30 Agosto 2023
Em sua origem etimológica, a palavra “violência” deriva do latim vis (força) e latus (particípio passado do verbo ferus, que significava carregar ou transportar). Portanto, seu significado literal é levar a força a algo ou alguém.
Em seu décimo livro publicado, que tem nada mais nada menos que 500 páginas, Alfredo González-Ruibal, doutor em Arqueologia e pesquisador do CSIC, faz um estudo pormenorizado sobre a história da violência humana, aquela que começou, em termos de um grupo contra outro, há mais de 6.000 anos, no mínimo.
Ruibal dedica boa parte de seu tempo profissional a indagar em sítios arqueológicos localizados nos lugares mais díspares. Brasil, Itália, Polônia, Sudão, Guiné Equatorial, Etiópia, Djibouti, Somalilândia e, claro, Espanha.
Em Tierra arrasada (Crítica, 2023), ele narra como a violência não foi habitual, com a mesma intensidade, em todas as regiões. Conta como a África subsaariana, por exemplo, “está associada ao pior, sendo que relativamente pacífica, com doses muito mais intensas de violência na Europa”. E, nesta entrevista, repassa alguns marcos da história, como o Holocausto e a “primeira guerra europeia”, ocorrida no século XIII a.C.
A entrevista é de Daniel Galvalizi, publicada por Naiz, 25-08-2023. A tradução é do Cepat.
Este livro é uma história sobre a violência humana? Escrevê-lo em um contexto de guerra na Europa influenciou algo em você?
A verdade é que não, o contexto de guerra é uma coincidência. O livro, em última instância, surgiu de uma aula que dei em um mestrado, sobre história militar, na Universidade de Santiago. Há muitos anos, dedico-me à arqueologia do conflito e a questão é que para esse curso fiz algumas leituras novas e, nessas leituras, descobri algumas histórias que me pareceram impactantes e que, ao final, acabaram no livro.
Não tanto pelas histórias em letras maiúsculas, mas pelas histórias humanas, pensei que daí poderia sair um livro bonito. É uma história da violência de longa duração, que até agora não havia sido contada. Jamais alguém havia contado algo que cubra toda a experiência humana. É um ensaio porque pretende ser mais do que um livro acadêmico, tem algumas teses por trás, algumas ideias sobre o que é o conflito, a guerra... É uma reflexão.
Considera que existe alguma região do mundo onde a violência tenha sido mais generalizada?
Talvez devêssemos falar de regiões onde a violência tenha sido menos habitual, pois é verdade que pensamos que a violência é comum ao longo do tempo e do espaço e há regiões em que foi menos. E uma dessas regiões é a África subsaariana. É importante enfatizar isso porque, agora, nós a associamos ao pior e é algo relativamente recente. A África foi um continente relativamente pacífico, em doses muito menos intensas [de violência], claro, do que na Europa.
Conhecemos menos os territórios como o Sudeste asiático e a Índia, mas uma constante é a guerra entre formações políticas. Se compararmos a história da Índia com a da Europa, a Índia continua sendo mais pacífica, em termos gerais, até o século XVI, pelo menos. Teve momentos anteriores de violência, quando os mongóis invadiram a própria China, embora haja menos evidências de conflito.
Na Europa, é verdade que temos muitas evidências de violência desde tempos muito antigos, mas há um viés de informação, temos tantas informações que é difícil de comparar com outros lugares. É o que vemos em dois elementos-chave. Um deles é que é na Europa que, primeiro, aplica-se a inovação tecnológica à guerra, o que não acontece no outro lado. E depois existe o fato da fortificação.
Na Europa, existe a tradição de assentamentos fortificados que vão do IV milênio a.C. a finais do século XIX. Na África subsaariana, por exemplo, os povoados fortificados são bem pouco comuns. Então, as inovações aplicadas à guerra e às cidades como máquinas de batalha indicam que a Europa teve uma tradição intensa, duradoura e forte de conflitos armados. A partir do final do século XV, esta forma europeia de fazer a guerra é globalizada, projetada.
Qual foi a primeira grande batalha bélica europeia?
Com os dados que temos em mãos, a do ano 1250 a.C., no vale do rio Tollense (nordeste da Alemanha), é o primeiro grande conflito europeu. Envolveu comunidades que viviam muito distantes. Antes, talvez tenha ocorrido outras, mas esta pudemos registrar arqueologicamente. É a guerra de Troia europeia, pode-se dizer. Envolveu pessoas que vinham da Boêmia, da Escandinávia...
A partir das análises químicas de isótopos, sabemos que vieram pessoas de regiões muito distantes. Coincide com o mapa da Guerra dos Trinta Anos. O motivo pelo qual esse conflito foi desencadeado, com 4.000 ou mais pessoas, é um enigma. Isto o torna ainda mais interessante, porque só podemos especular.
Penso que para essa época, em toda a Europa central, haviam surgido chefias, pequenos estados dirigidos por líderes guerreiros, certamente carismáticos, toda a área estaria fragmentada em pequenos reinos que competiam entre si. Foi um modelo semelhante ao da Europa bárbara de depois do século V, e isso posteriormente abrangeria grandes confederações.
Há coisas que se associa à modernidade, ou ao menos ao século passado, como as valas comuns. Quais são as mais antigas? É um costume ancestral entre inimigos?
As valas comuns existem há muito tempo. De fato, as que mais se assemelham às atuais são as do Neolítico. Contam com 10 a 20 cadáveres, e a partir do Neolítico, existem em todos os períodos históricos e em todos os lugares do mundo. Com a modernidade, aumentam exponencialmente, estão relacionadas aos grandes massacres, à violência ideológica que faz com que não se respeite a vida dos não combatentes e leva à desumanização, a partir do final do século XIX, que é um risco da violência.
Antes, concedia-se a humanidade ao outro, sobretudo antes da expansão colonial. É em fins do século XVIII que as ideologias que ainda temos agora são consolidadas e surge essa violência ideológica revolucionária, tanto de esquerdas como de direitas. E, por outro lado, temos a segunda onda de expansão colonial, ao longo do século XIX, em que se gera uma violência excessiva, desumaniza-se porque o outro não é considerado humano.
É aí, paradoxalmente, no passado mais próximo, que se começa uma fase mais selvagem de violência?
A violência selvagem existe desde que há seres humanos anatomicamente modernos. Marcas de violência existem há 12.000 anos. Contudo, uma coisa é praticá-la com o inimigo e outra é que a humanidade lhe seja negada. Isso é algo que não ocorre até tempos mais contemporâneos, não existe em momentos anteriores. Houve pogroms antissemitas na Idade Média, mas mesmo naquele momento a humanidade era concedida.
O fato é que os genocídios, o extermínio planejado de um ser humano para que não reste nenhum, os primeiros a praticá-los são os europeus com os não europeus. Uma vez que isso se dá, acontece o mesmo em outros contextos, como em Ruanda, onde provavelmente não teria acontecido, se não tivesse havido colonização. No sentido mais extremo, pode-se dizer que isto é uma patente europeia: não garantir ao outro sua humanidade e torná-lo exterminável.
Na história espanhola, a Inquisição pode ser considerada algo semelhante...
Sim, na Inquisição católica está a semente. Antes disso, está a ideia da limpeza étnica. A ideia de que a Espanha era para os espanhóis e que os espanhóis eram os cristãos-velhos. Essas ideias de pureza de sangue e homogeneidade étnica são o germe do genocídio, embora isso não signifique que termine em genocídio.
Mais do que a Inquisição, pode-se dizer no impulso de limpar etnicamente e religiosamente um país. Assim como os nazistas buscavam fazer, a monarquia hispânica expulsou os judeus, depois os muçulmanos e seus descendentes, e a Espanha fica teoricamente como um país homogêneo.
E pensar que no hemiciclo do Congresso dos Deputados existem duas enormes estátuas dos Reis Católicos...
Tendo em conta a forma como as pessoas foram educadas na Espanha, o imaginário dos espanhóis tem sua lógica porque aí está a origem da unificação. A partir de outra sensibilidade, associamos os Reis Católicos não só à unificação política das duas coroas, mas à expansão na América, à conquista, ao sofrimento que supôs e à limpeza étnica e religiosa dentro da Espanha. Não seriam meus personagens para colocar no Congresso.
A guerra entre coletivos começa no IV milênio a.C.?
Sim, o que entendemos por guerra só surge no caso da Europa e é nesse momento que começamos a ver elementos característicos da guerra em oposição a outros tipos de violência coletiva. Guerreiros, por exemplo, que dedicam parte de sua vida ou todo o seu tempo à função militar, com uma série de normas que regem a condução da guerra, espaços para a guerra, santuários, rituais, em momentos posteriores podem ser quartéis, casernas, armas de guerra... É o elemento definidor para mim. No Oriente Próximo, talvez, sim, tivéssemos que voltar mais, talvez ao sexto milênio a.C.
Existe alguma peculiaridade na Península Ibérica? E na região do País Basco?
Uma das coisas mais interessantes da Península Ibérica é o surgimento das primeiras fortificações conhecidas na Europa ocidental, povoados com muralhas, no sul da Espanha, anteriores aos ibéricos, fortalezas realmente espetaculares, com oficinas de fabricação de pontas de flecha.
Não existem dados eloquentes sobre o País Basco até a Idade do Ferro, século IX a.C. É uma paisagem fragmentada, com muitas fortificações, onde teríamos comunidades autônomas, independentes umas das outras, pequenos povoados. Há uma frase de um historiador, que gosto muito, que diz que as montanhas rejeitam a grande história e é um pouco o que acontece com o País Basco. As montanhas sempre sufocaram impérios.
No País Basco, perto de Laguardia (Araba), encontra-se San Juan Ante Portam Latinam, um interessante sítio, de 3.000 anos a.C. Lá foi encontrado um sepulcro coletivo, pensou-se que tinha sido um grande massacre, que tinham arrasado uma população inteira, mas não, era um lugar onde haviam enterrado as pessoas, não era uma batalha, nem um grande massacre, mas uma espécie de cemitério, com todos enterrados juntos. Levando em consideração onde estavam, seriam protobascos.
A prática violenta mais selvagem de um grupo contra outro, que ecoa em minha cabeça, talvez seja Auschwitz-Birkenau. Pela sua experiência, qual é a que mais o assombrou por seu sadismo, por sua engenharia do mal?
A verdade é que, no final das contas, entre todos os massacres, uns são muito parecidos com outros. Qualquer massacre em que tenham matado mulheres, idosos e crianças é horrível e temos isso ao longo de um período muito longo, em muitos lugares diferentes. Contudo, jamais algo se aproxima do Holocausto. Estive na Polônia, há pouco, e depois de ter escavado valas... isso é indescritível. Nunca se termina de entender o horror, é algo que rompe todos os esquemas. O Holocausto rompeu com a história, marcou um antes e um depois.
Quantitativamente, pode-se dizer que a invasão dos mongóis matou mais pessoas, mas ir a um hospital psiquiátrico e matar a tiros 1.800 pessoas, e matar crianças com injeções porque eram deficientes... é difícil encontrar algo parecido aos nazistas. Muitas vezes, fala-se do stalinismo, que foi horroroso, claro, e causou um sofrimento inimaginável, mas a violência stalinista se enquadra na violência em massa que vimos em outra época, a dos mongóis. É mais compreensível em perspectiva histórica. A dos nazistas desafia a capacidade de compreensão.
Li que para você a arqueologia é um exercício de compaixão. Diga-me o porquê.
Quando se está escavando uma vala comum ou os restos de um povoado destruído, você toca nos restos de outra vida, é muito difícil não estabelecer um vínculo com as pessoas que desapareceram há muito tempo e que permanecem presentes por meio desses objetos. Nós nos vinculamos a elas. Nós trabalhamos diretamente com a história que pode ser tocada e é impossível não sentir essa emoção.
Para terminar, qual é o seu próximo livro?
O que gostaria de escrever, e não sei se será o próximo, é contar o franquismo do ponto de vista arqueológico. Existem campos de concentração, bases guerrilheiras, barracos, moradias sociais..., mas vou dar um respiro aos leitores por enquanto [sorri].
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“Essas ideias de pureza de sangue e homogeneidade étnica são o germe do genocídio”. Entrevista com Alfredo González-Ruibal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU