26 Outubro 2023
"O clericalismo é um chicote, é um flagelo, é uma forma de mundanismo que suja e prejudica o rosto da esposa do Senhor; escraviza o povo santo e fiel de Deus", disse o papa, de improviso, na quarta-feira, dia 25-10-2023, no decorrer da 18ª Congregação Geral da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos.
Gosto de pensar na Igreja como um povo fiel de Deus, santo e pecador, um povo convocado e chamado com a força das bem-aventuranças e de Mateus 25.
Jesus, para a sua Igreja, não assumiu nenhum dos esquemas políticos do seu tempo: nem fariseus, nem saduceus, nem essênios, nem zelotes. Nenhuma “empresa fechada”; Simplesmente retoma a tradição de Israel: “vocês serão o meu povo e eu serei o seu Deus”.
Gosto de pensar na Igreja como esse povo simples e humilde que caminha na presença do Senhor (o povo fiel de Deus). Este é o sentido religioso do nosso povo fiel. E digo pessoas fiéis para não cair nas múltiplas abordagens e esquemas ideológicos com que se “reduz” a realidade do povo de Deus. Simplesmente gente fiel, ou também, “santo povo fiel de Deus” a caminho, santo e pecador. E a Igreja é isso.
Uma das características deste povo fiel é a sua infalibilidade; sim, é infalível in credendo. (In credendo falli nequit, diz LG 9) Infabilitas in credendo. E explico assim: “quando você quiser saber o que acredita a Santa Madre Igreja, vá ao Magistério, porque ele é o responsável por ensiná-lo, mas quando quiser saber como a Igreja acredita, vá aos fiéis”.
Uma imagem me vem à mente: os fiéis reunidos na entrada da Catedral de Éfeso. A história (ou lenda) diz que as pessoas estavam em ambos os lados do caminho para a catedral enquanto os bispos em procissão faziam a sua entrada, e que em coro repetiam: “Mãe de Deus”, pedindo à hierarquia que declarasse essa verdade dogma, eles já possuíam como povo de Deus. (Alguns dizem que tinham paus nas mãos e os mostraram aos bispos). Não sei se é história ou lenda, mas a imagem é válida.
O povo fiel, o povo fiel e santo de Deus, tem uma alma, e porque podemos falar da alma de um povo, podemos falar de uma hermenêutica, de um modo de ver a realidade, de uma consciência. O nosso povo fiel tem consciência da sua dignidade, batiza os seus filhos, enterra os seus mortos.
Os membros da hierarquia vêm desse povo e recebemos a fé desse povo, geralmente de nossas mães e avós, “sua mãe e sua avó”, diz Paulo a Timóteo, uma fé transmitida em dialeto feminino, como a Mãe dos Macabeus que falava “em dialeto” com seus filhos. E aqui gosto de sublinhar que, no povo santo e fiel de Deus, a fé é transmitida em dialeto, e geralmente em dialeto feminino. Isto não acontece apenas porque a Igreja é Mãe e são precisamente as mulheres que melhor a refletem; (a Igreja é mulher), mas porque são as mulheres que sabem esperar, como descobrir os recursos da Igreja, do povo fiel, assumem riscos além do limite, talvez com medo, mas com coragem, e no claro-escuro da um dia que começa elas se aproximam de uma tumba com a intuição (ainda sem esperança) de que possa haver alguma vida.
A mulher do povo santo e fiel de Deus é um reflexo da Igreja. A Igreja é feminina, é esposa, é mãe.
Quando os ministros excedem o seu serviço e maltratam o povo de Deus, desfiguram o rosto da Igreja com atitudes sexistas e ditatoriais (basta lembrar a intervenção da Irmã Liliana Franco). É doloroso encontrar em algumas secretarias paroquiais a “tabela de preços” dos serviços sacramentais em estilo supermercado. Ou a Igreja é o povo fiel de Deus a caminho, santo e pecador, ou acaba sendo uma empresa de serviços variados. E quando os agentes pastorais tomam este segundo caminho, a Igreja torna-se o supermercado da salvação e os padres meros funcionários de uma multinacional. É a grande derrota a que nos leva o clericalismo. E isto com muita vergonha e escândalo (basta ir às alfaiatarias eclesiásticas de Roma para ver o escândalo dos jovens padres experimentando batinas e chapéus ou alvas e roquetes com renda).
O clericalismo é um chicote, é um flagelo, é uma forma de mundanismo que suja e prejudica o rosto da esposa do Senhor; escraviza o povo santo e fiel de Deus.
E o povo de Deus, o povo santo e fiel de Deus, continua avançando com paciência e humildade, suportando o desprezo, os maus-tratos e a marginalização por parte do clericalismo institucionalizado. E com que naturalidade falamos dos príncipes da Igreja, ou de promoções episcopais como avanços na carreira! Os horrores do mundo, a mundanidade que maltrata o povo santo e fiel de Deus.