29 Agosto 2023
“Viemos também para este lugar sagrado para lembrar aos Estados Unidos da clara urgência do agora. Não é hora de se dar ao luxo de procrastinar ou de tomar o remédio tranquilizante do gradualismo”. Estavam cheias de esperança e amor pelos EUA e pelo seu povo, as palavras que Martin Luther King pronunciou naquele 28 de agosto, há 60 anos, diante de uma multidão imensa reunida no Lincoln Memorial em Washington. Dezessete minutos ao todo, capazes de inaugurar uma nova era na história da questão racial no país. Nós perguntamos a Eric Foner, um dos mais importantes historiadores estadunidenses vivos, professor emérito da Columbia Universidade, para nos ajudar a compreender melhor o significado e as raízes do discurso de King 60 anos depois.
Entre os trabalhos recentes de Foner, ex-presidente da Organização de Historiadores Estadunidenses, estão os seguintes: Second Founding: How the Civil War and Reconstruction Remade the Constitution (Norton & Company, 2019) e The Fiery Trial: Abraham Lincoln and American Slavery (Norton & Company, 2010), vencedor dos prêmios Bancroft, do Pulitzer de História e Lincoln.
A entrevista é de Luca M. Possati, publicada por L’Osservatore Romano, 26-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Qual é o significado e a importância do discurso de King para a história estadunidense?
É certamente um dos discursos mais celebrados da história estadunidense e também é ensinado nas escolas e muitas vezes repetido várias vezes no Dia de Martin Luther King em janeiro e nos aniversários da marcha em Washington em agosto. Sempre fiquei impressionado com a maneira como King usa seu discurso para reunir negros e brancos e apelar aos valores fundamentais da sociedade e da história estadunidense. Começa lembrando a necessidade da emancipação dos negros e depois chega à Declaração de Independência e à Constituição, da qual utiliza amplamente linguagem e expressões. No final do discurso, King afirma “Eu tenho um sonho” e aponta como esse sonho esteja baseado no sonho americano, enquadrando assim a demanda por direitos por parte dos negros em uma imagem mais ampla da sociedade estadunidense. Ele tranquiliza os brancos de que o movimento de emancipação dos negros não pretende criar violência nem tirar algo dos brancos. A sua mensagem é que qualquer um na sociedade estadunidense se beneficiará se os negros obtiverem maior liberdade. Esse discurso é realmente o ponto alto, em meados dos anos 1960, do movimento dos direitos civis como movimento de massa inter-racial e não violento. Já havia tensões naquele momento, provocadas por muitos jovens que queriam assumir o controle do movimento, jovens inspirados pelo Black Power. A linguagem da cooperação e da garantia que King apresenta só dura até o seu assassinato em 1968. Portanto, considero que o discurso realmente seja uma imagem importante do movimento para a emancipação negra num momento crucial da história dos EUA.
Quais são as raízes da questão racial na história estadunidense?
É muito complexo. Existem inúmeras raízes. Certamente é preciso voltar à escravidão. Um paradoxo é que a retórica usada por King em seu discurso é a mesma que encontramos na Declaração de independência, mas na época da revolução a escravidão era a instituição econômica fundamental do nascente estado. A maioria dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, por exemplo, George Washington ou Thomas Jefferson, eram ricos proprietários de terras com muitos escravos. Talvez apenas John Adams e Thomas Paine não possuíssem escravos. No entanto, muitos dos pais fundadores dos Estados Unidos, embora falassem de igualdade e liberdade, eram proprietários de escravos.
Infelizmente, a escravatura era quase onipresente no passado; todas as sociedades caracterizadas por escravidão sempre tiveram muitas dificuldades em avançar para a elaboração de qualquer noção de igualdade. Isso é verdade não apenas para os Estados Unidos, mas também para outros países, como o Brasil ou Cuba. No caso dos Estados Unidos, esse processo exigiu uma enorme guerra com a morte de milhares de pessoas. No entanto, como disse King no seu discurso, mesmo que a escravidão tenha sido abolida, os negros não alcançaram a liberdade e a igualdade. Logo depois da guerra civil, os Estados Unidos enfrentaram um processo de integração denominado "Reconstruction" que pode realmente ser considerado uma experiência única em que os negros obtiveram o direito de voto e a Constituição foi reescrita para garantir maior igualdade. Contudo, a violência, em especial aquela da Ku Klux Klan, reverteu em parte a situação. O esforço para criar uma democracia inter-racial não teve realmente sucesso, e ainda estamos pagando o preço desse fracasso. Todos os grupos sociais conheceram formas de discriminação, mas discriminação não é o mesmo que escravidão. Poderíamos definir a escravidão dos negros nos Estados Unidos como uma forma de apartheid?
A escravidão nos Estados Unidos era uma ordem social, um sistema político e econômico baseado na exploração. Somente os negros experimentaram isso na história dos EUA. Claro, a escravidão também existia em outras nações. No entanto, devemos lembrar que nos Estados Unidos a escravidão era uma instituição muito grande e ramificada - deveríamos voltar à Roma antiga para encontre uma sociedade com um sistema de escravidão tão amplo! Superar tal sistema não foi fácil. Também por essa razão não podemos comparar a condição dos negros com aquela de outros grupos, como os latino-americanos ou os asiáticos. Estes grupos certamente sofreram formas de discriminação, mas não foram vítimas de um sistema abrangente como o da escravidão. Certamente podemos encontrar semelhanças com aquele que era o apartheid na África do Sul, mas eram coisas diferentes. Na África do Sul, os negros eram a esmagadora maioria da população. Deve-se dizer que provavelmente, justamente por causa desse fator demográfico, o sistema de controles sociais na África do Sul era mais rígido – os negros nem sequer eram considerados parte do Estado. Certamente poderíamos também citar outros exemplos e comparações. Em vez disso, é muito mais importante compreender a fundo cada situação como tal.
Qual é a situação hoje? As palavras de King ainda têm efeito?
Certamente as palavras de King têm e tiveram um impacto. Primeiro, elas criaram um suporte para a implementação da Lei dos Direitos Civis que estava em discussão no Congresso, onde havia uma forte oposição a ela. Certamente, o assassinato do Presidente Kennedy retardou a aprovação da lei. O presidente Johnson abordou a questão com mais empenho do que outros presidentes. Hoje a situação é complicada. Houve imensos progressos depois de 1963. A direito de voto dos negros foi restabelecido, embora tenha havido tentativas de eliminá-lo. Os afro-estadunidenses hoje estão integrados ao tecido social estadunidense: administram empresas, participam da vida política, têm cargos de responsabilidade. Por outro lado, ainda hoje a grande maioria dos negros vive na pobreza ou quase. Em termos de renda familiar, saúde familiar, expectativa de vida, educação, ainda existem diferenças significativas entre negros e brancos nos Estados Unidos.
Uma coisa interessante é notar que duas vezes em seu discurso King condena a brutalidade policial contra os negros: este ainda é um problema atual. Todos os dias vemos exemplos de abusos da polícia contra os negros. No entanto, não concordo com o que hoje é chamado de “afropessimismo”, segundo o qual pouco ou nada mudou para os negros desde 1963. Isso não é verdade. Existem problemas, o racismo ainda é um mal endêmico e devem ser levadas em consideração também as reações negativas às conquistas dos negros. Mas grandes progressos foram feitos.
Ainda existe diferença entre Sul e Norte?
A cultura política é muito diferente, e isso desde os tempos da guerra civil. O Sul é certamente muito mais conservador do que o Norte hoje, e não apenas em questões relacionadas com a emancipação dos negros. Veja também em nível de suporte social, ou seja, o número de pessoas que recebem assistência do estado. Bem, no Norte há muito mais pessoas que recebem assistência, a ideia do suporte estatal é muito mais aceita. No Sul é diferente porque existe muito mais a ideia de que o suporte estatal é algo reservado aos negros. Muitos brancos pensam que o Medicaid, o Medicare e os seguros sociais beneficiam mais os negros do que os brancos.
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“Aquele discurso marcou uma virada”. Entrevista com Eric Foner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU