Assim os pregadores na web alimentam o novo Apocalipse. Artigo de Luigi Manconi

Foto: Pixabay

02 Agosto 2023

"O milenarismo medieval acreditava em uma mudança radical na sociedade que se seguiria a verdadeiros cataclismos, capazes de subverter a ordem social e toda a arquitetura das relações político-militares, confessionais e institucionais em nível universal", escreve Luigi Manconi, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Itália, em artigo publicado por La Stampa, 01-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Num vilarejo na província de Módena, Ângelo, que se define como um “pastor da igreja acéfala”, responde a quem lhe pergunta qual é a sua profissão: pregador. E uma antologia de suas palavras, facilmente disponível na internet, pode representar um documento antropológico bastante significativo do nosso tempo.

Em outra época, no século XII, o monge Joaquim de Fiore elaborou uma concepção profético-apocalíptica do destino do cristianismo, que teria conhecido, graças à obra do Espírito Santo, uma nova regeneração, dando vida a uma página inédita da história humana. E hoje? Um novo milenarismo talvez esteja se desenvolvendo na Itália e na Europa? Isto é, uma mobilização coletiva de emoções e esperanças, de expectativas e utopias confiadas ao advento do Reino de Deus?

O milenarismo foi um grande movimento de pensamento que atravessou toda a Idade Média, encarnando-se em crenças difundidas e conflitos religiosos, em projetos de reforma social e de conversão espiritual. Nos nossos dias se reapresenta em formas emulativas muitas vezes bregas, às vezes grotescas e até ridículas. Não que não existam também manifestações de certa importância humana e devocional, mas o que parece prevalecer é um visionarismo desgrenhado, que se alimenta de todos os estereótipos da ficção política e eclesiológica. Então, como pode ser bem-sucedido?

O milenarismo medieval acreditava em uma mudança radical na sociedade que se seguiria a verdadeiros cataclismos, capazes de subverter a ordem social e toda a arquitetura das relações político-militares, confessionais e institucionais em nível universal. A análise que consiste na sucessão de eventos marcantes/mudanças profundas/instauração do Reino de Justiça anunciava-se e revelava-se através de sinais inequívocos. Bem, esses são sinais que hoje estão fazendo crer aos Novos Milenaristas que um novo tempo está sendo posto em movimento.

De fato, aconteceu que - como resultado de uma perfídia do destino e sutis coincidências e causas coadjuvantes - em menos de cinco anos as sociedades ocidentais conheceram fenômenos terríveis e temível, que lembram aqueles da "idade das trevas". Três eventos em particular: a Peste, a Guerra, o Cataclismo. A Peste assumiu o nome de SARS-CoV-2, a Guerra o da invasão russa da Ucrânia, o Cataclismo se manifesta através da sucessão de catástrofes naturais. E se trata de um igual número de traumas: a epidemia, como o conflito bélico, levanta uma questão crucial da vida e da morte, corrói os próprios alicerces da nossa segurança e da nossa incolumidade, atenta ao nosso futuro.

Para alguns, não poucos, isso significa, nem mais nem menos, que o Apocalipse é iminente, se é que já não está em andamento. E o Reino de Deus está próximo. Daqui  ocorre todo um proliferar de profetas, videntes, testemunhas, místicos, monges, eremitas, reveladores, cenobitas, pastores, pregadores. Entre eles, várias mulheres.

Todos vêm das profundezas das províncias italianas: de Buccinasco, Boretto, Ladispoli, Avellino… E exercem os mais diversos ofícios: empregado da ACI, criador, segurador.

Muitos encontraram uma maneira de ganhar a vida sem recorrer a um emprego fixo e a atividade de pregador preenche suas vidas. Eles falam um italiano elementar entremeado de termos dialetais e carregado de sotaques regionais. Todos eles têm um círculo mais ou menos grande de prosélitos. E eles têm discípulos, ajudantes, diáconos, cuidadoras. Sua atividade, digamos pastoral, e sua pregação, digamos religiosa, acontecem nas frequências das rádios privadas e ainda mais nas páginas dos canais sociais.

O espaço infinito da internet substituiu as praças diante das grandes catedrais medievais. Mas a internet é, por sua própria natureza, um lugar híbrido, onde há de tudo. Aqui, os sermões de tipo evangélico perdem imediatamente sua inocência residual e os traços da mais ingênua fé popular para se misturar com o mundo do paranormal, até a cartomancia, não desdenhando conviver com a já secular observação dos OVNIs.

E aí dispara o curto-circuito. A vidente de Ostuni fala do Espírito Santo, mas, na realidade, parece se referir a “um ser estranho, de cabeça muito grande e os olhos brilhantes”, que, após uma amável conversa, retoma a sua viagem sobre “um grande disco brilhante”.

Por outro lado, na internet, a Retórica da Mistura é tal que esse novo milenarismo se alimenta de todas as teorias da conspiração. O advento do Reino da Justiça é iminente, já que os “reptilianos” governam a Casa Branca, por meio de um deles, nem é preciso dizer, Joe Biden. E a convulsão radical da Igreja Católica é exigida pelo fato de que no Vaticano não há um Papa, mas um antipapa, Jorge Mario Bergoglio. Na verdade, não, ele também não está lá: Bergoglio foi morto e em seu lugar - "vamos lá, todo mundo sabe" - há um sósia.

Mas o sósia (melhor, uma sósia) já há tempo substituiu o atual primeiro-ministro na sede do governo italiano.

Como se vê, esse milenarismo do século XXI tem uma dimensão nitidamente caricata, mas consegue captar os sentimentos de centenas de milhares de pessoas. E é inevitavelmente trash. Enfim, é como se, hoje, não conseguíssemos levar a sério nem mesmo o Apocalipse.

Leia mais