05 Julho 2023
Por meio desta seleção de livros, podem ser encontradas possíveis explicações para a época que nos cabe viver e seus temas centrais, da inteligência artificial e a tecnocultura à neurologia e a sociologia.
As indicações de obras são de Jorge Carrión, escritor espanhol e crítico cultural, publicadas por Infobae, 30-06-2023. A tradução é do Cepat.
A recente publicação em espanhol de Atlas of AI, de Kate Crawford, um livro fundamental para compreender a dimensão física, geopolítica e profundamente humana da inteligência artificial, é um bom pretexto para pensar em uma bibliografia básica que explique parcialmente nossa época.
Para completar essa lista possível, selecionei livros de áreas-chave como neurologia, biologia, física quântica, sociologia cultural e das emoções, espécies companheiras, tecnocultura e filosofia da imagem e do Antropoceno, todos publicados nos últimos 23 anos, em seu idioma original.
Há muito tempo, não é mais possível uma visão de conjunto das ciências e das letras, uma cultura humanista e científica que esteja atualizada com os avanços em todos os campos. Contudo, na era dos papers, das publicações indexadas e da hiperespecialização, os ensaios – literários e de divulgação – continuam sendo um lugar de encontro e de discussão, transversal.
Após resenhar a novidade editorial, listo mais nove títulos, ordenados conforme o seu grau de complexidade, para auscultar o coração de nossa época. E as sinapses de seu cérebro.
Kate Crawford - Atlas de Inteligência Artificial: Poder, política y costos planetarios
A Nuvem, na realidade, não é nada gasosa, mas uma intrincada rede de cabos submarinos e terrestres, terminais, macrosservidores. E a inteligência artificial também requer uma enorme quantidade de materiais e recursos para existir, da água e o lítio à eletricidade e a mão de obra.
A pesquisadora norte-americana organiza seu ensaio na forma de um mapa-múndi conceitual, que se ergue do solo da mineração ao espaço sideral. Não há mais camada do planeta que não esteja condicionada pela tecnologia de última geração. Também não há elemento dela que não possua sua própria história.
Crawford conta, por exemplo, que dos principais conjuntos de dados e em sua origem, quase sempre acadêmica, muitas vezes, encontramos um gesto eticamente discutível. A questão central é: Como se faz a inteligência artificial e que armadilhas encontramos em seu processo? Na resposta, todas essas armadilhas são examinadas e colocadas no contexto da faceta mais sombria da história da taxonomia e a extração.
Alessandro Baricco - The Game
Nesta virada de século, não mudamos apenas de século, mas também de uma forma de nos relacionarmos com o mundo. O Google, as redes sociais e a inteligência artificial criaram o que o escritor italiano chama de The Game, um espaço de relações humanas condicionado pelos telefones celulares e o resto de telas que responde à lógica do videogame. E que, às vezes, confunde-se com toda a realidade.
Baricco reconstrói a gênese dessa transformação, desde que Space Invaders foi lançado em 1978, e analisa em uma linguagem simples como mudou nossa relação com a experiência, a verdade, a autoridade, o futuro e a narrativa. Se eu tivesse que escolher uma definição dentre todas as que estão sublinhadas no meu exemplar do livro, seria esta: "Storytelling é o nome que damos a qualquer desenho capaz de dar a um fato o perfil aerodinâmico necessário para colocá-lo em movimento”.
Frédéric Martel - Mainstream: A guerra global das mídias e das culturas
No foco desta reportagem ensaística está o projeto e a produção dos grandes sucessos da literatura, cinema, música e videojogos. Para isso, Martel viaja para Nova York, Hollywood e Bollywood, Cidade do México e Brasil, Londres e Japão, porque cada região gera seus próprios best-sellers e suas próprias mitologias pop. O objetivo é compreender “a geopolítica da cultura e das mídias”, a “nova cartografia dos intercâmbios culturais”.
Nas últimas décadas, foram publicados diversos livros que são ao mesmo tempo mapas-múndi, ou seja, combinam o ensaio com o trabalho de campo em diferentes continentes. Todos os do sociólogo francês seguem esse modus operandi, que dá origem a raras radiografias globais em nossas livrarias. Mainstream conversa com Smart, sobre as empresas de tecnologia e internet, e Global Gay, uma possível trilogia.
Stefano Mancuso - El futuro es vegetal
“As plantas conhecem desde tempos imemoriais quais são as melhores soluções para a maior parte dos problemas que afligem a espécie humana”, afirma o botânico italiano nas primeiras páginas deste ensaio sobre o design bioinspirado, que aplica as lições que podem ser aprendidas com o reino vegetal às diversas facetas da experiência humana.
Possuem memória, mas não cérebro; movimentam-se sem musculatura; são estruturas descentralizadas e verticais que, muitas vezes, demonstram arquiteturas complexas. Podem ser inspiradoras tanto para conceber novas formas de participação e democracia quanto para enfrentar os desafios da nova ordem climática, como se constata nas experiências e projetos utilizados por Mancuso para ilustrar cada capítulo.
Sidarta Ribeiro - O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho
A ciência contemporânea está dando razão a muitas lendas e mitos antigos. O campo da neurologia e dos estudos do sonho não é uma exceção: está se comprovando que os sonhos são preditivos e, sobretudo, adaptativos. Projetam cenários de futuro, preparam nossa adaptação a certos eventos que podem ocorrer: “toma corpo uma teoria geral do sono e dos sonhos que compatibiliza passado e futuro para explicar a função onírica como ferramenta crucial de sobrevivência no presente”.
Embora na espinha dorsal do livro esteja a explicação científica desse vaivém entre memória e oráculo probabilístico que embala nossas sestas e noites, no livro de Ribeiro também encontramos belas digressões sobre história cultural, drogas aborígenes e sonhos lúcidos.
Shoshana Zuboff - A era do capitalismo de vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder
Neste estudo monumental, a professora da Harvard Business School disseca os movimentos realizados pelas grandes corporações tecnológicas do Vale do Silício para mudar nosso comportamento, gerar perfis de cada um de nós, personalizar a publicidade e nos tornar dependentes de aparelhos e estruturas que nos espionam, dia e noite (telefones celulares, assistentes digitais, redes sociais, casas inteligentes, reconhecimento facial).
Talvez o conceito mais desenvolvido por Zuboff seja o de privacidade. E a empresa mais questionada o Google: “inventou e aperfeiçoou o capitalismo de vigilância de um modo muito similar ao utilizado pela General Motors para inventar e aperfeiçoar o capitalismo gerencial, há um século”. Ao mesmo tempo em que mudava a nossa relação com a informação e com o conhecimento, criou um sistema publicitário extremamente lucrativo, aproveitando-se da ausência de uma legalidade que impedisse traficar dados pessoais extraídos da rede. Com total impunidade.
Eva Illouz - El fin del amor: Una sociología de las relaciones negativas
A influente socióloga de origem marroquina, famosa por seu conceito de “cultura da terapia”, neste livro, aborda o desamor e a ruptura como um “campo privilegiado para entender como a intersecção entre capitalismo, sexualidade, relações de gênero e tecnologia produz uma nova forma de (não)sociabilidade”. Já se escreveu muito sobre amor, paixão, sexo, casamento e família, mas Illouz pesquisa o lado B: o não-amor, a falta de match, a desilusão, o divórcio.
No outro lado, encontra a dimensão dos afetos que menos interessa ao capitalismo tardio, que nos sugere que passemos rapidamente à seguinte transação. Quando baixamos o Tinder ou como ocorre no genial filme O Lagosta, de Yorgos Lanthimos, no pagamento de uma viagem ou uma experiência com outros solteiros e solteiras que também buscam o amor.
