04 Outubro 2023
Um histórico das greves na Universidade de São Paulo de 2002 a 2023.
O artigo é de Lincoln Secco, professor do Departamento de História da USP e autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê), publicado por A Terra é Redonda, 02-10-2023.
É certo que a greve estudantil de 2023 expressa uma universidade diferente do passado. Mas ela também segue padrões históricos que merecem ser conhecidos pelo movimento estudantil. Por sua circunstância ocupacional e etária, estudantes precisam rapidamente se apropriar da sua história. Por isso, toda greve é um aprendizado coletivo único.
Nenhum professor pode ter a pretensão de que a formação da juventude universitária se encerra em suas aulas. Elas são fundamentais, mas seriam no mínimo traumáticas sem a possibilidade da vivência estudantil, de grupos de estudos, da atlética, do centro acadêmico e das festas. Contudo, é numa greve que todas essas atividades se politizam.
A geração atual não teve nada disso. A pandemia substituiu a convivência em sala de aula por horas defronte a uma tela. E no retorno, estudantes descobriram que o controle dos espaços se tornou mais autoritário. Os pátios se tornaram lugares de passagem, sem vida. Em algumas unidades não se pode solicitar uma sala para reunião sem anuência de um professor tutor. A justificativa é a existência de equipamentos didáticos mais sofisticados nas salas de aula. Não foi por acaso que a atual greve de 2023 foi desencadeada depois que um diretor fechou sua escola para evitar que houvesse uma assembleia estudantil. A alegação foi a proteção do patrimônio.
Iniciada a greve, surgem os argumentos que sempre temos que ouvir de novo: não há outros meios? Por que piquetes? Se uma assembleia decide paralisar as aulas, é natural interpor algum obstáculo para que docentes não desrespeitem a decisão coletiva de estudantes, já que têm o poder de pressionar o corpo discente mediante avaliações obrigatórias. Normalmente, estamos falando de algumas cadeiras empilhadas.
Uma cadeira é uma cadeira, somente sob certas circunstâncias ela seria uma arma. Mas para alguns, mesmo que ninguém a jogue em outro indivíduo, ela adquire poderes mágicos, anda por si mesma e toma o lugar de uma relação social entre pessoas. Que em momentos decisivos professores astutos em Marx esqueçam suas lições sobre o fetichismo da mercadoria é algo recorrente.
Historicamente o movimento estudantil esteve na vanguarda dos processos de resistência e de muitas conquistas democráticas. Ele apresenta uma capacidade maior de projetar-se além de seus interesses corporativos.
Por vias tortas, o sociólogo José de Souza Martins estava certo ao dizer que os estudantes grevistas travam uma luta que “não é deles”. Ele se referia à paralisação de 2016. Para ele “concretamente, ninguém perde com paralisações em setores que não produzem diretamente mais-valia (…). Ao contrário, são setores que vivem à custa de uma parcela da distribuição da mais-valia extorquida dos trabalhadores do setor produtivo”[i].
Sem precisar do verniz marxista, uma colega dele afirmou que “não há sentido em greve do tomador de um serviço”. Para Janaina Paschoal “a chamada ‘greve’ dos alunos da USP fica ainda menos justificada quando se constata que a principal reivindicação é por mais professores” (sic).[ii]
Ninguém espera que um movimento social se ocupe com a primeira seção do volume II de O Capital [iii]; ou que discuta o quanto são produtivas atividades que geram mais valia ao se prolongarem na esfera da circulação; ou se estudantes que trabalham na infraestrutura da pesquisa universitária concorrem para a produção de conhecimento apropriada por empresas; se os serviços são produtivos etc. etc. Na ótica daqueles professores, operários do passado que fizeram greves políticas, de solidariedade ou revolucionárias não podiam estar em greve. Aquelas lutas não seriam deles.
Mas nossas alunas e alunos aprendem com a relação entre teoria e prática. E se apropriam de sua história. Cometem erros novos, absolutamente necessários para a verdade de seu movimento. E por vezes, repetem erros antigos que levam a derrotas.
Desde o decênio de 1980 estudantes participaram de longas greves na nossa universidade. Pessoalmente, recordo-me de dias intensos de aprendizado nos 58 dias da greve de 1988. Em 2000, quando eu fazia meu doutorado, a USP parou por 54 dias. Ingressei na USP em 1987 e no ano seguinte já me vi diante da cavalaria da PM em frente da Reitoria. Tornei-me docente um ano depois da greve da FFLCH de 2002 que perdurou 106 dias. Sem ela, eu e muitos colegas não seríamos docentes da USP.
Aquela greve não teve a hostilidade da direção da FFLCH e faz parte da nossa memória institucional tanto quanto a Maria Antônia. A professora Maria Ligia Prado coordenou na USP um livro sobre a greve e vinte anos depois a própria faculdade promoveu a exposição “20 anos da greve estudantil de 2002”. As greves são uma modalidade de conflito social e, dentro de certos limites, funcional para a reprodução de uma instituição. Também é um meio de formação política radical, inconformista ou adaptada à ordem.
As greves que ocorreram na USP sempre tiveram a presença estudantil em seu apoio ou na sua liderança. Fosse a de 2004 ou a primeira greve de terceirizados em 2005 e a segunda em 2011. Lembro-me de ter escrito sobre ela.
Contudo, a mais marcante foi a ocupação da reitoria em maio de 2007 para derrubar decretos impostos pelo governador José Serra contra a autonomia universitária. A própria universidade organizou um livro sobre aquele momento[iv]. A 10 de maio o Sintusp parou e no dia 23 a Adusp. Foram os estudantes que protagonizaram a luta durante 51 dias de ocupação da reitoria. Não foi a primeira e nem a última. Em novembro de 2011 houve outra, dessa vez desastrada e minoritária. Ocorreu também em outubro de 2013. Copiar fórmulas de ontem sem as condições que as engendraram não é uma boa ideia. Já a ocupação de 2007 foi vitoriosa.
Em maio de 2009 de novo foram estudantes que se organizaram contra o ensino à distância na USP [v]. Também apoiaram a greve de agosto de 2013 que durou mais de 50 dias. A greve de docentes e funcionários de 2014 teve participação das três universidades estaduais e apoio efetivo de estudantes. Foi a maior da história da USP com 116 dias de paralisação. Nova greve de 13 de maio a 18 de julho de 2016 teve participação decisiva estudantil. Houve ocupações do prédio de História e Geografia e do prédio central da ECA. Tivemos outra greve de 29 de maio a 28 de junho de 2018. Sem elas, seriam ainda menores os salários, o corpo docente e as verbas de permanência estudantil.
A História das greves na USP ainda precisa ser escrita[vi]. A greve atual tem características inéditas. Claro que não é a primeira vez em que se reivindicam contratações de professores. E ninguém duvida da legitimidade da luta, afinal a USP tem um déficit de 1.042 docentes em relação a 2014 de acordo com a Adusp [vii]. Mas agora a greve tem uma dimensão de reconhecimento dos espaços e de luta por sua retomada depois de uma pandemia que permitiu às autoridades acadêmicas a imposição de um novo padrão de controle.
Independentemente do resultado imediato, alunas e alunos começaram a perceber que plataformas e sistemas são expressões de relações entre pessoas; que algo pode ser feito mesmo que o “júpiter” [viii] não deixe; que um pátio pode ser usado e vivenciado; e que intelectuais que não deixarão de reconhecer pelos seus livros são capazes de invocar a legislação trabalhista, as teorias da mais valia, a precariedade do trabalho ou a microfísica do poder contra uma greve simplesmente porque atrapalha seu planejamento pessoal.
De certa forma alguns autores aqui citados têm razão. Estudantes não lutam por si mesmos. Lutam por nós.
[i] José de Souza Martins, “Uma luta que não é deles: Os estudantes e a greve na USP”, O Estado de S. Paulo, 23 de julho de 2016.
[ii] Gazeta do Povo, 01 de outubro de 2023.
[iii] Embora seja muito aconselhável ler em grupos de estudos.
[iv] Franco Maria Lajolo, José Aparecido da Silva e Wanderley Messias da Costa (organizadores). A Universidade em debate – O que se escreveu sobre a USP no 1º semestre de 2007, Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da USP, 161 páginas.
[v] Retirei dados sobre algumas greves do Jornal do Campus, vários números.
[vi] Esse esboço feito às pressas para a greve de 2023 pode conter erros de memória.
[vii] Os 879 claros que a reitoria promete até 2025 desconsideram as aposentadorias que ocorrerão até lá. Somente de janeiro a agosto de 2023 houve 116 saídas de docentes. Em 2022 foram 189 desligamentos. Disponível aqui.
[viii] Sistema informático de Gestão Acadêmica da Pró-Reitoria de Graduação onde estão notas, matrículas, histórico escolar etc.
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Greves na USP – um histórico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU