19 Setembro 2023
"Contudo, gostaria de fazer uma outra leitura das afirmações de Prigozhin, tentando explicitar os fundamentos teológicos. Parto, portanto, do princípio que não mente, que acredita realmente no que diz: 'A morte não é o fim, é apenas o começo de outra coisa. Iremos todos para o inferno, mas nós no inferno seremos os melhores'. Agregação brutal e sucinta de ideias aparentemente contraditórias", escreve Foucauld Giuliani, professor de filosofia, poeta e membro do coletivo Anástasis, em artigo publicado por La Croix, 11-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
"A morte não é o fim, é apenas o começo de outra coisa. Iremos todos para o inferno, mas no inferno nós seremos os melhores". Essas palavras arrepiantes de Yevgeny Prigozhin reapareceram no momento da morte do sanguinário chefe do Grupo Wagner num acidente de avião em 23 de agosto. Esse provável assassinato, disfarçado de acidente, tem uma grande probabilidade de ter sido ordenado pelo vértice do Estado russo, determinado a fazer Prigozhin pagar por questionar a sua autoridade. Como interpretar essas suas palavras, tão enigmáticas à primeira vista?
Esta questão obriga-nos a descartar duas hipóteses sedutoras. A primeira percebe nessas palavras uma simples zombaria niilista, uma última provocação irônica que visa a crença em uma lei moral superior à vontade humana e ao reino da força. Neste caso, seria então oportuno entendê-las como o oposto de seu significado aparente: a morte tudo vence, não há nada além dela.
A segunda hipótese consistiria em compreender as afirmações lapidares de Prigozhin como instrumento de poder e não como a expressão de um pensamento sincero. O objetivo dessas declarações seria intimidar e aterrorizar o inimigo. De fato, que limite moral tem um homem que desafia o seu próprio destino escatológico? Tal postura requer um desenvolvimento organizado e implacável da destruição, algo que inspira medo. Não estaria o chefe de guerra russo interessado em encarnar esse papel e projetar uma imagem de si aterradora de guerreiro implacável?
Contudo, gostaria de fazer uma outra leitura das afirmações de Prigozhin, tentando explicitar os fundamentos teológicos. Parto, portanto, do princípio que não mente, que acredita realmente no que diz: “A morte não é o fim, é apenas o começo de outra coisa. Iremos todos para o inferno, mas nós no inferno seremos os melhores". Agregação brutal e sucinta de ideias aparentemente contraditórias.
Lida separadamente, a primeira parte da frase pode ser entendida como um ato de fé e um testemunho de esperança. Ele expressa à sua maneira o que qualquer crente pode intuir, obviamente com intensidade e frequência distintas. A morte não é o fim temporal nem a finalidade do mundo criado por Deus.
Isso se traduz, no nível individual, na esperança de uma travessia da morte biológica. Para Prigozhin, existe “algo mais” depois da vida terrena. A morte parece temperada pela esperança de vida após a morte; é uma passagem e não um muro intransponível, “apenas” a primeira etapa de uma nova vida que se desenvolverá numa relação de continuidade transformadora com a existência assim como a conhecemos.
A segunda parte desmente completamente essa interpretação otimista e modifica radicalmente o sentido da primeira: a morte não é mais transfigurada pela esperança de uma vida transfigurada, mas é desmedidamente oprimida pelo peso do inferno. A escatologia da esperança transforma-se na escatologia do desespero; a expectativa escatológica não tem mais como objeto a salvação, mas a condenação; a esperança é desfigurada, distorcida na raiz, perde todo o significado positivo. Resta apenas uma sinistra fatalidade, totalmente prevista no que se assemelha a uma extraordinária explosão de lucidez: “Iremos todos para o inferno”.
Se a primeira frase contrasta com a segunda, é menos por razão lógica do que por efeito retórico. Nada no tom da primeira permite pressupor o conteúdo da segunda. Do ponto de vista da lógica religiosa, por outro lado, a vida terrena e a vida após a morte estão estreitamente relacionadas: o que é realizado na vida terrena influencia o que será vivido na vida após a morte. Há, portanto, uma continuidade de sentido entre as duas frases, não estamos perante algo absurdo. Isso nos impede de fazer de Prigozhin um niilista.
De forma desconcertante, ele parece virar às costas àquilo que, no entanto, reconhece ser uma realidade, isto é, Deus e os seus mandamentos. O criminoso não nega a sua participação deliberada no mal, na sua obra de destruição e na sua consequência inevitável que aos seus olhos é o inferno. Pelo contrário, o seu espírito está saturado pela consciência do mal cometido, se não mesmo consumido pelo sentimento de culpa.
Poder-se-ia até pensar que nessas condições teria sido possível uma conversão moral, que certamente não teria reparado os seus crimes nem ressuscitado as inúmeras vidas ucranianas destruídas.
Mas, em vez de se abrir à conversão e se arrepender, Prigozhin radicalizou ainda mais as suas posições. Não apenas generalizando a sua profecia pessimista – “Iremos todos para o inferno (…)” – mas transplantando nela o fantasma de um desejo de dominação total finalmente satisfeito – “(…) mas no inferno seremos os melhores”.
A quem se refere esse “todos"? À humanidade como um todo ou aos seus acólitos, promovidos a semeadores de desolação? A valorização da violência e a vontade de vencer no jogo dos instintos para a dominação política leva-nos a apontar para a segunda hipótese. A menos que Prigozhin alimente a concepção ultrapessimista e ultrapassada de uma humanidade irremediavelmente perdida, prometida ao sofrimento eterno infligido por um Deus inflexível diante de toda forma de pecado.
A universalização do inferno também pode ser para Prigozhin uma forma de culpar a humanidade como um todo pela existência do mal e, assim, relativizar os seus próprios crimes. Esse pessimismo radical é indissociavelmente moral, na medida em que julga a natureza humana, e escatológico, na medida em que diz respeito ao destino da humanidade.
Lembra-me uma frase de um personagem secundário em Os Irmãos Karamázov, de Dostoievski: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu, mais do que os outros”. Em Prigozhin, essa disposição para perceber o mal como realidade fundamental e intransponível da história parece opor-se a qualquer ideia de salvação, quer esta assuma a forma da graça já em ação no mundo, quer a aparência de uma eternidade feliz que se abre aos homens após sua morte.
Em todo caso, o essencial está noutro lugar, na revelação desconcertante segundo a qual ele e os outros "irão" ao “inferno", mas lá figurarão entre "os melhores". Esta tentativa de restabelecer a esperança dando-lhe um novo objeto – a dominação – apresenta-se como uma compensação ao destino infernal, do qual esse "mas" revela um estranho estoicismo de adesão ao pior. Ao recusar transfigurar a prova da morte pela esperança da salvação, portanto pela recusa imediata e determinada do mal, Prigozhin relativiza a prova do inferno com a esperança de ali reinar soberanamente, portanto pela prática contínua e consciente do mal.
A escatologia desesperada encontra a sua patética via de escape: o fantasma de uma dominação sem fim. Melhor vencer no inferno pela dominação, do que renunciar ao inferno e ao reino da força. Visto que se designa como último aos olhos de Deus, Prigozhin pode entronizar-se como primeiro no mundo desprovido de Deus, desconsiderando a advertência de Cristo – “Muitos que são primeiros serão últimos, e muitos que são últimos serão primeiros” (Mt 19,30) – e medindo as consequências dessa escolha: “no inferno seremos os melhores”.
A condição de senhor absoluto do inferno transfiguraria, assim, a condição de condenado ao inferno. Esse fantasma da onipotência já fica evidente no início da frase, na forma de se apropriar do papel de Deus no exercício do juízo final, antecipando-se a ele para se condenar.
Uma linha mortal liga a escatologia do desespero à figura do criminoso de guerra. Perpassado pelo sentimento de estar perdido, Prigozhin recorre à violência como única lei válida, prefiguração da constituição do inferno à qual se declara destinado.
“No inferno seremos os melhores”. Essa frase ressoa como uma estranha confissão. Prigozhin reconhece que não é vencedor em todo lugar, que lhe escapa um espaço que não é o inferno e onde a lei da dominação não prevalece. Será que na terra o sopro invencível do Espírito já esteja arrebatando o mundo do império total da violência? É possível que para além do tempo o Reino do amor e da plenitude já esteja sendo construído?
Se tais intuições tivessem cruzado por Prigozhin, devem ter deixado dentro dele o peso morto de uma amargura infinita.
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Uma estranha confissão. Artigo de Foucauld Giuliani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU