNI sobre a consulta de uma possível candidata independente indígena que representaria a voz do conselho de governo das comunidades. Sublinhemos novamente o que disseram 11 anos atrás no lançamento da Outra Campanha:, “Ou seja, chegou a hora de arriscar outra vez e dar um passo perigoso”.
No novo comunicado de 2016 continuam afirmando, “É hora de passar para a ofensiva, quando terminarmos esse processo, vocês verão que talvez não precisemos de uma candidatura, pois já teremos força para ‘derrubar’ esse e todos os outros governos, construindo nossa autonomia”.
Não se trata de buscar ocupações nos distintos níveis de governo, tampouco de concorrer a cargos eletivos no Estado, como de parlamento ou executivos menores, nem mesmo de passar a aceitar (ou disputar) recursos de programas governamentais. Antes, parece ser um processo de mobilização e organização, uma forma de se colocarem (a partir da conjuntura eleitoral) e pautarem as temáticas indígenas (e que se relacionam com questões mais amplas dos setores oprimidos e explorados da sociedade) novamente a nível nacional, no centro da agenda política do país, que não é trabalhada pelos candidatos de nenhum dos partidos.
Esta é uma proposta arriscada? Sem dúvida, tanto na perspectiva de legitimidade (caso não consigam muita aderência às suas pautas), como nos riscos de burocratização que envolvem esse tipo de jogo. Mas para um movimento que há mais de vinte anos mantém em armas os territórios e meios de produção conquistados, e desenvolve pela ação direta formas variadas de autonomia e relações sociais antissistêmicas, desenvolvendo outras formas de política e democracia cotidiana e que busca, desde seu surgimento, a articulação de suas lutas com outras lutas, de outros setores sociais no México e no mundo, numa perspectiva de transformação social radical, o que significaria exatamente mais esse “risco”? Seria um “risco” maior do que novamente o “esquecimento” histórico das demandas nunca atendidas e das agressões sofridas pelas populações indígenas? Ou o risco de retrocesso de suas conquistas? Ou ainda, o risco do abandono da possibilidade de construção de um mundo mais justo e digno, limitado à pragmática política do real institucionalizado no Estado? Qual risco (não) correr? Impossível, neste contexto, reduzir a ação política e de autogoverno zapatista (e mais amplamente de alguns povos indígenas no México, como em Cherán) ao jogo eleitoral. Pelo contrário, em seus 22 e 32 anos, os zapatistas combinaram em suas formas de ação política a construção local autônoma com intervenções que pretendiam abrir horizontes políticos práticos e de pensamentos.
Encurralar as forças sociais, suas táticas e estratégias, a este binarismo de pensamento e ação é que parece guardar em si grandes riscos. Não devemos subestimar as várias contradições que enfraquecem a luta zapatista, conhecê-las é importante até para evitar que acumulemos parte das derrotas que nos conformam (não apenas no EZLN, como em outros movimentos e lutas sociais ao redor do mundo). Enquadrar as virtudes e deficiências das opções táticas e estratégicas a partir de uma teoria preconcebida é muito distinto de refletir sobre uma perspectiva concreta de ação política, sobretudo num momento de refluxo das lutas dos trabalhadores. As questões e respostas colocadas aos movimentos sociais devem ser de ordem prática e dependem dos contextos e processos históricos em que se apresentam, o que, como nos mostra de modo fértil a história do EZLN, varia a cada vez. Do contrário corremos um sério risco de enxergar por lentes distorcidas de nossa própria convicção tanto os movimentos como a própria realidade, procurando encaixá-los na teoria e não o inverso. Deste modo, não se trata de um “purismo de tipo ideal” sobre participar ou não das eleições, de negociar ou não com o Estado, mas de analisar as trajetórias processuais em cada contexto específico, considerando as táticas e estratégias de cada movimento e as consequências e respostas que obtiveram na inter-relação com outros atores e conjunturas específicas. As determinações estruturais, de ordem política, social e econômica, moldam também as opções e capacidade de escolhas de cada movimento.
A aposta do CNI e do EZLN pode, por outro lado, auxiliar no processo de tecimento de redes de organizações sociais, desde baixo e antissistêmicas, que sejam capazes de criar novas formas de resistência e de organização social e política. Esta não é a primeira tentativa e, com uma capacidade extraordinária de questionar o ordinário, parece ser a esperança tanto do EZLN quanto do CNI no tocante à polêmica colocada pela sua proposta conjunta:
“E se se negam a aceitar que é um problema que se resolve atacando a corrupção? E se se atrevem a dizer que a origem desse ódio assassino está no sistema? E se decidem tomar seu destino em suas mãos? Algo disso, ou tudo isso, seria uma manobra governamental para evitar que étcétera?” (…) Devem resignar-se a ser assassinados até chegar ao número que mereça atenção? E se se organizam, e se demandam respeito, e se decidem que já basta que o desprezo que recebem se converta em morte? Dirá-lhes que sua problemática não é prioritária, que não é politicamente correta em geral, e contraproducente no particular de uma concorrência eleitoral, que devem somar e não retirar com suas reivindicações? (…) E se essa visão, construída não apenas frente as ameaças de todo tipo, também arriscando a vida terrena, vê que não bastam as soluções que se oferecem no horizonte e o expressa livre e razoavelmente, se opõem assim, sendo o que são e trabalhando em consequência, a uma mudança real? (…) Se tão somente a possibilidade de existência cidadã (com todos seus direitos e obrigações), de uma mulher indígena, faz que “trema em seus centros a terra”, o que aconteceria se seu ouvido e sua palavra recorram o México de baixo?” (…) “Quão sólido estará o sistema político mexicano, e que tão fundamentadas e consistentes são as táticas e estratégias dos partidos políticos, que basta que alguém diga publicamente que está pensando algo, e que vai perguntar a seus iguais o que pensam do que está acontecendo, para que se ponham histéricos?” (…) “Em que medida a proposta de que um conselho indígena de governo, isto é, um coletivo e não um indivíduo, seja o responsável do executivo federal, apunhá-la-o-presidencialismo-se-faz-cúmplice-da-farsa-eleitoral-contribui-a-reforçar-a-democracia-burguesa-faz-o-jogo-da-oligarquia-e-ao-imperialismo-yanqui-chino-russo-judeuislâmico-milenarista-além-de-trair-os-altos-princípios-da-revolução-proletária-mundial?” (Perguntas sem respostas, respostas sem perguntas, conselhos e conselhos)
Notas:
[1] Leia a declaração final do V Congresso Nacional Indígena.
[2] O (re)candidato do PRD, Andrés Manuel López Obrador, pouco após o comunicado do CNI e do EZLN do lançamento de uma possível candidata independente mulher indígena à presidência, declarou que se trata de uma manobra para fazer o jogo do governo com a finalidade de que não haja transformação e mudança de regime. Ainda acrescentou, fazendo referência ao filme de Bergman sobre o processo que conduziu o regime democrático alemão ao nazismo, que desde 2006 viu no EZLN o “ovo da serpente”.
Referências:
Luis Hernández Navarro. El EZLN, el CNI y las elecciones.
José Blanco. El batiburrillo de AMLO.
John M. Ackerman. ¿Cuáles son las intenciones reales de los zapatistas?
Jorge Castañeda. Candidatura independiente del EZLN.
Vídeo do Congresso Nacional Indígena.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os zapatistas e as eleições - Instituto Humanitas Unisinos - IHU