29 Agosto 2023
“Eu tenho um sonho” sessenta anos depois. Martin Luther King, os Estados Unidos e a marcha para a emancipação e a igualdade.
A reportagem é de Gregório Alegi, publicada por L'Osservatore Romano, 26-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pressionar o governo para que acelerasse os direitos dos negros cem anos depois do presidente Abraham Lincoln proclamar a emancipação dos escravos. Essa era a ideia por trás da marcha de Martin Luther King em Washington, lembrada neste 28 de agosto principalmente pela frase “Eu tenho um sonho” do discurso que o pregador batista proferiu nos degraus do Lincoln Memorial para mais de 250.000 pessoas que haviam respondido ao seu apelo.
“Há cem anos, um grande estadunidense, sob cuja simbólica sombra nos encontramos, assinou a Proclamação da Emancipação”, começou King, relembrando o contexto histórico da proclamação.
“Esse decreto fundamental foi como um grande raio de luz de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de uma vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para pôr fim à longa noite de cativeiro. Mas cem anos mais tarde”, continuou ele, "o negro ainda não é livre. Cem anos mais, a vida dos negros está ainda infelizmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação".
O sonho não nascia por acaso. A vida de King coincidia com uma das épocas mais difíceis e contraditórias da história dos Estados Unidos: anos em que coexistiam abismos de discriminação e rompantes ideais. Basta pensar que em 1929, quando King nasceu em Atlanta, Geórgia, numa família com tradição de pregação, as divisões da Guerra Civil ainda estavam muito vivas.
Na verdade, a Carolina do Norte ainda pagava uma pensão confederada a Alfred Blackburn, 87 anos, que como escravo havia acompanhado seu dono nos campos de batalha. Os estados do Sul, como a Geórgia, haviam erguido barreiras jurídicas – as “leis Jim Crow” – que negavam os direitos reconhecidos pelas 13ª (proibição constitucional de escravidão), 14ª (cidadania federal) e 15ª (direito de voto) emendas da Constituição. Uma estratégia avalizada em 1896 pelo Tribunal Supremo com a hipócrita sentença Plessy v. Ferguson, segundo a qual essa separação não era em si ilegal desde que a todos fosse garantido o acesso a serviços de igual qualidade. A aplicação concreta foi muito mais simples. Foram proibidos casamentos e relações inter-raciais, foi permitido não aceitar inquilinos negros e assim por diante. Toda estrutura para os negros era desconfortável, de segunda classe e subfinanciada.
King vinha da elite negra, com pais formados, algo na época muito raro mesmo entre os brancos. O pai dele era pastor de uma das igrejas batistas mais prestigiadas de Atlanta, a Ebenezer. Apesar disso, desde criança, King havia sofrido pela segregação. Em 1944 o garoto foi admitido de antemão no Morehouse College graças a um programa de guerra para acelerar a preparação dos mais jovens mais promissores. Sobre a sua formação foi muito marcante uma viagem a Connecticut, onde descobriu níveis de pacífica convivência e colaboração entre negros e brancos desconhecidos na Geórgia. No Morehouse o jovem King também descobriu Gandhi e a não violência.
Em 1948, ano em que o presidente Truman desagregou as forças armadas e o Partido Democrata sofreu a divisão dos Dixiecrats contrários aos direitos civis, King se matriculou no Seminário Teológico Crozer, graduando-se com louvor em 1951. Depois se inscreveu na Universidade de Boston para estudar teologia sistemática. Enquanto estava lá, o presidente Eisenhower nomeou Earl Warren para chefiar a Suprema Corte, que nos 15 anos seguintes ampliou enormemente democracia e direitos, a começar pelo histórico fim da segregação das escolas (Brown v Board of Education, 1954). Paralelamente, King tornou-se pastor da Igreja Batista da Dexter Avenue em Montgomery, Alabama, o estado mais racista do Sul, onde a pobreza econômica e a pobreza cultural oprimiam minorias ainda mais pobres. Em 02-08-1954, King começou com um discurso no qual disse, entre outras coisas, que “não tenho nenhuma pretensão de ser um grande pregador ou mesmo um profundo estudioso. Eu certamente não pretendo ser infalível - isso está reservado para a sumidade do divino e não para a profundidade do humano". Em Montgomery concluiu sua tese de doutorado com uma pressa evidente pela falta de citações, tanto é verdade que hoje é aceito que várias passagens tenham sido efetivamente copiadas. Quando, em junho de 1955, foi proclamado doutor, já estava em plena atividade política. Combinando política e religião, King pediu aos paroquianos para se inscrever na National Association for the Advancement of Colored People (Naacp), a histórica organização de negros fundada em 1909 por W.E.B Dubois em oposição ao gradualismo reformista de Booker T. Washington, que em 1895 havia dito que "em todas as coisas puramente social podemos estar separados como dedos, mas, em todas as coisas essenciais para o progresso mútuo, unidos como a mão".
Foi no porão da Dexter que em 02-12-1955 ocorreu a reunião que levou ao boicote do transporte público de Montgomery, em resposta à prisão de Rosa Parks que havia se recusado a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco. Três dias depois, assumiu a presidência da nova Montgomery Improvement Association (MIA). Começou um cabo de guerra que viu 89 líderes negros acusados de violar a lei antiboicote; o único processado e condenado foi King.
Em 5 de junho, um tribunal federal declarou inconstitucional a segregação nos ônibus, sentença confirmada pela Suprema Corte em 13 de novembro e novamente em 17-12-1956 ao recusar os últimos recursos do Alabama. Haviam se passado 378 dias desde o início do boicote, que a MIA declarou concluído em 20 de dezembro.
Com apenas 27 anos, King era uma figura nacional.
Naquele tórrido dia de 28-08-1963, King falou de história por mais ou menos um minuto. O aniversário era apenas o trampolim para falar da batalha pelos direitos civis. Nos 15 minutos seguintes, ele cinzelou uma obra-prima da oratória: concreta sem ser banal, firme sem ser raivosa, culta sem ser condescendente, política sem ser partidária, espiritual sem ser confessional.
A igualdade, explicou, consistia em reconhecer a todos, negros e brancos, os direitos inalienáveis sancionados no Declaração de Independência de 1776 e na Constituição de 1787. “Em certo sentido, viemos à capital para descontar um cheque”, anunciou King numa metáfora clara para todos. “Um cheque inválido devolvido por saldo insuficiente”, acrescentou. “Porém recusamo-nos a acreditar que o banco da justiça abriu falência. Agora é a hora”, disse ele, lançando outro possível título do discurso, “de sair do vale escuro e desolado da segregação para o caminho iluminado da justiça racial. Agora é hora de retirar a nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de transformar a justiça em realidade para todos os filhos de Deus”.
Um objetivo a ser alcançado sem rejeitar o mundo branco, “pois muitos dos irmãos brancos, como se vê pela presença deles aqui, hoje, estão conscientes de que seus destinos estão ligados ao nosso destino. E estão conscientes de que sua liberdade está intrinsicamente ligada à nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos”, afirmou, entregando mais um excelente título fadado ao esquecimento.
Após dez minutos de análise, nos quais denunciou como os negros no Mississippi não podiam votar e em Nova York não sabiam em quem votar, King mudou novamente de registro, passando da denúncia para a esperança. “Vocês são veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé de que um sofrimento injusto é redentor”, trazendo à tona mais do que em qualquer outra passagem a união entre religião e política. “Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Luisiana, voltem para as favelas e guetos das nossas modernas cidades, sabendo que, de alguma forma, essa situação pode e será alterada. Não nos embrenhemos no vale do desespero".
Após dois terços do discurso, King finalmente chegou ao sonho: pessoal (I have), não novo (still), mas sobretudo inserido naquele americano (deeply rooted in the American dream) conhecido e aceito pela sociedade branca. Um sonho ideal: “que um dia essa nação levantar-se-á e viverá o verdadeiro significado da sua crença: ‘Consideramos essas verdades como autoevidentes que todos os homens são criados iguais’”. Mas também um sonho pessoal: “que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter". E, ainda, uma lista poética e concreta de sonhos de mudança para estados racistas de Alabama, Mississippi e Geórgia ("Eu tenho um sonho que um dia, nas montanhas rubras da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes de donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade").
Era o momento de concluir: "E quando isso acontecer, quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada vila e cada lugar, de cada estado e cada cidade, seremos capazes de fazer chegar mais rápido o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção espiritual negra: Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo Poderoso, somos livres, finalmente".
É difícil dizer o quanto I have a dream tenha pesado para a atribuição do Prêmio Nobel da Paz a King em 1964. Certamente nem o discurso nem o prêmio foram suficientes para mudar a situação. Continuando os esforços para o voto dos negros, King organizou em 07-03-1965 uma marcha de protesto de mais de 85 quilômetros de Selma, onde votavam menos de 2% dos negros, até Montgomery. Depois de poucas centenas de metros, assim que cruzaram a ponte Pettus, a polícia ordenou que o grupo se dispersasse. Diante da recusa seguiu-se uma ação de contenção, com dezenas de presos e feridos. A cena, veiculada pelos noticiários, gerou dezenas de marchas de solidariedade e pressionou o titubeante Johnson a acelerar a Lei dos Direitos de Voto, cujo texto apresentou ao Congresso em 17 de março.
Para os registros, o sonho terminou em Memphis, em 04-04-1968, quando James Earl Ray matou King com um tiro de fuzil. Era o último ato da oposição muscular que cresceu lado a lado com o sucesso.
O que resta em termos políticos? Na linguagem comum, “sonho” é sinônimo de “efêmero” (“Sonhos morrem ao alvorecer") ou o contrário de "realidade" ("Foi lindo, um sonho. Mas depois existe a realidade"). No caso de King, o balanço é difícil. O Centro King para Mudança Social Não Violenta passou da ação política à memória. Os filhos entraram em confrontos legais pelo uso da imagem do pai e venda de seus itens pessoais, incluindo a Bíblia e o Nobel. Com a morte de John Lewis (1940-2020) se esgotou a geração de ativistas negros que cresceu com ele e ao seu redor. Por outro lado, em 2013 o quinquagésimo aniversário do discurso foi celebrado por Barack Obama, o primeiro presidente negro, e em 2021 o papel de Raphael Warnock como sucessor de King na Ebenezer desempenhou um grande papel ao torná-lo o primeiro negro eleito para o Senado dos EUA por um antigo estado confederado.
É provável que King tivesse contestado esse balanço. Chamado hoje para avaliar o seu discurso, teria preferido denunciar as novas formas da discriminação, desde os diferentes níveis de encarceramento entre brancos e negros até o gerrymandering para diluir o voto negro nos estados com forte maioria republicana, até o assassinato de George Floyd e as acusações de preconceito racial lançadas por Trump contra a promotora negra que o indiciou na Geórgia. Parece quase ouvi-lo. “Sessenta anos atrás, nesta esplanada, partilhávamos um mesmo sonho de fraternidade: o mesmo que infelizmente ainda hoje sonhamos. Infelizmente não porque fosse errado, mas porque muitos filhos de Deus ainda sofrem do mesmo preconceito e porque abrindo os olhos ainda não posso vê-lo realizado”.
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A incompletude de um grande sonho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU