30 Setembro 2023
"Se forem removidas as pedras angulares do cristianismo, como a encarnação, a revelação e a ressurreição, nada resta daquele caminho e outro se abre", escreve Paolo Cugini, padre italiano, professor de filosofia e teologia da Faculdade Católica da Amazônia, em artigo publicado por Viandanti, 28-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Que tipo de cristianismo o pós-teísmo nos entrega? Na sua versão mais radical, como a de Spong, Lenaers e Vigil, não estamos mais diante do cristianismo, mas de outra perspectiva espiritual. Se forem removidas as pedras angulares do cristianismo, como a encarnação, a revelação e a ressurreição, nada resta daquele caminho e outro se abre.
Que Jesus nos entrega o pós-teísmo? Definitivamente não é aquele em que nós cremos, mas um personagem que pouco tem a ver com os Evangelhos e com a reflexão da primeira comunidade cristã. O pós-teísmo está relendo os conteúdos do cristianismo considerando-os interpretações teístas e, dessa forma, se sente autorizado a reescrever a história, a reinventá-la. É impressionante a leviandade dessa operação historiográfica. Não há nenhum tipo de diálogo com a tradição cristã, apenas julgamentos impiedosos e posições apodíticas. Se é verdade que as reflexões dos Padres da Igreja e dos primeiros concílios ecumênicos, que chegaram às primeiras formulações dos conteúdos da novidade de Cristo, eram dominados pelo pensamento metafísico tanto do tipo platônico como neoplatônico, e que estamos hoje convencido de que podem ser narradas as novidades do Mistério manifestado por Jesus de maneiras diferentes e fazendo referências a diferentes matrizes conceituais, é igualmente verdade, em minha opinião, que nem todo o material produzido nessa primeira fase da história do cristianismo deveria ser jogado fora, como fazem Spong, Lenaers, Vigil e Arregi.
Repetir de uma maneira nova os conteúdos do Mistério manifestado por Jesus Cristo não pode significar fazer tabula rasa dos conteúdos elaborados em vinte séculos: parece-me uma operação intelectualmente excessiva e pouco pertinente à Realidade que se pretende conhecer. Bastaria usar as ferramentas que a hermenêutica bíblica e filosófica oferece para iniciar um sério trabalho heurístico sobre os conteúdos em questão. Muito belas e profundas são as páginas que os referidos autores, e também outros, oferecem para descrever novos caminhos de espiritualidade, o que manifesta uma atenção por certos aspectos nova em relação ao cosmos, à natureza considerada na perspectiva aberta pelas neurociências, da biologia e da física, que mostram a inter-relação de todos os elementos da realidade. Sempre nessa perspectiva espiritual, também a atenção ao gênero adquire significados novos e mais profundos.
No entanto, no tema da identidade do cristianismo, podemos dizer com segurança que a posição radical do pós-teísmo fecha uma página e abre outra e, eu acrescentaria, sem despertar grandes problemas para si. Percebe-se a sensação da pressa em fechar o que, em seu modo de ver e pensar, parece um triste capítulo na história das religiões. Sobre esse ponto específico eu discordo e tomo distância.
A operação de revisão histórica realizada por esses autores do pós-teísmo sobre as definições dogmáticas dos primeiros séculos do cristianismo é acrítica, superficial e cheia de preconceitos. A partir do ponto de vista da história do pensamento teológico, os dogmas não são formulações impostas por alguém, mas são o resultado de uma longa elaboração. Não por acaso no campo teológico fala-se de evolução do dogma.
Arrancar uma página significativa da história do cristianismo pelo simples fato de que o conteúdo não corresponde ao que hoje se entende do objeto em questão, é sem dúvida uma operação cultural desprovida de critérios. Bastaria recorrer à hermenêutica, à análise filológica, entre as outras possibilidades que a pesquisa heurística séria propõe. As reflexões claras e radicais, além de terem uma aparência de ditadura do pensamento único, não permitem aos fiéis da religião sob escrutínio acompanhar a evolução proposta, criando em vez disso confusão e perplexidade.
Devido à escassez de material documental disponível, a pesquisa histórica e antropológica só pode proceder por suposições quando analisa eventos que remontam a milhares de anos antes de Cristo. Essa análise histórica, altamente sugestiva do nascimento do teísmo, precisamente por esses motivos, dá margem a numerosas críticas. A mais importante é quanto ao nível de contaminação tão profundo e extenso gerado pelo paradigma dualista, cuja veracidade de origem é toda a ser demonstrada e, na minha opinião, apresenta muitas dificuldades do ponto de vista histórico e epistemológico.
Com os escassos meios de comunicação presentes no período do calcolítico [termo que indica a pré-histórica idade do cobre], um nível tão radical de contaminação é muito improvável e extenso a ponto de chegar a estruturar um paradigma. Só para dar um exemplo. O estudioso da filosofia antiga Giovanni Reale [1] demonstrou que o primeiro contato e, portanto, a primeira verdadeira contaminação entre a cultura grega e a semítica ocorre apenas por volta do século III a.C., devido à presença de uma comunidade israelita instalada há algumas gerações em Alexandria do Egito. Se dois povos relativamente próximos como são o Egito e Israel chegam a se contaminar culturalmente apenas por volta do século III a.C. é pouco provável pensar numa contaminação cultural e, sobretudo, religiosa que teria atingido todos os povos então conhecidos. No campo epistemológico, seguir o entusiasmo por uma intuição que apareceu e que tem a aparência da veracidade, prega peças.
Além disso, a concepção dual da realidade, aquela que depois condicionou o pensamento ocidental, não deriva dos povos Kurgan, mas surge na Grécia no século V a.C., portanto muito mais tarde que o calcolítico, por obra de Platão. Sem tirar nada da veracidade do modelo dual dos povos Kurgan, do ponto de vista historiográfico, não é aquele tipo de dualismo que influenciará a cultura ocidental. Sem dúvida, a concepção astronômica que vê o céu e a terra contrapostos remonta a épocas anteriores. Em todo o caso, a concepção dual, que contribuiu para estruturar aquele paradigma cultural que marcou o Ocidente e a que se referem os autores do pós-teísmo, é de natureza filosófica.
Foi Platão, de fato, quem formulou a hipótese do mundo das ideias para tentar resolver o problema que o curto percurso filosófico que chegara até aos seus dias estava enfrentando, ou seja, a relação entre a realidade em movimento, conforme descrita por Heráclito, e a imutabilidade do ser de Parmênides.
É a partir desse tipo de dualismo que, segundo Reale, temos o início do pensamento metafísico, que estará em condições de elaborar o dualismo antropológico da alma e do corpo. Trazer de volta ordem à análise histórica proposta por pensadores pós-teístas é de fundamental importância, porque permite ver o problema do surgimento do teísmo de uma forma diferente e, assim, oferecer respostas diferentes. O dualismo de tipo astronômico que condicionará todo o pensamento ocidental, de fato não é aquele trazido pelas incursões dos povos Kurgan, mas aquele elaborado por Aristóteles, discípulo de Platão, que provavelmente nunca tinha ouvido falar das referidas invasões.
O último dado sobre o qual me parece importante provocar uma reflexão diz respeito à conclusão que os teólogos pós-teístas chegam a formular depois de terem eliminado o dualismo astronômico.
Ao remover o céu como morada de Theos, por que também deveria desaparecer a ideia de revelação?
Admitir que o Espírito do mundo, a Realidade, o Mistério – são alguns dos nomes que são utilizados para falar de Deus – é imanente, dentro da história, não significa que não possa trazer e manifestar conteúdos qualitativamente diferentes dos dados materiais. Esta minha perplexidade está relacionada também à constatação de que nenhum dos autores do pós-teísmo menciona a contribuição da fenomenologia da religião e pouco a hermenêutica filosófica.
Se podemos concordar que o pensamento pós-cristão e pós-teísta seja pós-metafísico, não por isso é necessário eliminar na análise da realidade a contribuição de algumas correntes filosóficas que se movem precisamente no plano da imanência. Bastaria folhar a última obra do pensador francês Jean Luc Marion [2] para perceber a enorme possibilidade de falar do Mistério de uma nova forma e com novas modalidades, que a fenomenologia da religião tem condições de propiciar.
A ideia de revelação, característica de toda religião, manifesta a ideia de que nem tudo da realidade pode ser descrito com expressões lógico-matemáticas e compreendido pela dimensão racional. Já Schelling dizia: “se a revelação contivesse unicamente o que está na razão, ela não teria nenhum interesse, seu interesse específico só pode realmente consistir na circunstância que ela contenha algo além da razão, que é mais do que a razão contém” [3]. Dizer que a revelação contém um “além” não significa ativar o céu ou a vida após a morte. A revelação, como indica o nome, joga com a fenomenicidade, que oferece, portanto, o ponto de vista privilegiado para descrevê-la e recebe-la. “Os fenômenos da revelação, afirma Marion, modificam as regras da fenomenicidade de acordo com suas necessidades particulares, uma contribuição contra qualquer reducionismo, mesmo aquele da fenomenologia” [4].
Em seu longo trabalho como fenomenólogo, Marion identificou um tipo de fenômeno que apresenta características que merecem toda a nossa atenção. Trata-se do fenômeno saturado, que permite reconduzir o eu de volta a si mesmo, contrariando a sua pretensão de reduzir tudo o que existe à própria intuição, pois “a saturação da intuição lembra a esta última a sua absoluta parcialidade em relação ao infinitude da doação” [5]. Esse tipo de fenômeno nos lembra, portanto, que nem tudo pode ser totalmente reconduzível ao eu, porque o eu percebe no fenômeno saturado a origem de outro lugar. Seria interessante seguir essa pista para confrontar essas análises com os resultados da física quântica, sobre a possibilidade do conhecimento de um mundo externo independente da consciência, como afirma o físico e matemático estadunidense Wolfgang Smith [6]. Nessa fase de transição é de fundamental importância manter aberto o diálogo e não o fechar com afirmações apodíticas. É respeitando os caminhos e as competências específicas que se torna possível construir um percurso capaz de oferecer respostas significativas às grandes questões que a passagem de época que estamos vivendo apresenta às nossas consciências.
[1] REALE, G. Storia della filosofia greca e romana. Milano: Bompiani, 2018.
[2] MARION, J. L. Da altrove, La rivelazione: contributo di una storia critica e a un concetto fenomenico di rivelazione. Roma: Inschibboleth, 2022.
[3] Citado em: MARION, J.L. Da altrove, La rivelazione, p. 82.
[4] Ivi, p. 95.
[5] Marion, J.L. Il visibile e il rivelato. Milano: Jaca Book, 2007, p. 62.
[6] WOLFGANG, S. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista. São Paulo: Vide, 2019.
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Em que tipo de cristianismo pensa o pós-teísmo? Artigo de Paolo Cugini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU