23 Setembro 2023
A figura e o pensamento do filósofo falecido na terça-feira: só encarnando historicamente a “kénosis” é possível viver autenticamente o Evangelho.
A opinião é de Francesco Tomatis, filósofo italiano, em artigo publicado por Avvenire, 21-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cristianismo e hermenêutica, kénosis e interpretação, liberdade, amor e emancipação compõem a constelação que orienta o caminho do pensamento de Gianni Vattimo. Quando em 1959 graduou-se em Turim - onde nasceu em 4 de janeiro de 1936, filho de uma costureira de Pinerolo e de um policial calabrês, para morrer em Rivoli no último dia 19 de setembro - com uma tese dedicada ao conceito do fazer em Aristóteles e orientado por Luigi Pareyson, o jovem filósofo já tem em sua bagagem uma história de militância na Juventude estudantil da Ação Católica, inspirados pelo comunitarismo católico de Maritain e Mounier e por Bernanos, bem como a experiência de jornalista e apresentador da recém criada RAI de Filiberto Guala. Nesse ínterim, também alimenta o interesse pelo montanhismo, com Alberto Risso, com quem realiza várias escaladas no Mont Blanc e nas Grandes Jorasses, e por um período acompanha Walter Bonatti para treinar em Rocca Sbarua. Ele depois passará um verão no refúgio no morro do Teódulo, alternando escalada e o estudo de Nietzsche, de quem se tornaria um dos mais respeitados intérpretes em livros como Ipotesi su Nietzsche (1967), O sujeito e a máscara (1974), Introduzione a Nietzsche (1985), Diálogo com Nietzsche (2000). Um belo testemunho da paixão pela vida entre geleiras e picos altos será o livro Magnificat (2011).
Recém-formado, ganhou a prestigiosa bolsa von Humboldt e trabalhou por dois anos (1962-1963) na Universidade de Heidelberg com Hans-Georg Gadamer, publicando então essas pesquisas no livro Essere, storia, linguaggio in Heidegger (1963). Com os estudos sobre Heidegger, do qual estará entre maiores intérpretes e prosseguidores, e depois sobre Schleiermacher filósofo da interpretação (1968), influenciou seu próprio orientador Pareyson, que em 1971 publicou Verità e interpretazione, em parte tomando distâncias da ontologia negativa de Heidegger, mas precisamente no sentido vattimiano, apreciando sua concepção da verdade como abertura inesgotável de sentido, evento a ser interpretado pessoalmente. Assim, si parva licet, em 1996, Vattimo se focará na concepção cristã de kénosis, esvaziamento ou rebaixamento de Deus na encarnação, seu próprio livro-confissão crer que se crê, após o lançamento em 1994 do meu Kénosis del logos, leitura da filosofia de Schelling que destaca as kenoticidades do cristianismo e da própria razão humana na sua autonomia, aliás, seguindo os passos da interpretação pareysoniana do grande pensador suábio.
Outras obras posteriores, como Depois da Cristandade (2002) e Nichilismo ed emancipazione (2003) desenvolverão significativamente esse retorno de Vattimo ao cristianismo, depois de um parêntese (pelo menos aparentemente) de falta de abordagem do mesmo em seus escritos: As aventuras da diferença (1980), Al di là del soggetto (1981), O fim da modernidade (1985), A sociedade transparente (1989), Etica dell’interpretazione (1989). Na verdade, Vattimo interpreta a pós-modernidade, especialmente nos seus aspectos mais positivos, como fruto do cristianismo, entendido ele mesmo como secularizador de uma religiosidade sagrada e vitimária em uma fé emancipatória, interpretativa, caritativa, pois, como esclarecerá mais adiante, justamente kenótica. A concepção cristã da encarnação é ela mesma secularizante, mostrando como uma relação com Deus só é possível interpretativamente, encarnando historicamente e sempre na primeira pessoa a mensagem, a palavra, a verdade.
O ponto de transição para essa última concepção de Vattimo é o pensamento fraco, fórmula de grande sucesso, embora muito ambíguo e, afinal, não emblemática da filosofia de Vattimo. Como ele mesmo especificou - em particular em Oltre l'interpretazione (1994) -, pensamento fraco significa pensamento antifundacionalista e pós-metafísico, mas não em sentido relativista, algo que comportaria um novo absolutismo, mas sim entendido de modo hermenêutico e de uma hermenêutica que não se reduz a interpretação de interpretação da interpretação, num série infinita e aviltante, mas se expõe à mesma interpretabilidade proclamada, sendo histórico e interpretativo também o próprio horizonte interpretativo pessoal, deixando sempre aberta uma ulterioridade de sentido, até mesmo de possível religiosidade. Portanto, dirá Vattimo, o pensamento fraco mais que um pensamento relativizado e relativizante é um pensamento para os fracos e que pensa na fraqueza do ser. O ser é sempre dado indiretamente, como historicidade, evento, esvaziamento, falta, não como presença plena e objetividade fundadora, base justificativa peremptória de todo pensamento uniformizante e ação violenta. Portanto, à kénosis ou esvaziamento ou fraqueza do ser corresponde uma maior valorização dos fracos, dos indivíduos nas suas fraquezas, compreensível e emancipável apenas através da caritas, o amor resultante de uma concepção interpretativa da realidade, não violenta, dialógica. Estamos nas últimas obras publicadas pelo filósofo: Addio alla verità (2009), Della realtà (2012), Essere e dintorni (2018), Scritti filosofici e politici (2021). A atenção aos fracos da história e da sociedade também é evidente no empenho de Vattimo, como cristão e homossexual declarado, durante muito tempo no Partido Radical, depois em várias formações políticas, o que o levou ao Parlamento Europeu para duas legislaturas (1999-2004 e 2009-2014). Resultado também dessas experiências os volumes: Il socialismo ossia l’Europa (2004), La vita dell’altro (2006) e Ecce comu (2007). Mas aquele de Vattimo é um encarnar pessoalmente a fraqueza, ajudando em silêncio o próximo, os humildes, os pequenos, os últimos, a ponto de se esvaziar de si mesmo e de suas posses, sofrendo também diversas perdas de familiares e companheiros de caminho, como seu pai com um ano de idade, sua irmã ainda pequena, o primeiro e o segundo companheiro de sua vida devido a graves doenças.
Vattimo é certamente o filósofo italiano mais conhecido no exterior, tendo realizado cursos e conferências em todo o mundo, em particular nos Estados Unidos e na América Latina, bem como naturalmente na Europa, e sendo quase todas as suas obras traduzidas para vários idiomas. O seu precioso arquivo pessoal de escritos e notas está hoje preservado na Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, não tendo encontrado lugar na de Turim, onde lecionou estética desde 1964 e depois de 1982 a 2008 filosofia teórica, e diretor da Faculdade de Filosofia e Letras.
Entre os maiores expoentes da hermenêutica filosófica contemporânea, Vattimo reivindicou a vocação ontológica da hermenêutica, entendendo o ser como evento, abertura veritativa na história, transmissão interpretativa. Dessa forma, ele salvaguardou a hermenêutica do relativismo historicista e praxista, evidenciando as derivas absolutistas, dogmáticas e totalizantes tanto do racionalismo moderno, do direito natural, do colonialismo quanto dos seus detratores globalistas, tecnocratas e relativistas, que compensam todas as diferenças, tanto entre pessoas diferentes, como entre finito e infinito. Referindo-se ao autêntico espírito evangélico, que entende a kénosis como encarnação histórica, busca pessoal de uma verdade que não pode ser possuída, mesmo assim interpretável nos mais humildes traços humanos, mortais, o pensamento e o exemplo de Vattimo permanecem uma voz preciosa, tenaz na sua fraqueza, para defender cada criatura diferente de violências totalitárias, imposições tecnocráticas, reducionismos culturais que ainda hoje permeiam todo tipo de sociedade.
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Gianni Vattimo e a força fraca do cristianismo. Artigo de Francesco Tomatis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU