30 Setembro 2014
Em tempos de governo liderado por um ex-sindicalista e por uma ex-militante contra a ditadura militar, o Brasil vive um momento de reorganização dos movimentos sociais de esquerda nos últimos anos. Novas iniciativas surgem, outras perdem força; algumas delas se adaptam ao atual contexto político. Entre os mais jovens (mas não somente), o Levante Popular da Juventude vem ecoando novos espaços de formação política e ação propositiva de caminhos ideológicos para o país.
A entrevista é de Marcela Belchior, publicada pelo sítio Adital, 26-09-2014.
A proposta é reunir o movimento estudantil, as lutas populares do campo, povos indígenas e quilombolas, direitos da diversidade sexual e todas as demais minorias que, hoje, somam forças nas cinco regiões brasileiras, no que se costuma considerar política de esquerda. Em entrevista exclusiva à Adital, Thiago Wender Ferreira, também chamado Thiago Pará, membro do Levante, debate como o movimento se articula e aponta algumas das bases das discussões.
Diretor de Políticas Educacionais da União Nacional dos Estudantes (UNE), Thiago explica que o movimento pretende construir um Projeto Popular para o Brasil, que transforme a sociedade brasileira em direção a alternativas de esquerda, bandeiras capazes de desbancarem núcleos de poder das elites historicamente dominantes no país. Reforma Agrária, Reforma Universitária, Reforma Urbana e Reforma Tributária — há muitos anos levantadas pelas esquerdas, mas, reiteradamente, barradas pelas políticas institucionais — são algumas delas.
Eis a entrevista.
Como começou o Levante Popular da Juventude?
O Levante Popular da Juventude surge de profundas reflexões de uma parcela da esquerda brasileira, aquela identificada com o Projeto Popular para o Brasil, ou seja, os movimentos sociais populares como MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores], MTD [Movimento dos Trabalhadores Desempregados] e a Consulta Popular.
Essas reflexões apontavam que estávamos vivendo no Brasil um momento muito importante, em que a parcela da juventude na sociedade era (e ainda é) gigante. Ao mesmo tempo, não havia organização que conseguisse chegar até esses jovens — em geral, vivendo nas grandes cidades, em periferias, com empregos precários e educação de baixa qualidade, ou seja, ingredientes para lutas sociais.
Essa juventude, ao contrário, vinha e vem sendo sistematicamente disputada pela direita e pelo conservadorismo. Sob a nuvem do neoliberalismo, a nossa juventude pobre vem sendo "organizada” pelo tráfico, pelas ONG's [organizações não governamentais], pelas igrejas neopentecostais, quando não são vítimas da deliberada política de extermínio, conduzida pelas polícias militares, resquício da ditadura [do regime militar e civil no Brasil de 1964 a 1985].
É a partir daí que jovens no [Estado do] Rio Grande do Sul, irão organizar as primeiras experiências do que viria a ser o Levante. Construindo as células de base nas universidades, escolas, periferias e no campo, como forma de unir a juventude brasileira, numa mesma organização para debater seus problemas e desafios.
O Levante organizou um primeiro Acampamento da Juventude, do qual 1 mil pessoas participaram. O segundo acampamento reuniu 3,2 mil pessoas. Como está, hoje, a articulação do movimento?
O primeiro acampamento foi, na verdade, o primeiro passo que demos para nacionalizar o Levante. Naquela ocasião, fevereiro de 2012, em Santa Cruz/Rio Grande do Sul, reunimos 1.200 jovens de 17 estados da Federação. Eram jovens camponeses, estudantes e trabalhadores. Muitos ainda não conheciam o Levante e ali estavam para conhecer aquela iniciativa que vinha surgindo. Foi o momento de conhecer e afirmar o Levante Popular da Juventude enquanto ferramenta da esquerda na organização da juventude da classe trabalhadora, com o objetivo de construir, no Brasil, um projeto popular.
O II Acampamento Nacional, que ocorreu em abril deste ano, em São Paulo, revelou, entre outras coisas, o acerto na construção dessa organização. Foram 3.200 jovens, de 24 estados do Brasil mais o DF [Distrito Federal] e delegações de outros tantos países da América Latina. Mas revelou, ao mesmo tempo, uma organização mais enraizada e ligada ao povo brasileiro. Os compromissos assumidos com o combate ao racismo, ao machismo e à homofobia são expressões do protagonismo das mulheres, negros e negras e da juventude LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros].
Foi a sintonia com os movimentos de junho de 2013 [Jornadas de Junho, manifestações populares em todo o país que, inicialmente, surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público] que nos fez assumir como prioridade a pauta do Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político. É uma campanha que, hoje, ultrapassa mais de 400 organizações sociais entre sindicatos, movimentos e partidos. Já são mais de 1.500 comitês em todo o Brasil. É, portanto, em torno dessa Campanha, que o nosso movimento, hoje, vem se articulando.
Qual o nível de politização do movimento no início de sua articulação? E hoje?
As ideias que predominam na sociedade são as ideias das classes dominantes, das elites. Por isso, não é fácil organizar a juventude, que é bombardeada, cotidianamente, pela mídia, religião, escolas etc. Podemos dizer que no Levante encontramos uma "escola de solidariedade”. É preciso recuperar valores e combater vícios. O neoliberalismo foi, para a nossa geração, uma catástrofe a esse respeito. Isso é o que acumulamos nesse período.
Nesse sentido a avaliação é muito positiva. Enquanto organização, estamos avançando coletivamente na construção de um projeto que esteja sintonizado com a vida dos/as jovens brasileiros/as. Quando afirmamos o combate às opressões, o fim dessa política de genocídio do povo negro, quando reivindicamos outra forma de fazer política, através da participação popular, de forma soberana e autônoma, quando fazemos tudo isso, dando centralidade aos debates em célula, com o todo da organização, é uma forma de combater a cultura neoliberal e cultivar valores coletivos, de solidariedade, de fidelidade e amor ao povo, de entrega e disciplina. Podemos dizer, portanto, que a organização, as lutas e a formação política que estimulamos e praticamos no Levante contribuem para a elevação da consciência dos jovens engajados.
Que juventudes participam do movimento?
Desde o início, procuramos organizar os segmentos da juventude brasileira que sofrem com nossa sociedade injusta e, ao mesmo tempo, aquelas parcelas que têm disposição para transformar a sociedade. São jovens estudantes de escolas, cursinhos e institutos técnicos, que veem suas possibilidades de ingressar no ensino superior de qualidade reduzidas; jovens universitários, que procuram uma formação profissional mais crítica e que procuram debater e transformar a educação brasileira; jovens camponeses, que veem suas escolas serem fechadas e as condições de cultivar a terra serem ceifadas pelo agronegócio; são jovens das periferias, que não podem se expressar através do funk, do hip hop, da capoeira etc., que são humilhados e assassinados pela Polícia Militar. Mulheres, negros e negras, gays, lésbicas, travestis, indígenas, quilombolas etc., que procuram espaço e condição para afirmar suas identidades.
Desde então, quais avanços foram alcançados?
A primeira pauta a que o Levante se lançou foi da Verdade, Memória e Justiça. Foram dois os propósitos que nos levaram a assumirmos essa bandeira em nossa fase inicial. O primeiro foi que queríamos lançar nossa organização na ação. Mais que um manifesto, uma carta de princípios, era preciso comunicar através da ação para a juventude brasileira, mostrar que é possível através da organização, atuarmos na transformação direta da sociedade. Inspirados na afirmação de Carlos Marighella de que a "ação faz a organização”, nos desafiamos a construir escrachos, que eram formas de denunciar os agentes da tortura ainda impunes.
E fizemos isso no contexto da disputa pela instalação da Comissão Nacional da Verdade. Sabemos que nossa atuação foi importante para quebrar a latência de outros setores e contribuir na luta das várias organizações que já vinham, há muito, pautando o tema. O segundo propósito era o de se apegar a um determinado leito histórico da esquerda brasileira, de reivindicar a memória de nossos e nossas mártires, de identificar nos problemas atuais raízes ainda vinda deste tempo.
De lá para cá, temos pautado com centralidade a utilização de agitaçãoe propaganda na ação da esquerda juvenil, formas outras de dialogar e aproximar os jovens das organizações. O resgate da cultura brasileira como arma na luta de classes e no embate com o conservadorismo e com as elites.
Temos também sistematizado um Projeto popular para a educação, que garanta passe-livre para toda a juventude, uma política de implantação de cursinhos populares, mais cotas raciais e sociais nas universidades, estímulo governamental à produção e acesso à cultura, o direito a creche para as mulheres poderem estudar e trabalhar, mais investimentos em educação pública, entre outros, e o reivindicamos na forma de Jornada de Lutas.
Travamos a luta pela democratização da mídia e escrachamos, em várias cidades, a Rede Globo e suas afiliadas. Mais recentemente, construímos com diversas entidades a II Marcha Internacional contra o Genocídio do Povo Negro, que foi organizada em diversas capitais e mobilizou cerca de 50 mil ativistas em todas essas manifestações.
Como vocês veem a cobertura dos movimentos sociais nos meios de comunicação?
Os meios de comunicação utilizam-se de duas táticas; quando uma falha, acionam a outra. A primeira é a tática da omissão, em que a mídia procura esconder o que os movimentos sociais vêm fazendo, sejam ações sem ou com enfrentamento; tentam jogar para o ostracismo, ignorar, fingir que não existe, ou seja, desinformar, deixar o telespectador sem qualquer referência de organização social que luta por seus direitos e pelo dos demais. Mas, quando essa tática não dá certo e as ações furam o bloqueio midiático, quase sempre com a ajuda da combativa mídia independente, a grande mídia se vale de sua outra tática, a da manipulação, ou seja, apresenta os fatos de forma imparcial ou mesmo invertendo a lógica.
Em geral, não dão espaço para as direções se pronunciarem, colocam "especialistas” imparciais e apresentam os fatos com a "linguagem adequada”. Em vez de utilizarem a palavra ocupação, usam invasão, para manifestantes usam depredadores ou terroristas etc. É por isso que a luta pela democratização dos meios de comunicação, com regulação econômica, quebra do monopólio e garantia de participação popular é necessária e urgente.
Existe um projeto popular para o Brasil? Quais seriam os pontos-chave?
Chamamos de Projeto Popular para o Brasil o conjunto de reformas estruturais que serão capazes de engajar a maioria da sociedade na luta pela transformação econômica e social do Brasil. Em diversos momentos o povo brasileiro e as organizações de esquerda lograram construir unidade na luta e fortalecimento de base, isso permitiu que colocássemos em disputa um projeto de esquerda contra as forças dominantes. No inicio da década de 1960, tínhamos as Reformas de Base, que era o projeto da classe trabalhadora. Na década de 1980, vimos um conjunto de organizações populares e sindicais pautarem a construção do Projeto Democrático e Popular, sintetizado no interior dos debates no PT [Partido dos Trabalhadores]. São projetos que orientam a sociedade para alternativas de esquerda, permitem acumularmos força em momentos de descenso das lutas de massa e, ao mesmo tempo, alterar a correlação de forças nos momentos em que a luta política torna-se central no cotidiano das pessoas.
Hoje, é preciso construir e fortalecer o Projeto Popular para o Brasil, como forma de orientar as organizações populares na luta democrática e nacional. Os pontos-chave desse projeto são, justamente, as bandeiras capazes de colocarem em xeque os núcleos de poder das elites dominantes.
A concentração da terra com uso intensivo de agrotóxicos é a força do agronegócio; por isso, lutamos pela Reforma Agrária Popular defendida pelo MST. As universidades particulares, que proliferam sem qualquer regulamentação ou garantia de qualidade no ensino, é onde reside a força das grandes empresas nacionais e multinacionais do setor de educação e parcela do capital financeiro; por isso a luta por uma Reforma Universitária encabeçada pela UNE. Entre outras, como a Reforma Urbana, que garanta moradia digna para os/as trabalhadores/as frente aos interesses das empreiteiras; a Reforma Tributária, que cobre mais impostos de quem tem dinheiro e desonere o bolso do trabalhador e da trabalhadora etc.
Essas são as bandeiras que defendemos e que conformam o Projeto Popular. Veja que são, ao mesmo tempo, instrumentos de mobilização, pois dialogam com o cotidiano da população, com suas demandas mais presentes; sendo, portanto, caminho para o debate e a construção de sociedades de outro tipo.
Às vezes, vocês usam o termo "socialismo". O que vocês entendem por socialismo?
É a organização da sociedade em bases igualitárias e justas, com planejamento da economia e garantia de desenvolvimento pleno da sociedade, com a busca incessante de sua emancipação. Já tivemos diversas experiências de construção socialista, umas mais outras menos exitosas, mas todas foram essenciais para romper com o paradigma capitalista e colocar no horizonte uma alternativa possível e viável.
As experiências russa, chinesa, vietnamita, cubana, nicaraguense etc., todas dão uma contribuição importante para pensarmos em quais bases queremos construir nossa sociedade. Ao mesmo tempo, é hoje um tema distante da sociedade, muitas vezes até temido, por conta da vasta propaganda antissocialista produzida do pós-Grande Guerra até os dias de hoje.
Acreditamos que nossa tarefa central, hoje, seja organizar a juventude e construir um Projeto Popular. Este projeto obviamente enfrentará a oposição das elites; e, quando vitorioso, apontará para a construção de uma sociedade socialista.
Como vocês percebem a aceitação das massas com relação aos recentes protestos de rua e demais manifestações de resistência popular?
Em geral, há uma boa aceitação por parte da população, com exceção das manifestações que acabem em confrontos e depredações. É importante colocar aqui o quanto a mídia corporativa trata as manifestações de todos os tipos de forma negativa. Procura, em todo momento, criar na população um sentimento antimanifestação, antiprotesto.
Sempre entrevistam a senhora que trabalha de doméstica e que chegará em casa lá pelas 2 horas da madrugada porque os metroviários ou rodoviários estão em greve, e por aí vai. As questões centrais das greves, manifestações e atos são relegadas ao esquecimento, despolitizando dessa forma a ação política coletiva. Em todo caso, a aceitação é sempre muito positiva, mas, quando as manifestações não apresentam coerência com os problemas do cotidiano da população, acabam sendo rechaçadas pelo próprio povo.
Conheça mais do Levante Popular da Juventude aqui.
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Levante: a juventude e a construção de um projeto popular para o Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU