05 Outubro 2023
A humanidade ultrapassou a capacidade de carga da Terra, rompeu 6 das 9 fronteiras planetárias e a produção total de bens e serviços ocorre, atualmente, de maneira cada vez mais insustentável.
O artigo é de José Eustáquio Diniz Alves, doutor em Demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 04-10-2023.
A causa básica da crise climática e ambiental e dos recordes de temperatura atuais é a incessante busca por países cada vez mais populosos e com padrões de vida mais abastados. Desta maneira, o contínuo crescimento demoeconômico tem aumentado a sobrecarga antrópica sobre a biocapacidade do Planeta. A humanidade ultrapassou a capacidade de carga da Terra, rompeu 6 das 9 fronteiras planetárias e a produção total de bens e serviços ocorre, atualmente, de maneira cada vez mais insustentável.
O Homo Sapiens gastou 200 mil anos para chegar a 1 bilhão de habitantes e precisou de cerca de míseros 200 anos para se multiplicar por 8 vezes. A população mundial era de 1 bilhão de habitantes por volta de 1804 e chegou em 8 bilhões em 2022. Portanto, em um espaço temporal de cerca de 200 anos o número de pessoas cresceu 8 vezes mais do que nos 200 mil anos anteriores. Foi um crescimento exponencial sem precedentes. Exacerbando o quadro, o crescimento da economia e da renda per capita foi muito maior.
Segundo dados do Maddison Project, o Produto Interno Bruto global cresceu cerca de 110 vezes e a renda per capita cresceu 14 vezes entre 1820 e 2022. O mundo tem hoje mais habitantes e habitantes com padrão de vida mais elevado.
O gráfico abaixo, do Our World in Data, mostra diversos indicadores de avanço social e político nos últimos 200 anos. A extrema pobreza atingia 84% da população mundial em 1820 e caiu para 9% em 2018. Somente 17% da população global tinham acesso à educação básica em 1820 e este percentual passou para 86% em 2019, enquanto o analfabetismo diminuiu de 88% para 14% no mesmo período.
A mortalidade na infância (0-4 anos) atingia a marca de 43% (43 mortes para cada 100 nascimentos) em 1820 e caiu para 4% em 2019. Em 1820, não havia proteção contra as doenças infecciosas, mas, em 2019, 86% da população passaram a se beneficiar com a vacinação e o cumprimento das regras coletivas de higiene. Em termos políticos, apenas 1% da população mundial vivia em regime democrático e este percentual passou para 56% em 2015.
Mesmo sabendo que há muita desigualdade social, os indicadores acima mostram que a pobreza extrema foi bastante reduzida paralelamente aos avanços sociais e políticos. A expectativa de vida ao nascer que estava pouco acima de 25 anos no mundo, em 1820, deu um salto para mais de 70 anos em 2019. Houve aumento da oferta de alimentos e aumentou o acesso à moradia própria, aos bens de consumo duráveis, etc.
O desenvolvimento das condições materiais de vida foram respaldados por um tipo de filosofia que defendia a ideia de sucesso econômico sobre as condições ambientais que circundavam o ser humano. O filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) tem sido frequentemente associado ao desenvolvimento do pensamento dualista e à ideia de dominação humana sobre a natureza. Sua filosofia, que enfatizava a separação entre a mente e o corpo, bem como a distinção entre a “res cogitans” (mente pensante) e a “res extensa” (matéria estendida), contribuiu para moldar a forma como a maioria das pessoas entenderam a relação entre o mundo da cultura e o mundo natural.
No contexto da dominação humana sobre a natureza, o pensamento cartesiano considerava que a mente humana era distinta da matéria e que a matéria, incluindo o corpo humano e o mundo natural, poderia ser compreendida em termos puramente mecânicos e matemáticos. Esse modo de pensar abriu caminho para uma abordagem instrumentalista em relação à natureza, onde os seres humanos viam a natureza como algo a ser explorado, manipulado e dominado para atender às suas necessidades e seus desejos.
Descartes acreditava que a razão e a ciência poderiam dar aos seres humanos o domínio sobre a natureza, permitindo que eles a explorassem e a transformassem de acordo com sua vontade. Essa visão contribuiu para a forma como a Revolução Científica e a Revolução Industrial subsequente trouxeram avanços tecnológicos e científicos que permitiram uma exploração mais intensa e eficiente dos recursos naturais.
Por conseguinte, nos últimos 200 anos, a filosofia venceu e, indubitavelmente, a natureza perdeu. Todo o progresso da ECOnomia se deu às custas do retrocesso da ECOlogia. Acontece que a economia é um subsistema da ecologia e, se as condições ambientais retrocedem, o espaço para o progresso econômico é reduzido. Assim, existe um desequilíbrio estrutural, pois há um Planeta finito com a humanidade aumentando continuamente a sobrecarga antrópica, enquanto os ecossistemas diminuem a capacidade de fornecer, de maneira sustentável, os insumos para satisfazer as demandas humanas.
Em outras palavras, a Pegada Ecológica superou a Biocapacidade da Terra. A Pegada Ecológica é utilizada para avaliar o impacto que o ser humano exerce sobre a biosfera e a Biocapacidade busca avaliar o montante de terra e água, biologicamente produtivo, capaz de prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza.
A rede Global Footprint Network apresenta estas duas medidas úteis para se avaliar o impacto humano sobre o meio ambiente e a disponibilidade de “capital natural” global. Se a pegada ecológica global (a quantidade de recursos consumidos e resíduos produzidos) exceder permanentemente a biocapacidade global, isso pode levar à degradação ambiental, à diminuição dos recursos naturais e à completa perturbação do equilíbrio ecológico e climático.
O gráfico abaixo, apresenta os dados da Pegada Ecológica global e da Biocapacidade global de 1961 a 2019, com projeções até 2022. Nota-se que havia superávit ambiental na década de 1960 (área verde do gráfico), mas passou a haver um déficit ambiental crescente a partir dos anos 1970 (área vermelha do gráfico). Portanto, a demanda humana tem superado em muito a capacidade de oferta da natureza.
Assim sendo, o crescimento da população e o maior volume da produção de bens e serviços fez a Pegada Ecológica global ultrapassar a Biocapacidade global, gerando um déficit ecológico que se ampliou ao longo dos anos. A população humana era de cerca de 3 bilhões de habitantes em 1961 e passou para 8 bilhões em 2022, um aumento de 160%. A Pegada Ecológica era de 7,22 bilhões de hectares globais (gha) e passou para 20,6 bilhões de gha no mesmo período, um aumento de 185%. E a Biocapacidade global era de 9,75 bilhões de gha em 1961 e passou para 12 bilhões em 2022, um aumento de 23%. Desta forma, o déficit ecológico absoluto foi de 8,6 bilhões de gha em 2022, com um déficit relativo de 71%. Isto é, em 2022, a humanidade estava consumindo 71% a mais do que o Planeta é capaz de fornecer de forma sustentável.
Como mostrou o economista ecológico brasileiro, Clóvis Cavalcanti, no artigo “Sustentabilidade: mantra ou escolha moral? Uma abordagem ecológico-econômica” (2012), a economia moderna funciona com base no modelo “Extrai-Produz-Descarta”. Para produzir mercadorias, o processo produtivo começa com a extração de insumos da natureza (minérios, energia, alimentos, etc.), seguido do processo de transumo que resulta em bens e serviços por um lado e, de outro lado, dejetos (matéria neutra, detritos, poeira, cinzas, sucata, energia dissipada). Assim, a extração de recursos, o consumismo e a deposição de lixo deixam como legado uma Pegada Ecológica cada vez maior.
O metabolismo do processo produtivo é entrópico e não cria nem consome matéria e energia, apenas transforma recursos de baixa entropia em calor e resíduos de alta entropia. Enquanto a produção de bens e serviços degrada os ecossistemas e provoca perdas da biodiversidade, as emissões de CO2 são o principal componente da Pegada Ecológica global e tem como consequência a aceleração do aquecimento global.
Desta forma, a crise climática e a 6ª extinção em massa das espécies são uma ameaça à própria existência humana. A natureza vive bem sem as pessoas, mas os habitantes do Planeta não vivem sem a natureza. Por conseguinte, o processo de destruição da ecologia pode ser classificado como uma ecofagia, pois o aumento da Pegada Ecológica global acima da Biocapacidade global além de consumir os serviços ecossistêmicos, consome também os próprios ecossistemas globais. As queimadas, a poluição, a sobrepesca, a erosão dos solos, a acidificação dos oceanos, a extinção de espécies e o consumo excessivo dos recursos naturais estão transformando o ser humano em um ecófago.
O exclusivismo humano está reduzindo a riqueza da comunidade biótica da Terra. O processo de antropomorfização – a transformação constante do mundo natural em favor dos seres humanos – resultará em um Planeta consideravelmente menos vivo, isto é, em última instância, uma Terra sem vida.
A ecofagia é também uma antropofagia. Cientistas alertam que mais de 1 bilhão de pessoas podem morrer, até o final do século, devido às ondas letais de calor e aos múltiplos efeitos das mudanças climáticas. O calor excessivo pode se transformar em uma grande pandemia no século XXI.
Para garantir a sobrevivência da vida terrestre é preciso que a Pegada Ecológica global fique abaixo da Biocapacidade global e que haja um processo de restauração ecológica planetária, em um mundo menos antropocêntrico e mais ecocêntrico.
ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, maio 2022
CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade: mantra ou escolha moral? Uma abordagem ecológico-econômica. SP, Estudos avançados 26 (74), 2012
ROSER, Max. The short history of global living conditions and why it matters that we know it, Our World in Data, 2023
CASSELLAS, C. Scientists Warn 1 Billion People on Track to Die from Climate Change, Science alert, 30/08/ 23
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O crescimento da pegada ecológica global e o colapso climático e ambiental. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU