16 Agosto 2023
"Se Jesus não foi morto pelos hebreus (ou judeus), então a ressurreição do Jesus judeu hoje deveria ser mais fácil do lado cristão, onde reconhecer uma forte conexão do cristianismo com o judaísmo, por meio do Jesus judeu, deveria ser mais simples. E do lado judeu? A não ressurreição do Jesus judeu foi desde o início ligada à ressurreição do Jesus cristão: será sempre assim? O Jesus que pode ressurgir hoje será o Jesus não ressuscitado, ou seja, o Jesus do ensinamento até à sua morte, inclusive a cruz?", escreve Luigino Bruni, economista italiano e professor do Departamento de Jurisprudência, Economia, Política e Línguas Modernas da Universidade Lumsa, de Roma, em artigo publicado por Avvenire, 13-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Retorna às livrarias um ensaio de 25 anos atrás em que a estudiosa se pergunta por que o judaísmo do Nazareno foi tão eclipsado tanto entre cristãos quanto israelitas. A filósofa húngara, judia e estudiosa de Marx, Agnes Heller, mas no exílio até 1989, havia tratado em alguns ensaios das raízes judaicas e da questão da morte de Cristo, que tentou ler à luz das disputas com o primeiro cristianismo.
Poesia, arte, ciência, literatura seriam infinitamente mais pobres sem a contribuição essencial do mundo judaico. Ágnes Heller (1929-2019) é uma intelectual que continua sendo inacessível se não for levada muito a sério a sua cultura judaica e, portanto, a Bíblia. Filósofa húngara, está entre as pensadoras mais importantes da segunda metade do século XX. Sobrevivente de Auschwitz, trabalhou para uma refundação ética do pensamento moderno, primeiro na escola de Gyorgy Lukács em Budapeste e depois em exílio pelo mundo - na Estatal de Milão, ela proferiu em 24 de outubro de 2018 uma de suas últimas lectio magistralis.
Expulsa da universidade em 1959, sofreu oposição do regime comunista húngaro que mal tolerava a sua leitura livre e não ideológica do marxismo, do qual também reavaliou algumas instâncias humanísticas e éticas (a partir da raiz judaica de Marx), o que lhe custou um longo exílio, primeiro na Austrália e depois nos EUA, de 1977 a 1989. Ela criticou todas as formas de totalitarismo, incluindo o regime de Orbán com o qual foi muito severa até o final de sua vida. O estudo da Bíblia é parte integrante de seu pensamento ético.
A Heller filósofa é, de fato, inseparável da Ágnes judia, como também emerge de seus estudos sobre os profetas (Além da justiça, Civilização brasileira, 1998). Formou-se dentro do grande debate centro-europeu, sobre messianismo e sobre a escatologia ocidental (Taubes, Löwith, Rosenzweig, Benjamin e o próprio Lukács), onde o marxismo era investigado sob a perspectiva da finalidade e do fim da história. O messianismo, de fato, ocupa um lugar central também na filosofia de Heller. Em uma bela entrevista, explicava o significado de seu "messianismo da cadeira vazia", que provém diretamente da tradição judaica, em particular do rito do Seder de Pessach quando as famílias deixam uma cadeira vazia durante o jantar porque o profeta Elias poderia chegar (Malaquias 3,23) e anunciar a vinda do Messias: “Devemos deixar uma cadeira vazia na frente do Messias. Qualquer um que se sentar naquela cadeira, qualquer um que a ocupar, é um falso Messias.
Tivemos muitas lições sobre isso na história recente; várias vezes nos falaram que um novo Messias havia chegado, que o tempo da salvação havia chegado. Sempre se tratou de um falso Messias. Portanto, aquela cadeira deve permanecer vazia” (Àgnes Heller, Una vita per l’autonomia e la libertà, il Mulino, 1995). Mas, continua Heller, aquela cadeira não pode ser tirada, caso contrário, o “rito estará acabado”, o espírito abandonará a comunidade e “serão as banalidades que ocuparão a imaginação” – e estamos vendo isso cada vez melhor.
A cadeira deixada vazia e que deve assim deve permanecer é também uma chave para a leitura de Gesù, l’ebreo, aquela coletânea de ensaios publicados em húngaro em 2000 e agora republicados pela Castelvecchi. O texto começa com uma frase muito eficaz que nos introduz diretamente ao coração do tema: “O Jesus cristão ressuscitou no terceiro dia. Demorou dois mil anos para que o Jesus judeu também pudesse ressuscitar." Em que sentido o Jesus judeu acabou de ressuscitar e por que teria permanecido no sepulcro por quase dois mil anos? Na realidade, a derivação do cristianismo do judaísmo nunca foi negada pela Igreja, tanto é verdade que a tese de Marcião que queria eliminar do cânone cristão todo o Antigo Testamento para afirmar a total descontinuidade do cristianismo em relação ao judaísmo, já no século II havia sido considerada herética e a Igreja incluiu toda a Bíblia hebraica em suas sagradas escrituras – mostra, entre outras coisas, que não são suficientes para compreender Jesus os Evangelhos nem o Novo Testamento: é necessário a Bíblia inteira.
A tese de Heller não é uma investigação sobre o "marcionismo" mais ou menos presente no cristianismo (encontrar-se-ia bastante), mas uma reflexão sobre as razões que fizeram com que até tempos bem recentes (basta pensar, além das muitas obras citadas no ensaio de Heller, de Um judeu marginal de John P. Meier, APGIQ, 2008) a judaicidade de Jesus de Nazaré havia sido eclipsada tanto entre os cristãos quanto entre os judeus: “O cristianismo definiu a sua identidade em contraposição ao judaísmo, enquanto este último se comportava como se não tivesse sequer percebido o cristianismo como religião". As explicações cristãs desse longo eclipse, que continuou e cresceu muito além do Palestina do I século, são bem conhecidas e ligadas à longa e vergonhosa história do antissemitismo, do qual Heller tem testemunho direto. As razões judaicas para o eclipse também são interessantes.
O cristianismo nasceu como um cisma do hebraísmo (pelo menos do judaísmo) e como heresia hebraica. Para os judeus era teologicamente impossível que Jesus fosse "O Senhor", o Kyrios, porque na Septuaginta (a tradução grega da Bíblia hebraica) Kyrios era a tradução de Adonai, ou seja, o nome pronunciável que se usava em voz alta sempre que se encontrava o nome impronunciável de Deus (o tetragrama YHWH). A teologia de Paulo (e a práxis pastoral) tinham depois acentuado a diferença entre o novo trazido por Jesus e a Lei de Moisés. O "diálogo" se complicou ainda mais quando os primeiros concílios resolveram a questão de Jesus nos dogmas trinitários, onde a Jesus Cristo, o Filho, o Logos, é reconhecida a pessoa divina e a própria natureza de Pai e do Espírito.
Reconhecer a judaicidade de Jesus Cristo, portanto, não era uma operação fácil para os judeus, de ontem e de hoje. Seria, teoricamente, relativamente fácil para os judeus reconhecerem o dado histórico de um Jesus nascido "sob a Lei" e como tal judeu; mas “a história do Jesus judeu termina com a sua morte na cruz", enquanto o Jesus (Cristo) da fé "começa" com a ressurreição. De fato, Heller lembra que até o Gólgota o Jesus judeu não é muito diferente daquele cristão: “O Pai Nosso do cristianismo desempenha o mesmo papel do Shemá Israel do judaísmo...Todos, os ensinamentos de Jesus, os logoi e as parábolas, vêm de Jesus antes da Páscoa”. O problema começa no percurso que leva do Gólgota ao sepulcro vazio. Porque reconhecer Cristo como judeu (não só Jesus), ou seja, afirmar que Jesus continuou sendo realmente judeu mesmo depois da ressurreição e depois da teologia dos evangelhos e de Paulo, foi por quase dois milênios algo extremamente árduo para ambos os lados, e esse reconhecimento, em nível de religiões, não existiu.
Para tentar reabrir ou levar adiante o diálogo sobre o Jesus judeu, em seu pequeno livro (na verdade apenas nos três primeiros capítulos) Heller faz algumas operações precisas. Debruça-se especialmente na narrativa cristã da morte de Jesus, que a partir dos próprios evangelhos foi centrada no assassinato de Deus pelos judeus: o famigerado deicídio, que ela questiona e nega: “Dizer que os judeus mataram Jesus é tão desprovido de sentido quanto dizer que os húngaros mataram Imre Nagy". Heller, citando a literatura recente referente a isso, lembra que a morte de Jesus nasceu de um conflito com o templo (os sacerdotes e sua "indústria") do qual derivou a denúncia que se concluiu com uma crucificação decidida e deliberada por Pôncio Pilatos, portanto, pelos romanos. É de fato muito provável que todas as hesitações e as incertezas de Pilatos durante o processo a respeito da condenação à morte de Jesus que os Evangelhos relatam sejam material tardio e polêmico dos primeiros cristãos em conflito com o mundo judaico. Pilatos ordenou muitas, talvez centenas de crucificações durante seus anos na Palestina, e sabemos por fontes não bíblicas que ele era um governante impiedoso.
Falando mais especificamente, os Evangelhos não têm dúvidas em dizer que a morte do Batista foi imposta e realizada por Herodes, isto é, pelo rei judeu: se realmente tivessem sido só os judeus a querer a morte de Jesus, por que inserir Pilatos? Provavelmente, a evidência histórica sobre o papel decisivo (embora não exclusivo) dos romanos era tão evidente nos anos de 60-70 do I século que os evangelistas não podiam negar nem silenciar sobre ela, e então simplesmente a complicaram e atenuaram.
As divergências entre os evangelistas a respeito do julgamento do Sinédrio são um sinal do papel redacional desempenhado pelas “controvérsias entre a jovem comunidade cristã e o judaísmo, com a clara tendência de culpabilizar os judeus e inocentar os romanos” (G. Rossè, Il Vangelo di Luca, Citta Nuova, 1992, p. 935). Assim, Heller, citando Sheehan (The first coming...), afirma, com certa coragem exegética, que “não é verdade que a multidão judaica gritou ‘crucifique-o’, ou ‘que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos’. Essas frases são produtos da luta violenta entre o cristianismo primitivo e o judaísmo” (p. 39). Se então foram os romanos, em provável aliança com alguns judeus e sacerdotes, que mataram Jesus, boa parte do antissemitismo fundamentou-se durante dois mil anos num equívoco, num forte exagero narrativo de um conflito histórico entre os primeiros cristãos e os judeus (sobretudo em Jerusalém), conflito que, pela sacralização conferida a ele pelos Evangelhos, estendeu-se por toda a era cristã, até anteontem.
Se Jesus não foi morto pelos hebreus (ou judeus), então a ressurreição do Jesus judeu hoje deveria ser mais fácil do lado cristão, onde reconhecer uma forte conexão do cristianismo com o judaísmo, por meio do Jesus judeu, deveria ser mais simples. E do lado judeu? A não ressurreição do Jesus judeu foi desde o início ligada à ressurreição do Jesus cristão: será sempre assim? O Jesus que pode ressurgir hoje será o Jesus não ressuscitado, ou seja, o Jesus do ensinamento até à sua morte, inclusive a cruz? A esse respeito, é muito lindo o relato, trazido por Heller, de Chaim Potok, Meu nome é Asher Lev, onde se fala de um jovem (Asher Lev) com uma forte vocação para se tornar pintor (algo complicado numa religião que nega a imagem). Ele depois de ver a Pietà de Michelangelo em Roma começará a pintar apenas representações da Pietà, porque só nela consegue vislumbrar "a angústia do mundo inteiro". A essa altura, "ninguém mais em sua comunidade o entende" (p. 29). Em vez disso, o rabino abençoa Asher Lev.
E assim comenta Heller: “Ele vê o que será escondido por dois mil anos de perseguição e esquecimento: ele vê no crucificado o Jesus judeu”. Aqui repousa a esperança de Heller - e a nossa - de um novo tempo ecumênico entre judeus e cristãos, que deveria partir de um diálogo judaico-cristão não ideológico e menos excludente sobre o significado da ressurreição de Jesus e sobre o messianismo judaico e cristão. A leitura cristã de Jesus como o Messias não deve extinguir a espera de seu retorno prometido e, portanto, a possibilidade de reencontrar-se como povos da espera por um retorno-chegada, crentes na esperança de um não-ainda.
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Heller: profetisa do “Jesus judeu”. Artigo de Luigino Bruni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU