27 Setembro 2023
Reconstituir a obra do filósofo falecido na terça-feira aos 87 anos continua a ser uma "aventura da diferença” que testemunha uma labuta fortemente vivida e estreitamente entrelaçada com a história de todos nós e que vai além da “sigla” que o tornou famoso.
A opinião é de Stefano Velotti, professor de filosofia, publicada por Domani, 21-09-2023.
Gianni Vattimo morreu quarenta anos depois da publicação de um livro escrito por muitas vozes - mas à qual ele havia dado o tom dominante – que permaneceu por muito tempo associado ao seu nome como uma marca registrada, O pensamento fraco, Feltrinelli.
Na realidade, ao apresentar aquele panfleto junto com o amigo Pier Aldo Rovatti, os autores alertavam que a expressão deveria ser entendida apenas como uma metáfora e não deveria se tornar “a sigla de alguma nova filosofia." Dois anos atrás, as obras de Vattimo foram reunidas em grande volume editado por Antonio Gnoli e Gaetano Chiurazzi, com o título Scritti Filosofici e Politici, La navio de Teseu. Basta folheá-lo para perceber como o pensamento de Vattimo não pode ser reduzido àquela “sigla”.
A Vattimo, além disso, devemos também a introdução, em nosso panorama filosófico, da obra-prima de Gadamer, Verdade e Método, e do livro mais influente de Rorty, Filosofia e o Espelho da natureza. Dois autores importantes para relembrar a atmosfera daqueles anos (os anos do “pós-modernos”), mas também para se aproximar do pensamento de Vattimo. Gadamer, juntamente com Pareyson – que foi orientador de Vattimo – e Ricoeur foram os principais representantes da hermenêutica filosófico, enquanto Rorty se tornou o representante mais brilhante do chamado “neopragmatismo”.
Que relação havia entre essas duas propostas? A hermenêutica tinha raízes antigas na teoria da interpretação da Bíblia e do pensamento romântico, e havia sido repensada por Heidegger, professor de Gadamer e um dos principais interlocutores de Vattimo.
A hermenêutica tinha em comum com o “neopragmatismo” de Rorty a rejeição de qualquer pensamento que pretendesse se alicerçar sobre um fundamento, fosse Deus, a consciência subjetiva, uma estrutura impessoal ou a realidade objetiva. A chamada "metafísica ocidental" (grosso modo, toda a tradição filosófica, de Platão ao século XX) pretendia saber demais, estabelecer imperativos morais ou critérios de verdade injustificáveis.
Em vez disso, era preciso reconhecer que o pensamento não tem uma base sólida onde se apoiar, mas é uma inesgotável reinterpretação da tradição. Por essa razão Gadamer reavaliava o papel dos preconceitos - que a razão iluminista afirmara poder desmascarar - indicando-os, em vez disso, como “lugares-comuns” essenciais para o pensamento, que era preciso retomar e reinterpretar.
Por outro lado, o “neopragmatismo” proposto por Rorty via a filosofia como um gênero literário entre os outros: nenhuma teoria da representação “correta” do mundo, da ciência ou do conhecimento, mas o desenrolar de um diálogo irônico, democrático, solidário e sempre ligado a um contexto específico. Pretensões universais são impossíveis, o etnocentrismo é inevitável. Seria ilusório, de fato, pretender transcender as nossas práticas para colocá-las em horizontes de sentido mais amplos.
Ambas as perspectivas eram exemplos de “enfraquecimento” do pensamento. Vattimo, por sua vez, argumentava que não era necessário tentar "superar" a "metafísica ocidental", porque cada tentativa nesse sentido teria inevitavelmente reproposto algum outro fundamento, verdadeiro ou autêntico, que teria se escondido "por baixo" ou "além" das aparências ou dos "erros" da metafísica.
O próprio Ser heideggeriano - cujo “esquecimento” estaria em termo-nos reduzidos a um comércio exclusivo com "entes" determinados, sejam o Ente Supremo ou os objetos das ciências - não devia ser entendido como um terreno mais profundo sobre o qual se instalar, mas como algo a ser retomado e distorcido: em termos heideggerianos, não uma superação (Überwindung) da metafísica, mas uma sua recuperação-distorção (Verwindung). A “morte de Deus” – a perda de toda garantia transcendente, o niilismo – não assumia nenhum tom trágico nesse quadro, aliás era o desaparecimento libertador de alicerces ou ancoragem de pensamento autoritários, uma abertura para uma “errância” libertada do fardo do erro.
Para o debate filosófico da década de 1980, o nome de Vattimo era essencial: eram lidos com paixão os seus artigos em jornais e revistas, eram discutidos seus livros e os autores por ele revisitados de forma clara e original (a começar por Nietzsche e Heidegger). Enquanto os seus livros eram traduzidos em todo o mundo, sua ideia segundo a qual a hermenêutica havia se tornado a koinè da filosofia contemporânea despertava amplas adesões e alguma firme resistência. É verdade, o “pensamento fraco” não poderia tornar-se a sigla de uma nova filosofia. O próprio volume que carregava aquele título era uma coletânea de ensaios heterogêneos. Contudo, é inegável que entre a década de 1980 e 90 essa sigla capturou perfeitamente uma atmosfera, um estilo de pensamento, uma tonalidade predominante.
O trabalho de Vattimo certamente não parou naqueles anos. Mas é inevitável perguntar-se o que ficou daquela koinè. Aqui está: parece que tenha se passado um século. A própria ideia de que aquela leveza, aquele enfraquecimento de verdadeiros ou supostos fundamentos fortes do pensamento pudesse levar a uma emancipação – por caminhos alternativos ao marxismo, à teoria crítica de Frankfurt ou à razão herdeira do Iluminismo – demonstrou ser ilusória. O próprio Vattimo desembarcou nos últimos anos a perspectivas distintas, contidas na fórmula mais uma vez surpreendente de “comunismo hermenêutico”. Uma hermenêutica que não está mais tão interessada na retomada-distorção do legado da metafísica ocidental, mas no mundo dos vencidos e dos excluídos, nas questões de gênero ou de classe, econômicas ou geográficas.
Aquela koinè hermenêutica da qual Vattimo foi protagonista aparece agora, em retrospectiva, uma labareda, uma longa labareda, que, no entanto, parece ter-se esgotado.
Por um lado, contribuiu certamente para incinerar toda pretensão dogmática e reacionária de querer encontrar fundamentos presumivelmente "naturais" para justificar ou fundamentar comportamentos e ordens sociais. Na natureza, sabemos, é possível encontrar uma ordem e dela “extrair” regras e leis, mas somente porque a natureza hospeda um número extraordinário de ordens e comportamentos.
Eleger um como ordem “natural” é ridículo e perigoso. E pensar em compreender a natureza independentemente de seu entrelaçamento inextricável e original com a cultura é uma pretensão absurda. De vez em quando, para falar a verdade, ainda despontam tentativas, mais ou menos refinadas, talvez motivadas por uma certa nostalgia de absolutez, que já não identificam mais o absoluto num ente supremo, mas numa relação com a natureza ou com as coisas. Uma relação, porém, que tenta se cancelar: uma vontade de relacionar-se com o mundo sem relacionar-se àquele mesmo relacionar-se... Soltos, “ab-solutos” de toda correlação.
Por outro lado, penso que ainda seja difícil sustentar uma visão da filosofia ocidental como um bloco compacto, “a metafísica ocidental”, dado que todo filósofo significativo escapa a esses crivos de classificação, muito grosseiros e um tanto mitológicos. Muitas modas filosóficas efêmeras surgem da falta de confronto com aqueles que, no passado, pensaram a fundo problemas que ainda nos dizem respeito, independentemente do inevitável estilo cultural ou das convicções pessoais, talvez antiquadas ou inaceitáveis, com as quais aquele pensamento está entrelaçado. As convicções pessoais são uma coisa, os pensamentos outra, e é precisamente um questionamento genuíno que nos permite distinguir as duas coisas, não uma reelaboração-transformação de preconceitos.
Mesmo que não possamos escapar da cultura - estamos imersos nela - nem tudo pode ser reconduzido a um plano cultural. Será necessário, por exemplo, interrogar-se continuamente sobre as condições de possibilidades de uma cultura, que não podem ser por sua vez apenas linguístico-culturais. Como igualmente discutível revelou-se ao longo do tempo a clara distinção entre o moderno e o pós-moderno, não apenas porque o pós-moderno foi retrodatado por alguns até Kant, mas também porque está entrelaçado de problemáticas já modernas.
Revisitar as obras de Vattimo – uma pessoa gentil, um virtuoso do understatement, que na singularidade da sua vida viveu com paixão muitas vidas - continua a ser uma “aventura da diferença” que testemunha uma labuta fortemente vivida, estreitamente ligada à história de todos nós.
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O Vattimo essencial era mais que o pensamento fraco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU