29 Agosto 2023
Um século depois da Proclamação da Emancipação dos Escravos assinada pelo Presidente Abraham Lincoln, 260 mil pessoas marcharam em Washington. No dia 28 de agosto de 1963, há sessenta anos, a marcha pelo trabalho e pela liberdade, justamente sob o Memorial Lincoln, gritou ao mundo o orgulho e a raiva dos afro-americanos, libertados, mas ainda escravos do ódio racial.
Martin Luther King proferiu um discurso imortal: disse que tinha um sonho, que seu sonho tinha raízes profundas no sonho americano, que naquele sonho, um dia, seus irmãos e irmãs teriam caminhado livres com os brancos. “La Lettura” conversou sobre isso com a ensaísta Lisa Page, chefe do Departamento de Escrita criativa da Universidade George Washington. A professora Page está trabalhando como editora numa série de escritos de King.
A entrevista com Lisa Page, chefe do Departamento de Escrita criativa da Universidade George Washington, é de Marco Bruna, publicada por La Lettura, 27-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que resta hoje do sonho de Martin Luther King?
King deixou um legado muito pesado. Basta pensar no movimento Black Lives Matter, ao qual há pouco se completou o décimo aniversário, nascido como continuação do movimento pelos direitos civis, para continuar a luta contra a desigualdade. King deu sua vida pela causa afro-americana. A esperança de que um dia a Proclamação de Emancipação se tornasse uma realidade nunca o abandonado. Seu discurso, naquele 28 de agosto de 1963, partia justamente da constatação de que pouco havia mudado para os negros estadunidenses, embora a escravidão tivesse sido abolida cem anos antes. King sabia que a batalha pela emancipação passava pelo direito de voto dos afro-americanos, combatia para que eles fossem registrados em suas cidades. Ainda hoje, em alguns estados do Sul, os afro-americanos têm dificuldade em fazer com que esse direito seja reconhecido. King falava do Mississippi como de um inferno, e ainda hoje está cheio de insídias: aqui a taxa de mortalidade das mulheres negras continua a subir.
Sem a Marcha em Washington, onde estariam os Estados Unidos na luta pelos direitos civis?
Em primeiro lugar, devemos considerar o poder do meio de comunicação televisivo. Estamos em 1963, os organizadores sabem que a marcha terá ampla cobertura, nacional e internacionalmente, pela mídia. Um detalhe que fará uma enorme diferença. Milhões de estadunidenses não sabiam quanta violência fosse escondida deles, não sabiam de que forma a discriminação pesava na vida de seus concidadãos. King era telegênico, um orador fantástico, conquistava as multidões. Ele lançou uma nova luz sobre os problemas do país.
Como surgiu a ideia da marcha?
Nasceu dentro do movimento pelos direitos civis, do qual King era o líder. Tem suas raízes na década de 1950, na sentença Brown v. Conselho de Educação de Topeka de 1954, que declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas estadunidenses.
O Presidente Kennedy, convencido da urgência de uma legislação que protegesse os afro-americanos, seria assassinado apenas três meses depois, em 22 de novembro. Ele ficou surpreso pelo sucesso daquela manifestação?
Tenho bastante certeza de que ficou surpreso. Jfk também era uma criatura televisiva, reconheceu a importância daquele dia pela influência sobre a opinião pública.
Lyndon Johnson assumiu a presidência após a morte de Kennedy. Ele assinou os Ato de Direitos Civis, a lei que derrubou a segregação, quase um ano depois da marcha, em 2 de julho de 1964, e após uma longa batalha no Senado.
Johnson era uma criatura política complicada e fascinante. Era um homem do Sul, foi muito corajoso na forma como abraçou a questão dos direitos civis. Aquela lei mudou o curso da história dos Estados Unidos.
Você está trabalhando em uma série de escritos de Martin Luther King.
A editora HarperCollins, que há décadas mantém uma relação de confiança com a família King, quer celebrar o aniversário da marcha com lançamentos importantes. Republicou alguns dos discursos mais famosos de Martin Luther King com introduções de escritores contemporâneos. I Have a Dream foi republicado com a introdução da poetisa Amanda Gorman, que ganhou fama após ler na posse de Joe Biden. O discurso Beyond Vietnam é acompanhado por um texto do romancista de origem vietnamita Viet Thanh Nguyen. O sentido é aproximar as instâncias dos anos 1960 às novas gerações.
Por que os Estados Unidos brancos têm medo da raiva dos negros?
Os Estados Unidos brancos são vítimas de sentimento de culpa. Tem a ver com a dificuldade de se reconciliar com a história. Donald Trump afirma que os protestos do Black Lives Matter são insurreições. Então, como deveríamos considerar o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021? Por que aquele não seria uma revolta? Talvez porque são os brancos que ficam com raiva.
Quem herdou o legado de King?
Muitos pensaram que Barack Obama teria tido condições de assumir o seu legado. Mas hoje trabalha para a Netflix. Espero que volte ao primeiro plano. Precisamos de líderes como ele. Não existe nenhum hoje.
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