07 Outubro 2023
Para muitos católicos, a Igreja continua sendo algo “lá fora” que, no fim das contas, não os inclui. Eles se referem à hierarquia como “a Igreja”, ponto final, embora sejam membros batizados do único Corpo de Cristo que se reúne ao redor do altar. Infelizmente, não fomos formados de tal forma que a eclesiologia eucarística faça sentido.
A opinião é de Rita Ferrone, escritora premiada e autora de diversos livros sobre liturgia, em artigo publicado por Commonweal, 23-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Comissão Conjunta Internacional Católico-Ortodoxa para o Diálogo Teológico produziu uma declaração em junho passado sobre a controversa questão do primado papal e o tema oportuno da sinodalidade. A declaração de Alexandria, intitulada “Sinodalidade e Primado no Segundo Milênio e Hoje”, descreve a história da divisão entre ortodoxos e católicos, e narra os esforços para preencher essas divisões.
Concordar com uma declaração justa sobre o que realmente aconteceu é uma conquista. Em última análise, porém, os participantes do diálogo sinalizaram a necessidade de ir além. “Discussões puramente históricas não são suficientes”, afirmam. E, no fim, fazem uma afirmação que eu considero intrigante: “Uma eclesiologia eucarística da comunhão é a chave para articular uma teologia sólida da sinodalidade e do primado”.
O que é eclesiologia eucarística? O documento em si não o define, mas alguns pontos de referência gerais podem ajudar a contextualizar esse termo. Do lado ortodoxo, a eclesiologia eucarística está associada ao trabalho inovador do teólogo ortodoxo oriental Nicolai Afanassieff (1893-1966), que lecionou em Paris no Instituto São Sérgio, e cujo pensamento e escrita influenciaram outros luminares ortodoxos, como Alexander Schmeman, John Meyendorff e John Zizioulas.
Correndo o risco de simplificar demasiadamente um assunto complexo, a premissa básica aqui é que os fiéis estão unidos a Cristo por meio da Eucaristia, e Cristo não está dividido. Portanto, as assembleias eucarísticas não são apenas “parte de” uma Igreja maior. Pelo contrário, elas são a Igreja de uma forma qualitativa. Onde está a Eucaristia, aí está a Igreja.
Esse argumento baseia-se em uma leitura dos primeiros três séculos da história da Igreja e pressupõe a presença do bispo como presidente da assembleia eucarística local. Nessa visão, o primado também tem um lugar, desde que seja entendido como preeminência e respeito.
A consulta, a resolução de disputas, o apoio aos fracos, a salvaguarda da unidade e assim por diante são auxiliados pelo primado – não entendido como comando e controle, mas como um serviço ao mistério manifestado em cada Igreja local que se reúne para a Eucaristia. Novamente, o modelo é tirado da Igreja apostólica.
Um “retorno às fontes” no movimento litúrgico e mediante o renascimento patrístico do século XX também abriu aos católicos algumas intuições intrigantes sobre a eclesiologia eucarística, que depois foram articulados no Concílio Vaticano II. A constituição sobre a Sagrada Liturgia (Sacrosanctum concilium) afirmou que o bispo que celebra a Eucaristia, rodeado pelos seus presbíteros, ministros e todos os fiéis, é a “principal manifestação” da Igreja (SC 41).
A própria introdução à constituição da liturgia afirma uma forte ligação entre a Eucaristia e a eclesiologia: “A liturgia e especialmente o sacrifício eucarístico contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja” (SC 2).
Também se encontram elementos de uma eclesiologia eucarística na Lumen gentium (a constituição dogmática do Vaticano II sobre a Igreja). O primeiro rascunho, preparado pela Cúria Romana, enfatizava fortemente as estruturas organizacionais visíveis da Igreja. Autoridade e jurisdição estavam em primeiro plano. O documento em sua forma final, contudo, mudou dramaticamente de ênfase. Não foi apenas enriquecido pelas imagens das escrituras – o redil e o rebanho, o campo cultivado, a oliveira, o edifício de Deus cuja pedra angular é Cristo e muito mais. Ele também descreveu a Igreja acima de tudo como um sacramento (LG 1). O parágrafo 7 explica ainda que “ao participar realmente do corpo do Senhor na fração do pão eucarístico, somos elevados à comunhão com Ele e entre nós”. Como comentou mais tarde o teólogo estadunidense Richard Gaillardetz:
“Essa eclesiologia eucarística, por sua vez, levaria o Concílio a afirmar o significado teológico da Igreja local. Se cada celebração da Eucaristia é uma questão não só da presença sacramental de Cristo no altar, mas também de sua presença eclesial na comunidade reunida, então cada Igreja eucarística local deve ser mais do que um subconjunto da Igreja universal; deve ser o Corpo de Cristo ‘naquele lugar’”.
Será que os católicos realmente absorveram essas intuições? Infelizmente, um estilo de governo jurídico e de cima para baixo na prática continua dificultando que as pessoas entendam as realidades comunitárias e participativas –sacramentais, de fato – que o Concílio ressaltou. Isso explica, pelo menos em parte, um certo mal-estar que o Sínodo sobre a Sinodalidade está tentando, de várias maneiras, resolver.
Para muitos católicos, a Igreja continua sendo algo “lá fora” que, no fim das contas, não os inclui. Eles se referem à hierarquia como “a Igreja”, ponto final, embora sejam membros batizados do único Corpo de Cristo que se reúne ao redor do altar.
Será que a assembleia eucarística pode ser realmente fundamental para a nossa compreensão da Igreja quando os bispos são vistos como gestores de sucursais de uma empresa multinacional ou quando nos consideramos consumidores de produtos que a hierarquia produz (sacramentos, homilias, padres etc.)? Infelizmente, não fomos formados de tal forma que a eclesiologia eucarística faça sentido.
Mas poderíamos ser. Em uma declaração de 2018 sobre “Sinodalidade na vida e missão da Igreja”, a Comissão Teológica Internacional propôs que a forma da reunião eucarística é o fundamento para uma espiritualidade sinodal, precisamente porque “a reunião eucarística exprime e realiza o ‘nós’ eclesial da communio sanctorum” (n. 47).
A declaração traça as etapas desse paradigma eucarístico em cinco passos: reunião, penitência, Palavra, Eucaristia e envio (n. 109). Esses movimentos espirituais encarnados na celebração da Eucaristia são exatamente aqueles que devemos praticar continuamente na vida cotidiana a fim de nos tornarmos uma Igreja sinodal.
Como liturgista, eu questionaria certas partes da descrição da comissão (eles sobrecarregaram o rito penitencial e reduziram a abertura da liturgia a uma “invocação da Trindade”). Mesmo assim, ela vale a pena. Modelar a nossa espiritualidade do “caminhar juntos” a partir da liturgia eucarística é um nobre esforço. Pode iluminar a nossa visão daquilo que fazemos na liturgia e, ao mesmo tempo, aprofundar o nosso compromisso com aqueles movimentos de fé que o “ser Igreja” requer.
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O que é eclesiologia eucarística? Artigo de Rita Ferrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU