28 Mai 2019
É possível que um herege tenha sido decisivo para que o cristianismo assumisse a forma com que o conhecemos ainda hoje? No caso de Marcião, pode-se dizer sim, mesmo que os eventos que o viram como protagonista em meados do Segundo século depois de Cristo sejam extremamente difíceis de construir. De fato, dispomos apenas das notícias relatadas por seus adversários, ou seja, aqueles autores cristãos que por mais de duzentos anos polemizaram contra ele. Entre outras coisas, apenas um punhado desses escritos chegou até nós, enquanto de muitas outras obras do gênero sobraram apenas títulos ou fragmentos dispersos, sinal de que a ação e a teologia de Marcião deviam ter desencadeado uma intensa batalha intelectual, destinada a ser resolvida com a vitória dos "ortodoxos" só depois de muito tempo (e depois de muita tinta). Os eventos decisivos da biografia de Marcião ocorreram ao longo de poucos anos em Roma, onde chegou por volta de 140 d.C. vindo de Ponto, a região da atual Turquia, na costa do Mar Negro.
O comentário é de Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, publicado por Corriere della Sera, 26-05-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Foi um armador marítimo de sucesso, com ganhos substanciais: seus primeiros contatos com a comunidade cristã de Roma foram marcados por uma enorme doação, segundo alguns de seus detratores igual ao valor astronômico de 200 mil sestércios. Seus adversários sempre insinuaram que Marcião queria comprar sua eleição como bispo da Igreja Romana; seja como for, em 144 consumou-se o rompimento definitivo com os cristãos da capital, que o expulsaram da comunidade, depois de restituir-lhe o dinheiro - supondo que a notícia seja verdadeira. Marcião fundou sua própria Igreja, que permaneceu ativa por alguns séculos, até que a política eclesiástica de Constantino determinou seu desaparecimento.
Mas quais foram as posições de Marcião a ponto de causar uma crise tão profunda no cristianismo primitivo? Simplificando ao máximo, podemos dizer que ele apoiava uma radical diferença entre o Deus anunciado por Jesus e o Deus venerado pelos judeus, descrito no Antigo Testamento: o primeiro Pai bom e misericordioso, que age para salvar a humanidade, o segundo Juiz severo e implacável, que impôs a Moisés uma série de normas - da circuncisão às prescrições alimentares - impossíveis de serem observadas em sua totalidade, de modo que aos seus olhos a condenação da humanidade era inevitável.
Uma concepção semelhante resultava inaceitável para a maioria dos cristãos do Segundo século, profundamente comprometidos em mostrar como as profecias contidas no Antigo Testamento tivessem se cumprido com a vinda do Filho de Deus, Jesus. Além disso, apagando - por assim dizer - a Bíblia Hebraica, e em especial o livro do Gênesis, os cristãos teriam permanecido desprovidos de indicações sobre a origem do mundo, a condição humana e a própria figura de Deus, que para Marcião era totalmente "outro" e alheio à criação e à história, pelo menos até o aparecimento de Jesus. Este último ponto é muito problemático no mundo grego e romano, que considerava a antiguidade de uma doutrina ou de uma religião um sinal de autenticidade.
Para elaborar suas posições, Marcião baseava-se sobretudo nas cartas de Paulo, que durante o Segundo século haviam sido coletadas em várias coleções: aquela de Marcião, que ele chamou de Apostólico, incluía dez, correspondentes ao atual epistolário paulino com a exclusão das duais endereçadas a Timóteo e daquela para Tito (as chamadas cartas pastorais, consideradas pela maioria dos estudiosos modernos como não-autênticas). De Paulo derivava a oposição entre a fé em Jesus e as obras da Lei mosaica. Ao epistolário paulino acrescentava-se uma narrativa da vida de Jesus, que os autores antigos chamavam, polemicamente, Evangelho de Marcião.
Para seus adversários, ele teria manipulado o texto do Evangelho de Lucas, eliminando aquelas passagens que poderiam contradizer as suas doutrinas e adicionando outras que, em vez disso, as confirmavam. Marcião assim teria reivindicado possuir o Evangelho "originário", enquanto aqueles em circulação entre os cristãos teriam sido manipulados pelos judeus, para impedir a propagação da verdadeira mensagem de Jesus (e de Paulo) sobre o Deus "outro". É difícil dizer quem estava com a razão: por exemplo, para Marcião os sacerdotes diante de Pilatos sustentaram que Jesus não só incitava o povo a se tornar rei, mas também "abolia a lei e os profetas": acusação ausente nos outros Evangelhos, mas que, se verdadeira, confirmaria a imagem de Jesus delineada por Marcião.
A história determinou não apenas a derrota de Marcião e o desaparecimento de sua Igreja, mas também a convicção, por longo tempo, de que os fatos haviam realmente acontecido como alegado por seus adversários. A partir do século XVIII, por outro lado, os historiadores reconsideraram o quadro, chegando a conclusões opostas: em vez de alterar a obra, por assim dizer, "original" e já bem definida de Lucas, Marcião teria tido à sua disposição um dos numerosos relatos relativos a Jesus que circulavam em forma escrita na primeira metade do Segundo século e começavam então a ter o título de "evangelho". Tratava-se de realidades fluidas do ponto de vista textual, que sofriam modificações mais ou menos significativas, dependendo das circunstâncias, dos lugares e das pessoas. Em tal situação, as ideias de Marcião levaram outros grupos cristãos a dar forma definitiva a quatro desses Evangelhos considerados particularmente dignos de respeito, que se tornaram parte do que hoje chamamos de "Novo Testamento", em continuidade com o "Antigo" herdado dos judeus.
Os historiadores tentaram depois reconstruir, a partir das citações relatadas por seus adversários, a narrativa evangélica usada por Marcião. Parece similar (mas não igual!) a uma versão peculiar do Evangelho de Lucas transmitida por um código grego agora em Cambridge, que por sua vez diferente do texto lucano mais comum na antiguidade e que chegou até nós. Aquele de Marcião devia ser mais curto, com uma diferente sucessão dos episódios; entre outros, faltavam a história da infância de Jesus e da expulsão dos mercadores do Templo. Obviamente, toda reconstrução resulta hipotética e as diferenças com o Evangelho de Lucas são sutis, geralmente de poucas ou de uma única palavra. Por exemplo, na abertura do "Pai Nosso", o Evangelho de Marcião invoca a vinda do Espírito Santo, onde estamos acostumados a ler "santificado seja o vosso nome", ou seja, um convite direcionado aos homens para que deem a devida honra a Deus, segundo a tradição judaica.
Claudio Gianotto e Andrea Nicolotti, ao colocar os fragmentos diretamente atribuíveis a Marcião dentro do texto de Lucas do código de Cambridge, permitem agora ler uma possível reconstrução de todo o Evangelho de Marcião (Einaudi), que tanta influência teve sobre o cristianismo primitivo, embora tenha gerado consequências opostas àquelas esperadas por seu proponente.
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O Jesus de Marcião negava Moisés - Instituto Humanitas Unisinos - IHU