Benjamin Bratton - La terraformación: Programa para el diseño de una planetariedad viable
Embora sua grande obra The Stack permaneça inédita em espanhol e em muitos outros idiomas, o teórico norte-americano é sumamente influente em todo o mundo, graças a livros como este, em que aborda conceitos-chave da atualidade, com uma linguagem incisiva e grande intensidade.
Se por “terraformação” se entende a adaptação de outros corpos celestes para que possam acolher a vida da Terra, Bratton propõe que terraformemos nosso próprio planeta, “caso desejamos que continue sendo um anfitrião viável”. E que o façamos isso em chave urbana. É preciso pensar, ecocriticamente, formas de governança global que redirecionem os fluxos bioquímicos planetários para que não levem ao colapso.
Não é a única ideia contraintuitiva que encontramos neste provocativo ensaio de formato especulativo: uma das principais causas da mudança climática é a cultura, pois a autoexpressão humana nas redes sociais exige um custo gigantesco de carbono e eletricidade.
Joan Fontcuberta - La furia de las imágenes: Notas sobre la posfotografía
Vivemos no capitalismo da produção e o consumo excessivo de imagens. Desde que se enviou a primeira fotografia via celular, em 11 de junho de 1997, proliferaram de forma demencial os dispositivos que fotografam e gravam, os gestos como a selfie e a reação, e as ferramentas e ambientes digitais em que é possível alterar, compartilhar, comentar e acumular as imagens estáticas ou em movimento.
O prestigiado fotógrafo, curador e professor catalão é uma referência internacional na análise desta nova realidade pós-fotográfica. “Não assistimos ao nascimento de uma técnica, mas à transmutação de valores fundamentais”, afirma. A imagem deixa de ser um registro ou memória através da impressão da luz e se torna uma conversação digital. “Antes, a fotografia era uma escrita, agora, é uma linguagem”, que alimenta repertórios visuais, “compêndios enciclopédicos”, datasets.
Donna Haraway - Ficar com o problema: fazer parentes no chthuluceno
“O que acontece quando o excepcionalismo humano e o individualismo limitado, esses velhos clichês da filosofia e a economia política ocidentais, tornam-se impensáveis nas melhores ciências, sejam naturais ou sociais?”, pergunta-se a veterana filósofa da ciência.
A resposta é este ensaio de pensamento tentacular, ficção especulativa, feminismo e estudos multiespécies sobre a vida e a morte, em nossa terra ferida. Impõe-se a necessidade da sim-poieis, o fazer-com, no lugar da tradicional autopoiesis ou autocriação. Tecer laços com outros humanos e não humanos no plano dos corpos; tecer ideias entre as tecnologias, as ciências e as letras, no da mente.
Lisa Randall – Universos ocultos
Nos mesmos anos em que se conseguiu fotografar um buraco negro e cartografar com bastante precisão o universo, a professora de física da Universidade Harvard nos convidou a pensar não apenas nessa dimensão conhecida da realidade, mas também na possibilidade de que existam dimensões extras, absolutamente desconhecidas. Afinal, “não conhecemos nenhuma teoria física que dite que deve haver apenas três dimensões espaciais”.
Como a maioria dos livros de divulgação sobre física quântica e astronomia, o de Randall começa com uma história abreviada de seu campo, que termina na física de partículas e a teoria das cordas atual, que pesquisa nas branas, essas regiões determinadas do espaço-tempo que se estendem por uma fatia possivelmente multidimensional do espaço, e outros objetos parecidos, como as p-branas, “que se estendem ao infinito em apenas algumas dimensões e que os físicos deduziram matematicamente usando a teoria da relatividade de Einstein”. E depois nos mergulha na especulação: inclusive, é possível que existam “buracos negros extradimensionais”. Tomara que Christopher Nolan faça um filme que nos permita visualizá-los.
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Dez ensaios: uma bibliografia básica do século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU