31 Mai 2023
"'Porque amo Jesus' é a frase que se repete quase a cada início de pensamento, de forma que no final nos tornamos ouvintes impressionados e atônitos de uma poderosa declaração de amor, às vezes apaixonada e dolorosa. 'Porque amo Jesus. Porque não acredito num modelo não encarnado, não pessoal de amor e de justiça. Porque não acredito num modelo de amor. Porque o próprio Jesus amou pessoas doentes de amor. Como Madalena, por exemplo, e talvez Judas. Antes mesmo de ter começado a amar, somos todos doentes como eles. E depois de Jesus, só existem doentes de amor, para sempre'", escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Stampa, 27-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A fé cristã proclama que Deus se fez humano, que Deus se fez legível na vida de um homem e que somente uma existência plenamente humana é aquela em que Deus se expressou plenamente. Sim, o homem Jesus é para os cristãos "a imagem do Deus invisível", Jesus de Nazaré, um homem visível como todo homem é o ícone, a imagem do Deus que não se vê.
Então fica extremamente claro porque Pilatos o apresenta com as famosas palavras: Ecce homo, eis o homem por excelência!
A humaníssima humanidade e até a carnalidade de Jesus são o coração do breve ensaio de Frédéric Boyer Il dio morto così giovane (O Deus que morreu tão jovem). Boyer é um escritor, editor e tradutor francês praticamente desconhecido na Itália, sendo essa a sua primeira obra publicada no país.
Nascido em 1961, aluno da prestigiosa École Normale Supérieure, ex-diretor editorial das edições Bayard onde dirigiu a tradução de La Bible publicada em 2001, fruto de colaboração entre especialistas em línguas bíblicas e famosos escritores franceses, entre os quais Olivier Cadiot, Florance Delay, Emmanuel Carrere. Às Escrituras Judaicas e Cristãs ele dedicou vários ensaios de grande qualidade, como La Bible, notre exile (Paris 2002) e nos últimos meses publicou na prestigiada Gallimard Évangiles, a tradução completa dos quatro evangelhos. Autor até hoje de mais de quarenta obras incluindo romances, poemas e ensaios, Boyer também propôs novas traduções de obras clássicos, como as Confissões de Agostinho, os Sonetos de Shakespeare e as Geórgicas de Virgílio com o título Le souci de la terre.
Il dio morto così giovane, de Frédéric Boyer (Foto: Divulgação)
Somente de um autor eclético e versátil como ele, fora de esquemas mentais e jaulas confessionais poderia ter nascido Il dio morto giovane, um ensaio que, sem ultrapassar as cem páginas, expande os limites de interpretação da figura sobre a qual mais se escreveu na história da humanidade: Jesus. Tal é a singularidade, o caráter atípico e imprevisível dessa obra que surpreendeu e maravilhou um leitor assíduo como eu de bibliografia cristológica. O pensamento é denso e arrojado, a escrita de qualidade literária muito refinada: a excelente tradução de Emanuele Borsotti é um convite à leitura do original francês. A princípio pode ser lido de uma só vez por sua fluidez e paixão, mas depois somos obrigados a esmiuçá-lo pelo caráter encorpado e profundidade.
"Porque amo Jesus" é a frase que se repete quase a cada início de pensamento, de forma que no final nos tornamos ouvintes impressionados e atônitos de uma poderosa declaração de amor, às vezes apaixonada e dolorosa. “Porque amo Jesus. Porque não acredito num modelo não encarnado, não pessoal de amor e de justiça. Porque não acredito num modelo de amor. Porque o próprio Jesus amou pessoas doentes de amor. Como Madalena, por exemplo, e talvez Judas. Antes mesmo de ter começado a amar, somos todos doentes como eles. E depois de Jesus, só existem doentes de amor, para sempre”.
Boyer declara que ama Jesus porque se fez homem para amar como nós e por isso declarou que os mandamentos fundamentais são apenas dois que na realidade se tornam um: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração... e o teu próximo como a ti mesmo”. Um sem o outro não é possível, “posso amar meu próximo sem necessariamente amar a Deus. Mas o amor de Deus por mim certamente tem algo a ver com o amor do meu próximo”. Basicamente, posso amar meu próximo sem amar a Deus, mas não posso amar a Deus sem o meu próximo.
Sim, só a carne nos faz chegar a Deus, e sobre a carne Boyer tem centelhas de brilho absoluto: “O caminho mais curto do homem para Deus é a carne na sua fraqueza, é o homem na sua perdição". Subentendendo a figura do compassivo Samaritano, reconhece que “o caminho para Deus é muito longo, muito lento porque tem que passar por todos aqueles que são deixados pela estrada, abandonados na vala meio mortos, sem nome e sem roupa. Muito longo, muito cansativo porque deve passar por todos aqueles que estão doentes, que são excluídos, que são inquietos. Mas, Jesus nos recordou, não existe um caminho mais curto. Também é por isso que amo Jesus”.
Ele ainda declara que ama Jesus porque tudo o que ele fez, o fez pelos doentes, a eles “sempre deu a si mesmo como se deu no final. Sem se vender. Como se ele fosse a soma dos sofrimentos, a soma dos fracassos, a soma dos espancamentos por nada”. Jesus cura entregando-se a quem pede, “mas, entregando-se a eles, ocupa o lugar daquilo que as pessoas pedem sem saber o que querem". E ocupa aquele lugar, e não outro, porque sabe bem que Deus tem o seu lugar onde quer que falte algo às pessoas, e “ocupa-o porque sabe muito bem que Deus está ali onde ninguém o pede, onde ninguém pode imaginar que ele esteja... é onde ninguém pode obrigá-lo a ficar, onde achamos que seria melhor não estar”. É tudo muito simples para Boyer: “Vem onde nós estamos, ou seja, onde não pensamos que estaria”.
Em Jesus Deus se fez homem no ponto exato onde o homem está, até mesmo na fraqueza, até mesmo na morte por nós. “Passe-me este cálice, se possível”, reza Jesus, passando pela súplica da vítima e sobretudo aqui, na hora da paixão, da noite, indicou de que maneira Deus era homem. Assim, para Boyer, Jesus quis dizer claramente na noite que é a verdadeira morte de Deus é matar os fracos, e "que a eliminação dos fracos, dos doentes, dos menos que nada, era a morte da humanidade. Que o próprio Deus era essa comunidade que morre quando se negligencia ou quando nos livramos dos mais fracos".
Na França, algumas vozes católicas declaram que ficaram escandalizadas com a última parte desse ensaio onde Frédéric Boyer eleva o hino à necessária ausência de Deus. A história nada mais é que a ausência de Deus, a história nada mais é que o grito dos homens sem Deus: "Se percebo Deus ausente como todos o percebem tão frequentemente, isso significa que Deus não está ao meu lado, mas que se entregou a mim”. Em última análise, ser cristão para Boyer significa acreditar que, para suportar a ausência de Deus, da qual todos nos queixamos, precisamos de Deus e "a necessidade de Deus assim surge no momento de sua insuportável e necessária ausência”. “Ser cristãos - conclui Boyer - significa, portanto, crer que Jesus, chamado de Cristo, é Deus quando Deus está ausente”.
E aqui chegamos à última e definitiva declaração de amor do autor: “Amo Jesus porque não morreu idoso, porque não morreu sábio, porque não morreu em seu lugar, porque ressuscitando continuou sendo aquele jovem filho, aquele jovem irmão de todos". O amor pela juventude de Jesus “jovem até mesmo na morte para ultrapassar a morte com a juventude”. Para Boyer, existe um nexo inseparável entre a juventude de Jesus e a sua ressurreição. Essa inquietação que é uma marca da juventude significa que "a ressurreição, e somente ela, é a inquietação do mundo".
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“Eu amo Jesus porque não morreu idoso, mas continuou sendo um jovem irmão de todos”. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU