27 Junho 2023
David Lizoain (Toronto, Canadá, 1982) formou-se economista na Harvard e na London School of Economics para, depois, estabelecer-se em Barcelona. Na capital catalã, foi assessor do ex-presidente da Generalitat, José Montilla. De lá, voou para Madri para assessorar Pedro Sánchez, no Palácio da Moncloa.
Agora, deu uma guinada em sua área de estudo e acaba de publicar Crimen climático (Debate, 2023), um ensaio que aborda abertamente as consequências que as decisões de empresas e governos podem ter, provocando milhares de mortes que, segundo Lizoain, podem ser comparáveis a crimes de guerra.
A entrevista é de Sandra Vicente, publicada por El Diario, 24-06-2023. A tradução é do Cepat.
O livro se chama “Crimen climático”, mas em suas páginas fala de genocídio. Por quê?
Penso que é mais adequado. Optei por uma linguagem impactante, mas considero que é mais descritivo do que provocativo. Quanto mais emissões de CO2, maiores as consequências negativas que, em última instância, provocam mais mortes. Se continuarmos neste caminho, conhecendo as consequências, haverá milhares de mortes. Então, se consideramos que a mudança climática é provocada por ações humanas, neste caso, intencionais, o termo mais apropriado é genocídio.
Avalia ser possível que esse genocídio climático chegue a ser julgado?
Não descarto que vejamos alguns Julgamentos de Nuremberg climáticos. A tendência é para um sistema jurídico que cada vez mais leve em conta esse tema e reconheça que a mudança climática se traduz em uma violação dos direitos humanos e das possibilidades das gerações futuras. E que essas consequências estão ligadas a comportamentos criminosos. A Justiça costuma ser conservadora, mas responde, na sequência, ao sentimento majoritário. Então, se eu fosse diretor de uma grande empresa de combustíveis fósseis, começaria a me preocupar.
Diz que, para os nascidos depois de 2000, a crise climática é uma preocupação inerente. Por que não nos preocupamos antes, considerando que a comunidade científica vem alertando desde os anos 1980?
O ano de 1982 foi o último em que a temperatura anual não ultrapassou a média da época pré-industrial. Esse foi um ponto de inflexão. As pessoas nascidas entre os anos 1980 e 2000 vivem a crise climática como uma ameaça que sempre estava a ponto de chegar. Instalou-se a ideia de que havia tempo para agir, então, nunca se fez nada. Depois de tanto esperar, o problema já nos extrapola e o tempo se esgotou.
Veremos isso neste verão. No ano passado, tivemos ondas de calor impressionantes, com muitas mortes, e foi no contexto do La Niña. Neste ano, estamos no ciclo do El Niño e já vemos anomalias térmicas que trarão um verão muito quente. E os próximos serão piores, encadeados, até pararmos com isto.
Em um artigo recente, questionava: se abril está como julho, como será julho?
A questão é que para muitas pessoas um verão mais quente será horrível, mas para muitas outras pode ser mortal. A mudança climática afeta de forma desigual. Aos idosos, às crianças, aos pobres. Não atender às consequências é desproteger as pessoas mais vulneráveis.
No livro, fala sobre os subterfúgios das classes dominantes. Quais são as consequências de os tomadores de decisões não sofrerem a mudança climática?
Sou otimista porque, de alguma forma, as classes dirigentes estão se inteirando da emergência graças à grande conscientização cívica. A reação ainda é insuficiente e deve ser acelerada, mas estão ocorrendo mudanças. Em nosso país, por exemplo, estamos em plena revolução das energias renováveis. É um sinal de que o sistema não é impermeável às necessidades de mudança que a emergência climática está despertando na sociedade.
No entanto, ainda encontramos grandes exemplos de branqueamento ou “greenwashing”. Qual é a sua opinião acerca da próxima COP, que acontecerá em Dubai, uma cidade que você define como “o paradigma do absurdo na era dos combustíveis fósseis. Uma vitrine para exibir a riqueza e, portanto, esbanjamento”?
Existem exemplos alarmantes e este é um deles. A COP ser realizada em Dubai, que é a máxima expressão da distopia climática, fará com que haja mais lobistas das energias fósseis do que ativistas. É um exemplo de que não podemos dar por certo nenhum avanço e devemos continuar lutando, pressionando, mobilizando e nos organizando porque, diante de qualquer vacilo, as empresas e regimes recorrerão ao status quo. Ou seja: buscar maximizar seus lucros sem se preocupar com o impacto sobre o planeta ou, o que é o mesmo, o impacto sobre os seres humanos.
Os genocídios se dirigem a um segmento da população ou grupo étnico. Em seu caso, aponta que as vítimas serão populações vulneráveis. A que proporção este genocídio pode chegar?
Vamos da escala micro para a macro. Em nosso país, ter uma casa com ar-condicionado e a possibilidade de sair de férias não é o mesmo que pagar aluguel, sem ar-condicionado e sem poder sair da cidade no verão. Para os últimos, as ondas de calor podem representar condições insuportáveis e um claro risco para a sua saúde e vida. Se ampliamos o foco, vemos colheitas frustradas, secas, fomes e milhares de pessoas forçadas a migrar. Os fenômenos climáticos extremos não geram apenas desigualdades econômicas, mas também desigualdades na expectativa de vida.
É um exercício um pouco macabro, mas, há pouco, um relatório da ONU falava que, no pior de seus cenários, ocorreriam 100 milhões de mortes extras em 2100. Não acredito que sejam tantas, porque embora estejamos atrasados, já estamos agindo. Contudo, esse relatório nos diz que é quase tão ruim não agir como agir mal. Falamos de 100 milhões de pessoas cujas vidas serão impossíveis e que, no melhor dos casos, terão que migrar.
Os piores efeitos da mudança climática são registrados no hemisfério sul. Qual é a relação desta crise com o colonialismo?
Estão intimamente relacionados. Os maiores responsáveis são os que menos sofrem suas consequências. E os menos responsáveis, os que mais sofrem. Isso está muito ligado ao colonialismo porque são as grandes potências coloniais que se beneficiam da extração de recursos do sul global, ao passo que esta região foi se empobrecendo pelo colonialismo, o neocolonialismo, as políticas de ajuste estrutural, a dependência da dívida e, agora, pela exploração da poluição por parte do norte global. É impossível falar de mudança climática sem falar de justiça global.
No livro, diz que um futuro descarbonizado será mais democrático. No entanto, também relata que os painéis solares são fabricados em campos de trabalho da população uigur, na China, e relaciona o barateamento da energia solar com a escravidão moderna. O que há de democracia nisso?
Existe um livro muito bom, Carbon Democracy, de Timothy Mitchell, que atrela o sistema energético e as relações de classe a suas consequências políticas. Argumenta que como a mineração de carvão é intensiva em mão de obra, supõe que haja muitos mineiros e, em todas as partes, estão na vanguarda da sindicalização e a luta pela democracia. E os mineiros de Astúrias são um grande exemplo. Ao contrário, o petróleo é intensivo em capital, não em mão de obra. Por isso, os oleodutos se prestam mais a sistemas autoritários e antidemocráticos, porque exigem poucos trabalhadores, sob controle quase militar.
Nessa linha, ainda que as energias renováveis e a extração dos recursos naturais necessários acarretem uma luta para não cair em lógicas extrativistas e exploradoras, o risco é menor. Trata-se de um setor mais competitivo e descentralizado e, portanto, haverá menos oligopólios.
Contudo, também não é possível negar as consequências negativas da indústria de energias renováveis. As baterias dos carros elétricos demandam lítio e já é possível ver minas na Estremadura, por exemplo. Serão as comunidades mais vulneráveis, aquelas que precisam de empregos, que continuarão sofrendo os efeitos negativos da transição energética?
A descarbonização terá suas lutas e contradições, é claro. Não trará automaticamente mais democracia, mas, sim, maiores condições democráticas. Não se trata apenas de acabar com os combustíveis fósseis, mas com o contrato social que implicam.
Diz que a crise climática pode favorecer o crescimento dos extremismos. O que é o ecofascismo?
É uma forma de destacar que a direita radical pode usar a crise climática para se fortalecer, alimentando, por um lado, o medo da migração, porque sabemos que a emergência climática gera mais tensões migratórias. E, por outro, enaltecendo uma série de comportamentos vitais intimamente ligados ao agravamento da crise climática, que sabemos que precisariam ser mudados.
Por exemplo?
Os debates sobre a alimentação, como vimos com a polêmica sobre a chuleta. São coisas do cotidiano, reivindicando a liberdade individual na hora de se alimentar, consumir e se deslocar, a preocupações mais abstratas como o protecionismo e o nacionalismo. Agora que temos a enésima tragédia no Mediterrâneo, veremos que alguns governos serão tentados a fechar as fronteiras para ficarem com seus próprios recursos e impedir a chegada de pessoas de fora. Contudo, as fronteiras não estarão no Mediterrâneo, mas diretamente no Sahel ou além, em conivência com regimes autoritários.
Para explicar as mortes por causa da mudança climática, fala do conceito de ‘matar à distância’ e da dificuldade que significa encontrar culpados quando não há ninguém que puxe o gatilho. Como identificar os responsáveis?
Utilizo a taxonomia do filósofo alemão Karl Jaspers para fazer uma diferenciação entre responsabilidade política, moral e criminal. Na criminal, falamos de grandes empresas de combustíveis fósseis e de instituições financeiras e representantes políticos que permitem que continuem desenvolvendo seus negócios.
É importante diferenciar entre pessoas com grande poder, cujas decisões contribuem diretamente para o aquecimento global, e a responsabilidade de pessoas individuais, que existe, mas é menor. É bom reciclar e consumir de forma mais ética, mas não tem nada a ver com a abertura de um novo gasoduto. Os cidadãos têm a responsabilidade de agir coletivamente para gerar mudanças políticas.
Nas últimas eleições, a questão ambiental não foi um grande assunto e parece que também não será nas gerais. Isso pode estar relacionado ao fato de o segmento mais consciente da população ser muito jovem e, em parte, ainda não ter direito a voto?
Sem dúvida, a geração que vem está mais consciente porque suas vidas estão em jogo. Ter um horizonte em 2080, em que as opções são ficar como estamos ou Mad Max, não é o mesmo que olhar para 2040. No entanto, entre os jovens, nem todos são ambientalistas, também há espaço para a extrema-direita.
Além disso, a pirâmide demográfica se inverteu, então, não podemos confiar apenas em uma solução geracional, mas, sim, penso que os jovens convencerão seus pais e avós. Há motivos para esperança. No momento, há mais consciência do que ação, mas essa consciência, unida à organização, irá se traduzir em mudança.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não descarto que vejamos alguns julgamentos de Nuremberg climáticos”. Entrevista com David Lizoain - Instituto Humanitas Unisinos - IHU