05 Agosto 2023
"Foram a ideologia e os planos extremistas dos nazistas, não a passividade dos judeus, que alimentaram o 'Endlösung'", escreve Marcello Pezzetti, historiador, diretor científico do Museu do Holocausto, professor da Universidade de Estudos sobre o Holocausto, situada junto ao Museu Yad Vashem de Jerusalém e porta-voz para a Itália da força tarefa internacional para a didática do Holocausto na Europa, em artigo publicado por La Reppublica, 02-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Alemanha nazista pensava que os judeus, pela única razão de terem nascido judeus, deveriam "desaparecer" da Europa, até 1941 por meio das expulsões para o Leste, depois com a aniquilação física.
Ora, como reagiram os judeus a essa tentativa de extermínio, definida como a “Solução final de problema judeu"? Houve uma resistência concreta à política homicida do Reich? A tese mais difundida continua sendo aquela da "passividade judaica", defendida por personalidades entre as mais relevantes – também do lado judaico – da cultura e da historiografia do pós-guerra. Hannah Arendt definiu a resistência judaica como "lamentavelmente limitada, incrivelmente fraca e totalmente inócua" e Raul Hilberg escreveu que os judeus teriam oposto "palavras aos fuzis, dialética à força". Essa atitude, segundo o grande historiador, estaria baseada na experiência de dois mil anos, consistindo na tentativa de evitar a destruição fechando acordos com o inimigo, estratégia que tinha funcionado por séculos. Isso, entretanto, teria tornado os judeus "incapazes de efetuar uma mudança".
Ora, não há dúvida de que a reação judaica à política nazista foi caracterizada por uma reação inicial de incompreensão da segunda fase dessa política, a da aniquilação física. Acreditava-se fosse suficiente utilizar os mecanismos usados há séculos como "anticorpos" diante do ataque de uma doença normal, sem perceber que aquela doença era estruturalmente diferente de todas as outras, porque não atacava apenas uma parte do organismo, mas suas defesas imunológicas.
Até meados de 1942, os judeus colocaram em prática um tipo particular de resistência: aquela "civil", que alguns definiram como "espiritual", mas que infelizmente por muitos anos foi chamada de "passiva". Especialmente na Europa Oriental, os responsáveis das instituições judaicas consideraram "armas de sobrevivência" a criação de instituições de assistência social, especialmente para a infância; a tentativa de manter vivas as instituições culturais rigorosamente proibidas; a educação dos jovens, inclusive religiosa, e a preparação de uma improvável emigração das crianças para a Palestina.
Eventualmente recorreu-se ao contrabando para alimentar os elementos mais fracos, em alguns casos para a organização de fugas. A situação mudou radicalmente depois de alguns meses, quando ficou claro que o objetivo do regime nazista era o extermínio em massa do povo judeu.
Especialmente os jovens judeus da Europa Oriental passaram diretamente da opressão para a revolta, para a resistência armada, e foram os primeiros na Europa a implementá-la: em abril de 1942 assistimos à insurreição de todo um gueto, o de Lachwa, na Bielorrússia.
A revolta mais conhecida ocorreu no Gueto de Varsóvia, que resultou na morte de pelo menos 300 soldados alemães, mas houve outras, pelo menos quatorze, todas ocorridas em pouco mais de um ano e terminadas com a morte heroica da maioria dos revoltosos.
Mas o que se poderia esperar da "resistência judaica", composta principalmente por jovens desesperados que, sem qualquer preparação militar, estavam se opondo ao exército mais poderoso do mundo com armas totalmente inadequadas, desprovidos de um papel no âmbito da resistência "clássica", abandonados pelo chamado mundo civil, indiferente, quando não hostil? Bem, essas pessoas destinadas a desaparecer, conseguiram, em 1943, realizar uma façanha considerada impossível: desencadear uma revolta nos dois campos de extermínio nazistas mais mortíferos: Treblinka e Sobibor. Esses lugares faziam parte, com um terceiro, Belzec, de um terrível projeto chamado "Aktion Reinhardt", ativado no território da Polônia ocupada para eliminar toda a população judaica, deixando momentaneamente vivos apenas poucos trabalhadores indispensáveis.
Os perseguidores, alemães pertencentes às camadas sociais mais baixas, mas especialistas em extermínio com gás, porque oriundos da "Aktion T4", ou seja, o assassinato dos chamados "desabilitados", foram ajudados por centenas de guardas (ex-prisioneiros de guerra soviéticos, cerca de 100-120 por campo), especificamente treinados, chamados “Trawniki-Männer”. A estrutura desses campos era semelhante: eram equipados com uma chamada rampa para o "descarregamento" das vítimas (os trilhos entravam dentro do campo); de um espaço para a retirada dos pertences e para os vestiários; de uma área onde ficavam as câmaras de gás, ligadas a uma sala equipada com motor de caminhão ou tanque, e de um amplo espaço em que gradativamente eram cavadas as fossas para enterrar, usadas em um período sucessivo para a cremação dos corpos a céu aberto. Essa área era acessada por uma passagem obrigatória para a morte, chamada Schlauch, "tubo", cercado por arame farpado camuflado com vegetação. Os cadáveres inicialmente foram enterrados, mas em 1943 foram desenterrados e queimados.
Embora esses campos fossem lugares onde exclusivamente ocorria a eliminação dos que ali eram deportados, grupos de vítimas eram mantidos vivos momentaneamente para fazer o trabalho mais "sujo" da máquina de extermínio: recolher e arrumar as malas e os objetos que chegavam com cada transporte, ajudar as pessoas a se despir, cortar os cabelos das mulheres, extrair os cadáveres de câmaras de gás, limpar esses locais onde ocorria a morte, extrair os dentes de ouro dos cadáveres, carregar os corpos para as fossas com macas, estratificar os cadáveres no fundo das fossas e cobri-los com um pouco de areia e cal de cloro para desinfetá-los; proceder, em 1943, à cremação à céu aberto dos cadáveres, peneirar tudo e triturar os pequenos ossos restantes até virar cinzas.
Inicialmente os judeus, para evitar represálias, pensaram em reagir apenas com ações individuais como as fugas; depois, em 1943, graças às notícias sobre as revoltas em curso que chegavam dos guetos, esses "trabalhadores temporários" se organizaram e na primavera começaram a planejar insurreições.
Dentro dos campos da morte, porém, os prisioneiros das zonas onde se encontravam as instalações de extermínio estavam bem isolados dos demais; em Treblinka apenas uma pessoa tinha a função de manter os contatos com as duas partes do campo: era Jankiel Wiernik, um carpinteiro.
A revolta deveria ser realizada logo na primavera, porém foi adiada devido à eclosão de uma epidemia de febre tifoide. Pequenos comitês foram formados por medo de traidores, mas a maioria dos prisioneiros não sabia o que estava acontecendo. Alguns tinham acesso a instrumentos que pretendiam utilizar, como facas ou facões, e um serralheiro copiou a chave do armazém de armas. Os jovens que cuidavam da limpeza nas áreas dos guardas conseguiram roubar outras pequenas ferramentas, bem como algumas granadas de mão e um prisioneiro colocou em todos os telhados uma substância inflamável. A data foi marcada, 2 de agosto, e o plano foi decidido: a fuga em massa durante a chamada geral e, ao mesmo tempo, a incursão nos escritórios administrativos e nos pavilhões dos colaboracionistas para matar os guardas.
A revolta, porém, começou antes do previsto, porque um alemão (Küttner) surpreendeu um prisioneiro com objetos de valor e decidiu fuzilá-lo. O fato gerou grande confusão, então decidiu-se dar imediatamente início à revolta com um tiro de pistola como sinal. Cerca de 100 prisioneiros, por fraqueza, por terror ou por não terem sido informados, permaneceram no campo, enquanto os outros tentaram fugir. Muitos, no entanto, foram baleados com fuzis das torres de vigia.
Apenas cerca de 100 deles, homens e mulheres, conseguiram ultrapassar o alcance dos fuzis.
Ao contrário do que haviam planejado, não conseguiram matar um único guarda alemão, mas apenas dois "Trawniki" e alguns prisioneiros considerados delatores. Mesmo assim, colocam fogo em muitas construções de madeira (oficinas, posto de gasolina), mas ficaram intactas as câmaras de gás, construídas em alvenaria. É por isso que logo em seguida chegariam mais alguns transportes, de Biaystok.
Após o verão de 1943, os prisioneiros também se organizaram em um comitê de resistência em Sobibor.
Aqui, porém, ao contrário de Treblinka, eram impossíveis os contatos com o setor dotado das instalações de matança. Um imprevisto mudou a situação de forma determinante: os nazistas cometeram o erro de colocar no campo um grupo de prisioneiros de guerra judeus de um transporte vindo de Minsk. Entre estes estava Aleksander Pecherski, um oficial do Exército Vermelho, dotado da necessária experiência militar que se combinava com o conhecimento das estruturas locais de parte dos outros prisioneiros que estavam no campo há muitos meses. Em poucas semanas foi elaborado um plano concreto – estudado à perfeição, ao contrário de Treblinka – que previa a morte de um grande número de supervisores alemães e guardas "Trawniki" e a fuga do maior número possível de prisioneiros.
A revolta começou em 14-10-1943, quando algumas autoridades nazistas estavam de férias. Os combatentes judeus chamaram os supervisores nazistas, notoriamente gananciosos e pontuais, um após o outro, com vários pretextos (experimentar novos sapatos, novos casacos, controlar os móveis, etc.) e, sem que fosse percebido, conseguiram matar pelo menos nove, entre os quais o vice-comandante Niemann, bem como alguns guardas soviéticos. Depois, um nazista, Bauer, encontrou um dos cadáveres e deu o alarme. Assim a revolta aqui também estourou antes do planejado. A maioria dos 550 judeus que, segundo o sobrevivente Thomas Blatt, estavam presentes em Sobibor procurou escapar, mas 150 permaneceram no campo, sob tiroteio como em Treblinka; 80 foram mortos durante a revolta, atingidos por balas ou pela explosão de minas; muitos foram eliminados no curso das buscas subsequentes.
Para aqueles que conseguiram sair dos dois campos, o período após a fuga foi igualmente trágico: foram afixados cartazes por todo lado para informar a população da fuga dos "bandidos" judeus, e de imediato iniciaram-se as buscas na região à procura desses infelizes. O pessoal do campo recebeu reforços de outras unidades para a busca: a Polícia de Segurança (Sipo), a Gendarmaria, a Polícia Aduaneira, a Polícia Polonesa, e até os ferroviários.
Os prisioneiros que permaneceram no campo, assim como os trazidos de volta, foram quase todos mortos, mas muitos outros – pelo menos 100, só de Sobibor – foram eliminados barbaramente, por alemães, mas também por poloneses, durante o período em que se esconderam nos bosques ou nos centros habitados.
Apenas cerca de 50 resistentes de Treblinka e 50 de Sobibor sobreviveram à guerra. Entre eles, algumas mulheres e também os dois responsáveis pela revolta de Sobibor, Pechersky e Feldhändler. O segundo, infelizmente, foi morto em 02-04-1945 em Lublin por antissemitas poloneses da Armia Krajowa (Exército Nacional Polonês).
A resistência judaica ao nazismo e, especialmente, as heroicas revoltas dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor, assim como aquela do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau, não modificaram a atitude das autoridades nazistas em relação aos judeus, não trouxeram uma interrupção em sua política genocida, nem uma sua redução, mas tiveram um impacto considerável: de fato, trouxeram uma mudança marcante, ainda que tardia, na percepção que a sociedade europeia tinha dos judeus e, junto, que os próprios judeus tinham de si mesmos. Sem essas desesperadas revoltas, sem testemunhas, ainda que muito poucos, não poderiam ter ocorrido os processos e, consequentemente, não teríamos hoje o conhecimento que possuímos, em pormenores, daquela que foi a maior tragédia do século XX. Finalmente, deveria ficar claro que, como escreveu o historiador Israel Gutman, um combatente da resistência no Gueto de Varsóvia, foi a ideologia e os planos extremistas dos nazistas, não a passividade dos judeus, que alimentaram o "Endlösung".
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Assim, a revolta de Treblinka reescreveu a história. Artigo de Marcello Pezzetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU