11 Outubro 2023
"Não deixa de ser irônico, por isso tudo, que seja de Ailton Krenak, um índio, justamente um integrante daquele povo reconhecido como “sujeito de direitos”, embora quase nunca consiga exercê-los, que tenha partido uma poderosa luta contrária a esse estado de coisas “amparado pelas leis” que essas mesmas bancadas [do boi, da bala, da bíblia] produzem", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
A eleição de Ailton Krenak para integrar a Academia Brasileira de Letras, no último dia 5 deste outubro, já pode ser considerado um dos fatos mais relevantes e oportunos do nosso tempo, como uma poderosa tentativa de dar voz e defesa ao povo indígena, vítima histórica do povo branco que o domina, explora e mata.
O pouco do muito que as promessas legais de reconhecimento das suas terras, culturas e modos de ser e viver, tem sido facilmente neutralizado por um Congresso Nacional de maioria predominantemente ruralista e branca. Embora em matéria de vícios e virtudes de grupos humanos não seja prudente generalizar, parece que os grupos dessa maioria mereceram os apelidos de bancadas, do boi, da bala e da bíblia. Porque, em cada uma, circulam vícios de fácil identificação e medida por seus abusos e desvios de poder. Da primeira, o desmatamento, o aquecimento da terra, o desequilíbrio do clima de todo o planeta; da segunda, a resolução dos problemas humanos pelo ódio, a violência das armas e a cumplicidade das milícias; da terceira, fundamentalismo religioso que vende fé num ídolo que passa por deus milagreiro, solução de qualquer problema e severo carrasco de pecados exclusivamente ligados à moral individual e burguesa.
As três são implacáveis no exercício do poder de fazer as leis, alterar a Constituição por todas as emendas capazes de negar-lhe a sua inerente função social, responsabilizarem a sua “liberdade de iniciativa”, contrariarem seu ímpeto privatista, desvelarem a extensão com que manipulam poderosas fontes de comunicação, suficientes para manter multidões submissas, ignorantes até do jugo da alienação que suportam, sem consciência crítica das causas pelas quais sofrem há séculos. De política e particularmente de voto, admitem somente o que lhes for “sugerido” por elas.
É da bancada do boi, especialmente, a ofensiva mais contundente contra o povo indígena, pelo que a demarcação das suas terras pode oferecer de obstáculo para tudo quanto ela quer invadir, açambarcar e grilar. Está tentando desvencilhar-se inclusive dos riscos de seus interesses serem julgados pelo Poder Judiciário. No caso do marco temporal, por exemplo, sob o qual ela se escuda para só reconhecer-se como terra indígena aquela ocupada pelo povo nativo em 1988, quando foi promulgada a nossa Constituição vigente, ela acha absurdo que se respeite um direito “imemorial” à terra invadida pelo branco colonizador há mais de 5 séculos. Desconhece como inexistente, porém, o quanto de imemorial em todo esse tempo o mesmo povo padece sob esse cruel e injusto efeito dessa invasão.
Derrotada aí pelo próprio STF, essa bancada está somada às outras duas em outras vergonhosas derrotas jurídico-políticas, que as desmoralizam em temas sensíveis à corrupção e à moral pública, valores pelos quais elas se julgam donas e modelos exclusivos. Em julgamento datado de 21 de agosto passado, o Tribunal Federal da 1ª Região reconheceu que a ex-presidente Dilma Rousseff não praticou ilícito penal ou político algum pelo qual o Congresso a destituiu do cargo em 31 de agosto de 2016. Ou seja, tudo não passou, mesmo, de um sequestro de poder por meio de um golpe de Estado. Em 6 de setembro passado, em decisão monocrática, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, feriu de morte as provas da famosa operação lava jato, abrindo-se a possibilidade, então, de o hoje senador Sérgio Moro, se não for preso, seguir o mesmo destino do procurador da república Deltan Dallagnol, seu cúmplice, no caso. A CPI, montada por essas bancadas para criminalizar o MST, contou com uma desastrada relatoria (Ricardo Salles), que terminou sem votar o verdadeiro objetivo do trabalho político que a inspirou, invertendo contra si mesma os efeitos que dela esperavam: o Movimento saiu muito mais respeitado e politicamente fortalecido de todo aquele aparato acusatório.
Não deixa de ser irônico, por isso tudo, que seja de Ailton Krenak, um índio, justamente um integrante daquele povo reconhecido como “sujeito de direitos”, embora quase nunca consiga exercê-los, que tenha partido uma poderosa luta contrária a esse estado de coisas “amparado pelas leis” que essas mesmas bancadas produzem. A Companhia das Letras (São Paulo, 2019) que editou o livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, incluiu um anexo no qual, para melhor identificá-lo, por seu testemunho e ação, aparecem muitos títulos honoríficos que recebeu, um até de doutor honoris causa, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Para quem tanto louva a liberdade e a segurança jurídica como condições indispensáveis para o mercado, como fazem os representantes dessas bancadas, confira-se o que a Companhia das letras recolheu do Krenak nesse livro:
“Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existem também uma por consumir subjetividades. Então vamos viver com que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de star vivos.”
Portanto, quem consome a natureza, dela só pode receber o que ela está fazendo com esses recentes ciclones pelos quais estamos sofrendo e consome também as subjetividades vítimas de outras “liberdades” que as deixam reféns do mercado. Protocola a alegria de ainda estarmos vivos, sujeitando tudo a mercadoria, sacrificando especialmente o povo empobrecido que não pode acessá-la, servindo o de Krenak como um dos seus mais dramáticos exemplos. Começar uma resistência a tudo isso pelo que diz esse índio, parece uma boa ideia aqui submetida à crítica das/os nossas/os leitoras/es.
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Ailton Krenak: da defesa da terra e de seu povo, a lições de política. Artigo de Jacques Távora Alfonsin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU