30 Junho 2023
"É lícito aos cristãos o emprego de súplicas imprecatórias em suas preces?", questiona Carlos Caldas, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas em Belo Horizonte, onde lidera o Grupo de Pesquisa sobre Protestantismo, Religião e Arte.
Anderson Silva é pastor da igreja Vivo por Ti em Brasília. Sua igreja é uma das milhares de comunidades evangélicas autônomas que surgem da noite para o dia no Brasil (“autônomas” porque são grupos sem qualquer ligação com ramos protestantes clássicos, como o luteranismo, o anglicanismo, o presbiterianismo ou o metodismo). Silva é uma figura midiática de grande visibilidade, pois seu canal no YouTube registra 192.000 inscritos, e seu perfil no Instagram dá conta de 186.000 seguidores. É criador e líder do movimento denominado “Machonaria – Confraria Nacional de Homens”, que pretende resgatar o que chama de “masculinidade bíblica” [1]. Conforme o site oficial do movimento, eventos são realizados em todas as partes do país, com palestras ministradas por Silva e por outros pastores que comungam das suas ideias [2]. É no mínimo curioso que ele seja homônimo do lutador de UFC – enquanto o Anderson Silva lutador luta esportivamente, o Anderson Silva pastor briga pelo prazer de estar envolvido em uma polêmica ou uma contenda qualquer. Há dois anos divulgou um vídeo em seu canal de YouTube com quase três horas de duração no qual expõe a “imoralidade sexual da liderança evangélica brasileira”. Uma busca do nome “Pastor Anderson Silva” no YouTube mostra muitas controvérsias do pastor com outras lideranças evangélicas. Mas geralmente tais querelas ficam restritas ao mundo evangélico brasileiro, que está familiarizado com o “Quem é quem” de suas figuras públicas.
Todavia, recentemente Anderson Silva se envolveu em outra polêmica, mas, desta feita, seu pronunciamento está tendo repercussão nacional. Em um episódio do podcast “Tretas e Diálogos” (o nome não poderia ser mais sugestivo) divulgado no YouTube, Silva afirmou, com todas as letras: “Falta a gente orar assim: Senhor, arrebenta a mandíbula do Lula. Senhor, prostra enfermos os ministros do STF para que eles te conheçam no leito de enfermidade”. O deputado bolsonarista Nikolas Ferreira também participou do podcast, e nesta hora ele e duas mulheres que também participavam riram da fala de Silva. Esse momento bizarro aconteceu há mais ou menos um mês, mas ganhou destaque agora quando foi destacado no Twitter de Vinícius Betiol, autor do livro A arte da guerra online: como enfrentar as redes de extrema direita na internet [3].
Silva na sua fala citou o Salmo 3.7, que apresenta o que tecnicamente é chamado de “oração imprecatória”: “Levanta-te, Senhor! Salva-me, Deus meu, pois feres nos queixos a todos os meus inimigos e aos ímpios quebras os dentes”. Pode parecer estranho para o leitor moderno, mas fato é que na Bíblia Hebraica encontram-se algumas orações imprecatórias, que podem assustar a quem não está familiarizado com a leitura bíblica. Certamente a oração imprecatória mais conhecida de todas é a que se encontra nos versículos finais (7-8) do Salmo 137 (nas versões protestantes da Bíblia, que corresponde ao 136 nas versões católicas): “Filha da Babilônia, que hás de ser destruída, feliz aquele que te der o pago do mal que nos fizeste. Feliz aquele que pegar teus filhos e esmagá-los contra a pedra”.
Este tipo de oração não faz parte da piedade popular cristã, católica ou protestante, e, salvo melhor juízo, tampouco da judaica. Daí, a questão que se levanta é quanto à hermenêutica feita por Anderson Silva ao evocar as orações de imprecação que vez ou outra aparecem no Saltério hebraico. Afinal, Anderson Silva declara ser cristão. Pelo menos, é assim que ele se apresenta. É lícito aos cristãos o emprego de súplicas imprecatórias em suas preces?
Ao defender a prática de oração imprecatória em nossos dias Silva usa o que tecnicamente é chamado “leitura bíblica por analogia”, uma prática extremamente comum entre evangélicos quando leem as escrituras hebraicas, isto é, o Antigo Testamento. Comum, mas ingênua e simplista, e que ignora por completo o specificum do cristianismo. A leitura bíblica por analogia funciona assim: “se tal ou tal coisa aconteceu ou foi dita no Antigo Testamento, então hoje eu posso dizer ou fazer o mesmo”. É uma leitura que dá um salto do texto do Antigo Testamento para os nossos dias sem passar por Jesus Cristo. E o critério cristão fundamental para a interpretação e aplicação do Antigo Testamento é e está em Jesus Cristo. Jesus é a chave de leitura cristã da Bíblia Hebraica. O que não passa por Jesus não é aplicável para o cristão. Aí há que se observar que não há precedentes no Novo Testamento para orações imprecatórias. No Novo Testamento não há exemplos de seguidores de Jesus ou dos seus seguidores orando imprecatoriamente contra quem quer que seja. Muito pelo contrário. Jesus disse que “bem-aventurados os pacificadores (não os violentos) porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5.9) e mais ainda: “não resistais ao perverso, mas a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra" (Mt 5.39). Mais tarde, no episódio bastante conhecido de sua prisão no Jardim do Getsêmani, e um dos seus seguidores queria responder à violência com violência, Jesus repreendeu a atitude, e afirmou: “todos os que lançam mão da espada à espada perecerão” (Mt 26.52). Ao ser crucificado, suas últimas palavras foram: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23.34) e, conforme o relato joanino, as primeiras palavras do Cristo ressurreto não foram nada do tipo “vou destruir os romanos que me torturaram”, mas “Paz seja convosco” (Jo 20,19).
Repetindo, resumindo e concluindo: a chave hermenêutica cristã para a leitura bíblica, e o modelo supremo de vida para os que se dizem cristãos, é e está em Jesus. Logo, a atitude do pastor de Brasília é completamente equivocada. Silva revelou uma piedade distorcida e deturpada que nada tem de cristã ao dizer que se deve orar para Deus destruir a mandíbula de Lula e prostrar enfermos os ministros do STF.
O que está acontecendo com a maioria dos evangélicos do Brasil é muito triste: estão deixando de lado princípios basilares do evangelho de Jesus e estão seguindo outro evangelho, um “evangelho” (entre muitas, muitas aspas) que tem como valores a violência, simbólica e literal, contra quem não compartilha dos seus princípios. “Mas que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema” (Gl 1.8). A maioria dos evangélicos do Brasil deixou de lado a missão de ser testemunha de Jesus Cristo, substituindo-a pela missão de ser testemunha de Jair Bolsonaro. A ação de Anderson Silva é um exemplo disso. Ao invés de dar testemunho do amor, que deve caracterizar o discipulado cristão (cf. Jo 13.35), a fala de Silva reproduz o infame discurso de ódio que tem empesteado as redes sociais. Os que têm confundido a mensagem bolsonarista com o verdadeiro evangelho precisam ouvir o que o Cristo ressurreto disse aos efésios: “Tenho porém contra ti que abandonaste o teu primeiro amor. Lembra-te pois de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras” (Ap 2.4-5).
[1] No site oficial do movimento há a descrição dos “Códigos do Machonaria”, com 40 pontos. Alguns são pan-religiosos, por assim dizer, ou de nenhuma tradição religiosa, como por exemplo, o 19: “Cuidar da saúde”, e o 34: “Quite suas dívidas, honre seu nome” (são princípios que se aplicam a pessoas de toda e qualquer tradição religiosa, ou de quem não professa nenhuma religião). O princípio 20 é absolutamente inusitado e insólito: “Treine uma arte marcial”. Nada contra, mas qual é a base escriturística para Anderson Silva defender que um princípio definidor do que ele chama de “masculinidade bíblica” passa pela prática de uma arte marcial?
[2] Disponível aqui. Acesso: 21 jun. 2023.
[3] Informações dadas pelo jornalista Chico Alves no portal UOL em 16/06/2023: Pastor pede que Deus arrebente mandíbula de Lula e adoeça ministros do STF. Disponível aqui. Acesso: 21 jun. 2023.
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O estranho caso do pastor que pediu a Deus para arrebentar a mandíbula de Lula. O que está acontecendo com os evangélicos no Brasil? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU