"Rica em desafios, estimuladora do espírito de quem se sente chamado a viver a forma de vida de Carlos de Foucauld. Aparentemente, parece ser tão somente um informe a narrativa de sua volta para casa e da obediência dedicada aos seus pais; mas, na verdade, traz consigo todo um jeito de ser e de viver de Jesus. Podemos dizer que este pequeno versículo de Lucas constitui-se num projeto de vida", escreve o padre Éderson Queiroz, da Arquidiocese de Uberaba, Minas Gerais.
“Não sou, certamente, chamado à pregação, minha alma não será capaz disso, nem ao deserto, pois meu corpo não pode viver sem comer; sou então chamado à vida de Nazaré, do que meu corpo e minha alma são capazes e pelo que me sinto atraído” - Irmãozinho Carlos (SCD 49)
Poderíamos abordar diversos aspectos da preciosa vida do Irmãozinho Carlos de Foucauld. No entanto, escolhi uma abordagem, me parece ser a raiz, a fonte, o princípio de todas as abordagens: a vida oculta de Nazaré.
Depois de um longo processo de buscas, inquietações, crises, indagações; o Irmãozinho Carlos chega ao essencial: a vida oculta de Jesus, em Nazaré. Encantado com a descoberta, não medirá esforços para internalizar a mística e a espiritualidade de Nazaré. Tudo é tão simples, pequeno, singelo, que coube numa pequena frase do evangelista Lucas: “e desceu com eles à Nazaré e lhes era submisso” (Lc 2,52). O que para muitos não passa de uma informação sem muita relevância, e que pode se passar despercebida; em verdade, é de grande importância. Rica em desafios, estimuladora do espírito de quem se sente chamado a viver a forma de vida de Carlos de Foucauld. Aparentemente, parece ser tão somente um informe a narrativa de sua volta para casa e da obediência dedicada aos seus pais; mas, na verdade, traz consigo todo um jeito de ser e de viver de Jesus. Podemos dizer que este pequeno versículo de Lucas, constitui-se num projeto de vida. Denso, intenso e empenhoso! Descer a Nazaré, pequeno povoado na Galileia, é o mesmo que mergulhar no cotidiano, simples, pobre, sem novidades; onde apenas Deus é testemunha do que se vive e da forma como se vive. Descer a Nazaré é o mesmo que adentrar-se na cotidianidade de um povo, sua cultura, religiosidade, trabalho e sociedade; sem nenhuma expressão dentro do Império Romano. Hoje, equivale a entrar na vida oculta, sem visibilidade, até mesmo desprezível de milhares e milhões de pessoas nas periferias geográficas e existenciais. “O fato surpreendente é que, em Jesus, Deus não só se fez homem, mas também ‘margem’”. O centro da história teve aparecimento na periferia. (Adroaldo Palaoro).
Charles de Foucauld (Foto: Vatican Media)
“Apesar de viver perdidos naquela pobre aldeia, os vizinhos de Nazaré tinham consciência de pertencer a um povo muito querido por Deus!” - José Antônio Pagola
Conhecido como Nazareno, isto é: aquele que é de Nazaré, seus pais eram conhecidos na pequena aldeia, de 200 a 400 habitantes, ao sopé de uma montanha da baixa Galiléia. Lugar de cultivo de uvas pretas, oliveiras, trigo, cevada e painço. Nos lugares sombreados, permitiam o cultivo de verduras e legumes. Da montanha, escorria um manancial de água que servia a todas as famílias. Neste ambiente, moveu-se Jesus, ladeira acima, ladeira abaixo. Nazaré, uma aldeia tão desconhecida e insignificante, que nem mesmo aparece nos livros sagrados do povo Judeu. A maioria dos habitantes viviam em cavernas escavadas nas encostas. Outros, em casas baixas, paredes de adobe ou pedra, cobertas com ramos secos e argila e chão batido. Em geral, as casas só tinham um cômodo, onde viviam as famílias e até mesmo os animais. As casas davam para um pequeno pátio, compartilhado por um grupo de famílias. Era comum às famílias, o moinho, onde as mulheres moíam os grãos e o forno, onde assavam o pão. Este pátio era o lugar privilegiado para as brincadeiras das crianças e para o encontro dos mais velhos na fresca da tarde. Em Nazaré, a família era tudo: lugar de nascimento, escola de vida e garantia de trabalho. Ali a personalidade da pessoa era forjada de uma forma intensa e densa. As famílias que partilhavam o mesmo pátio, formavam uma família extensa, criando vínculos afetivos de caráter social e religioso entre seus membros. Quase tudo era partilhado entre elas. Muitos matrimônios eram negociados entre os familiares. Certamente, a sinagoga de Nazaré era muito simples, uma casa como as demais de seus moradores. O sábado era sagrado. Os homens estavam obrigados a participação na sinagoga. As mulheres, dispensadas. A fé de Jesus se desenrola neste ambiente familiar, comunitário e religioso. Não havia uma escola vinculada a sinagoga, a cultura era oral, não havia um grande mestre naquele lugar. Jesus aprendeu o oficio de artesão. Para encontrar trabalho, José, assim como seu filho, deveriam percorrer os vilarejos próximos. Neste ambiente, a pessoa humana e divina de Jesus foi sendo tecida. (Sugestão de leitura: “O Jesus, Aproximação histórica”, Jose Antônio Pagola, Vozes)
Nenhum dos quatro evangelistas descreveram a vida de Jesus, no que chamamos de trinta anos de vida oculta em Nazaré. Alguns fatos são descritos pelos Evangelhos Apócrifos, e outros, por uma literatura romanceada.
“Perdi meu coração por esse Jesus de Nazaré” - Carlos de Foucauld
O psicanalista Carl Gustav Jung, em sua abordagem sobre os arquétipos de pai e mãe, nos oferece a possibilidade de uma releitura da personalidade de Jesus, no convívio com José, Maria e sua pequena comunidade de Nazaré. Segundo Jung, trazemos a imagem do pai e da mãe, carregados de grandes significados simbólicos, dando a este movimento o nome de individuação. “Através deste processo, a consciência do sujeito se individualiza e se torna diferente das outras... A individuação permitirá que o sujeito alcance o autoconhecimento, encontrando, assim, sentido para a vida e a existência, sendo este, portanto, um dos mais importantes processos a serem experienciados pela pessoa humana e sua constituição”. (Luiz Carlos Aguiar e Isabella Jardim).
Aquele que deseja conhecer a pessoa de Jesus, “é preciso achar um tempo para uma leitura de algumas linhas dos santos evangelhos... Impregnar-se do espírito de Jesus...” (CLM, 166-167). Em Jesus, encontramos uma síntese profunda dos arquétipos de pai e mãe, colocando-o numa grande sintonia com o Pai dos céus, e, com toda realidade humana a sua volta.
Jung acreditava que o pai é uma figura importante no desenvolvimento da personalidade de uma pessoa, pois ele representa autoridade, disciplina, proteção e suporte emocional para o filho. Aquele que impõe regras, limites, ajudando a criança a desenvolver um senso de identidade, autocontrole e responsabilidade.
O arquétipo da mãe, está ligado a nutrição, proteção, conforto, o cuidado, abrigo e segurança. Quase sempre as Escrituras denominam Deus como pai. O profeta Isaias diz que uma mãe não esquece um filho, mas caso isso aconteça, Deus não nos esquecerá, insinuando assim que o amor de Deus é como ou até maior do que o amor de mãe (Is 49,15), e ainda, “qual mãe acaricia os filhos... (Is 66,13). O salmista reza: Tu me formaste nas entranhas de minha mãe (Sl 139,14). O bem-aventurado João Paulo I na oração do Angelus, afirmava: Deus é papai, mais ainda, é mãe (10/09/78). “Deus ama e compreende como uma mãe”! Papa Francisco (09/06/2013). Pai e mãe são categorias humanas que utilizamos para falarmos e relacionarmos com Deus.
Quando Jesus diz: sede perfeitos como o Pai (Mt 5,48); tudo me foi entregue pelo Pai (Mt 11,27); Pai Nosso (Lc 11,2); Meu pai trabalha... (Jo 5,17); Ninguém vem ao pai... (Jo 14,6); Pai em tuas mãos... (Lc 23,46). E em tantas outras passagens, podemos perceber a figura de José despertando em Jesus uma relação profunda com Deus-Pai. Da mesma forma, o arquétipo mãe, é muito abundante em sua vida. O cuidado com as crianças, a atenção para com as mulheres, a presença junto aos doentes, a delicadeza com os famintos, nos rementem a Maria.
Nesta perspectiva, Jesus era um ser humano bastante integrado, e vai se revelando pleno de humanidade, ao ponto de nos revelar o rosto humano de Deus, e o rosto divino da pessoa humana. Sua humanidade revela sua divindade. Tudo isso foi tecido em Nazaré, na convivialidade familiar, comunitária, religiosa e laboral.
Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou excluí. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim, em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive - Fernando Pessoa
Descer a Nazaré é um imperativo humano, ainda que mulheres e homens dos nossos tempos, desconhecem esta realidade. Desde que fomos gerados, somos estimulados a subir, crescer, o que significa empodeirar-se. Descer não está em na perspectiva da grande maioria de nossa gente, porque no imaginário coletivo, é sinônimo de rebaixar-se, diminuir-se, humilhar-se. Então, estamos todos numa luta desmedida por galgar posições que conferem status, dá poder e riqueza. Mergulhar no próprio coração, ir aos porões que nos habitam, lidar com nossas más inclinações, enfrentar nossos monstros, dialogar com nossos defeitos, não é uma brincadeira e sim um desafio a humildade. “Na verdade, dentro de nós não existem só coisas belas, harmoniosas e resolvidas. Dentro de nós há sentimentos sufocados, muita matéria por esclarecer, patologias, inúmeros fios por ligar. Há zonas de sofrimento, âmbitos por reconciliar, memorias e censuras a deixar que Deus cure”. (Cardeal Tolentino). Encarar nossos monstros, nomeá-los, integrá-los, é uma necessidade para nossa humanização. Vale recordar o profeta Jonas, do jejum imposto aos animais e as feras. Estes animais e feras não estão fora de nós, estão em nós (Jean Yves Leloup e Leonardo Boff). Aqui e ali ouvimos: fulana está uma fera! Fulano é bruto como um animal! Estamos falando de forças animalescas que nos habitam. Anselm Grün, monge beneditino, alemão, faz uma analogia sobre o estabulo onde nasceu Jesus, com a nossa humanidade. Será que nos vemos ali? Pobreza, animais, esterco? Somos isso? O desconcertante é que Deus escolheu nascer aí, um lugar tão revelador do que somos!
A espiritualidade de Nazaré, nos conduz a uma espiritualidade de “baixo”, que significa buscar a Deus, exatamente em nossas paixões, enfermidades, impotências. O dialogo maduro com nossa realidade mais profunda, torna-se caminho, constrói pontes, derruba muros de proteção, abrindo-nos para a fraternidade universal, afinal, somos todos oriundos do barro. O caminho para ser irmão/irmã universal e gritar o Evangelho com a vida, passa pela identificação com o que verdadeiramente somos e carregamos em vasos de barro. Este é o caminho da pobreza evangélica, pois nos irmana a todos pobres do mundo, inclusive com a nossa “Casa Comum”, “que grita e geme em dores de parto” (Rm 8,19-27). Eu gostaria de agradecer a São Carlos de Foucauld porque sua espiritualidade, me fez muito bem quando eu estudava teologia, um tempo de amadurecimento e também de crises, me ajudou muito a superar as crises e a encontrar uma forma de vida cristã mais simples, menos pelagiana, mais próxima do Senhor”. Papa Francisco (18/05/2022).
“Embora vivendo no deserto profundo, lado a lado com os tuaregues, tradicionalmente mulçumanos sunitas, não determinou a nenhuma deles a conversão ao Evangelho, até encontrar a morte, por motivos fúteis, quando estava no auge de sua maturidade intelectual e espiritual. Ele escolheu viver a vida oculta de Jesus em Nazaré, argumentando que as obras de misericórdia a serem realizadas pelos Pequenos Irmãos de Jesus deveriam se limitar àquelas que Jesus realizava em Nazaré: acolher os hospedes e dar esmolas. Irmão Carlos foi um homem inquieto, que nunca parou de procurar o sal da vida, a si mesmo” - Brunetto Salvarini
Gosto muito da perícope de Lucas, sobre o encontro do Nazareno com Zaqueu, o publicano, Lucas 19, 1-10. Ela nos oferece as entranhas da pedagogia de Nazaré, nela descobrimos o Zaqueu que habita em nós, e, por ela somos desafiados por Jesus ao “hoje” da nossa salvação.
Lucas, com a arte de sua pena, nos descreve uma cena, no mínimo pitoresca. Zaqueu, o cobrador de impostos, homem de uma índole duvidável, esbanjando riqueza adquirida desonestamente, ouvindo dizer que Jesus estava passando por Jericó, não teve dúvidas, logo correu e ao modo das crianças, subiu numa árvore para ver Jesus passando. Deve ter ouvido muitos comentários jocosos a respeito de sua atitude, quiçá comentários maliciosos, risadas, olhares de aprovações, olhares de reprovações. Ele era de baixa estatura e o relato nos faz entender que, não apenas fisicamente, mas também, ou sobretudo, moralmente. É bem possível que a ética e a moral não lhe era conhecida. Alguma notícia chegou a seus ouvidos quanto a pessoa de Jesus, que ardeu seu coração, ao ponto de se expor, trepando numa árvore, para ver Jesus. Jesus ao passar e vendo aquele homem, beirando ao ridículo, entre os galhos de uma árvore, deu-lhe uma ordem forte, seguida de uma boa notícia: “Zaqueu, desce depressa, hoje preciso ficar em tua casa! ” O burburinho de reprovação dos que se julgavam santos, deve ter ecoado por todo aquele lugar.
O relato é encantador, pois nos diz de uma dinâmica que precisamos aprender todos os dias, e que, a Fraternidade Jesus Caritas nos oferece generosamente: para ver Jesus não é preciso subir, antes é necessário descer. Descer é uma dinâmica muito difícil, pois interiormente, estamos estimulados a subir. Neste mundo ninguém opta em sã consciência por uma vida em descida. Por isso, vivemos numa humanidade adoecida, desconectada de valores humanos, ecológicos, sociais e valores religiosos. Uma humanidade cheia de psicopatias, de todas as ordens, muitas vezes, chegando a monstruosidades.
Jesus, nos diz claramente, que para vê-lo, é preciso descer, somente assim, ele fica em nossa casa, isto é, em nosso coração, onde ouviremos de seus lábios: hoje a salvação entrou nesta casa! Descer aos andares de baixo, aos porões de nós mesmos, onde sentimentos, movimentos, historias, acontecimentos, afetos e desafetos são depositados como lixo ou como coisas velhas e sem importância. Tudo com cheiro de mofo, de coisa estragada, à espera do próximo lixeiro.
A Fraternidade Jesus Caritas, nos ensina a bela dinâmica, humana e divina, que para subir, é preciso descer. Somente quando desceu, Zaqueu se deu conta de sua vida imunda e faz um compromisso diante de Jesus, de uma vida com ethos, um ethos que conquistou quando percebeu a realidade das pessoas a sua volta, com quem repartiria seus bens e a outros a quem devolveria o que roubou.
Lembremo-nos, Jesus é o mestre de uma vida em descida, a isso São Paulo chama de kénosis (Fl 2,5-11). Não existe uma verdadeira Fraternidade Jesus Caritas que não seja uma escola de kénosis, pois, Jesus se fez presente onde se encontrava aqueles que não tinham lugar, os deslocados, os socialmente rejeitados, fez da periferia o centro.
“A essencialidade, condensando o significado do crer em duas palavras, nas quais está tudo: Jesus Caritas; sobretudo, voltando ao espírito das origens, ao espírito de Nazaré” - Papa Francisco
A eclesiologia do Vaticano II nos remete a genuinidade da mística de Nazaré, uma Igreja serva, em meio a humanidade, cheia de alegria e esperança, vendo e acolhendo as sementes do Verbo em todas as culturas e religiões. Neste sentido, e em muitos aspectos, o irmãozinho Carlos antecipou o Vaticano II.
Logo após o Concilio, a Igreja Latino-americana e a caribenha, colocou-se no movimento do Concilio, à luz da realidade de nossos povos. Podemos afirmar, que a eclesiologia latino-americana e caribenha, com sua dinâmica pastoral, partindo da leitura do Jesus histórico e do Jesus da fé, e, passando pela análise de conjuntura socioeconômica-política e religiosa, procura traduzir o Evangelho, para que o mesmo ilumine nossa pratica pastoral. Tanto que, em nossos encontros, temos a pratica da “análise de conjuntura”, como um descortinar nossas realidades, rasgando o véu dos acontecimentos.
Os documentos de Medellín, Puebla, Santo Domingos, Aparecida, juntamente com a Evangelii Nuntiandi de Paulo VI e a Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, formam um arcabouço para o nosso itinerário de descida a Nazaré numa perspectiva eclesial. O imperativo está em “descer” às realidades mais profundas de nossa gente, fazendo-nos irmãos e irmãs dos últimos, gritando o Evangelho com a vida, indo onde ninguém se dispõe a ir, mergulhando no desafio de viver a invisibilidade dos pobres, superando a ideologia da imagética, correndo o risco inclusive de ser considerado “sem importância” entre nossos pares e até mesmo pela instituição eclesial.
Eclesialmente, descer a Nazaré, é voltar a Galileia, o lugar dos últimos, dos invisíveis, dos sem importância e tomar a peito, o Projeto de Jesus, proclamado na Sinagoga de sua aldeia. “O Espírito do Senhor está sobre mim para: pregar a Boa Notícia aos pobres, liberdade aos presos, dar vista aos cegos, liberdade aos oprimidos, proclamando o ano da graça”. É olhar os céus e, suspirar e dizer, em alto e bom tom: “hoje se cumpriu a Escritura que vocês acabaram de ouvir”! (Lc 4, 18-21). Por causa do Programa de Jesus, a opção de vida, na Fraternidade Jesus Caritas, abrange todas as dimensões da vida humana, ou seja, dimensão humana, cultural, religiosa, social, política, econômica, ecológica. Isso significa, ser pobre como os pobres e pobres com os pobres. Podemos, assim, parafrasear Francisco: uma igreja em saída, uma igreja em descida!
“Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre, quem traz na pele essa marca, possui a estranha mania de ter fé na vida!” - Milton Nascimento
O Concilio Vaticano II, no Decreto Perfectae Caritatis, número 2 indicou à Vida Religiosa Consagrada e, portanto, às Ordens, Congregações Religiosas, Institutos de Consagradas e Consagrados e suas famílias espirituais, o necessário regresso às fontes de toda a vida cristã e à genuína inspiração dos institutos, mas também a sua adaptação às novas condições dos tempos.
“Sabemos que “várias congregações religiosas foram fundadas, tomando como alicerce a vida e a espiritualidade do Irmão Carlos... Elas são diferentes das outras congregações religiosas, porque seus membros, além de ser contemplativos e de rezar muito tempo diante do Santíssimo Sacramento, procuram trabalhar no meio dos mais pobres e mais abandonados; evitam promoções e ganham pouco dinheiro, vivendo com simplicidade ao lado das pessoas de baixa renda e sem prestígio social. Como Carlos de Foucauld, eles não pregam: vivem segundo suas convicções e partilham seu amor. ” (Diretório e Estatuto Canônico da FSJC).
“Em 1951, vários padres franceses, decidiram viver de forma simples e humilde o ministério sacerdotal no meio dos pobres, fazendo da Eucaristia a oração central de suas vidas, tornando-se contemplativos em meio as tarefas pastorais. Formam uma associação voluntária de padres diocesanos, com o nome ‘Unio Sacerotalis Jesus Caritas’, mais tarde, Fraternidade Jesus Caritas. Em 1951, a Fraternidade, foi reconhecida pela Igreja Católica. ” (DEC da FSJC).
Grande parte da Família Espiritual, que vive a mística e a espiritualidade do Irmãozinho Carlos, nasceu antes do Concilio Vaticano II, e, a partir do Concilio, fizeram o movimento de voltar às fontes. O decreto conciliar fala da necessidade de voltar às fontes da vida cristã, seguido do retornar à inspiração inicial do fundador ou fundadora. O movimento sinodal sobre a sinodalidade, aponta que devemos voltar às fontes do batismo, de onde emana nossa cidadania cristã, como povo de Deus. Do batismo brota igualmente as diversas vocações e carismas, todos em vista e edificar o Corpo Místico de Cristo.
A redescoberta do Irmãozinho Carlos constitui-se num verdadeiro movimento do Espírito e um dom a ser oferecido a Igreja. Leigos e leigas, ministros ordenados, religiosas e religiosas, encontramos aqui uma indicação de como viver o Evangelho, numa humanidade marcada pela pós verdade, a volta a nacionalismos excludentes, não receptiva ás diversas formas de viver a experiência religiosa, gerando miséria e miseráveis. Numa Igreja ferida em que muitos buscam viver o “passado como um trampolim para o futuro”, numa eclesiologia fechada e que se julga dona da salvação, com uma linguagem estranha às realidades do tempo presente, o irmãozinho Carlos, com a espiritualidade da vida oculta de Nazaré, nos oferece um caminho seguro de identificação com o Nazareno.
A mística da vida oculta de Nazaré, é uma verdadeira antítese contra o individualismo excludente, de uma espiritualidade desencarnada e devocionista, dos retrocessos de uma humanidade cada vez mais desumana, da intolerância religiosa, da misoginia, racismo e homofobia, do carreirismo, da anafetividade que ceifam a vida de tantos entre nós. O decreto conciliar diz também da necessidade de adaptar-se às necessidades do tempo. E não podemos caminhar rumo ao Reino fixando os olhos no passado. O chamado do Concilio a nossa Fraternidade, consiste em: voltar às fontes da vida cristã, retorno a fonte fundacional, adequar-se aos tempos atuais. O caminho está posto...
Imagem de São Charles de Foucauld (Foto: Vatican Media)
Há alguns anos passados me vi chamado a cuidar de minha mãe, foi um processo difícil e doloroso. Tive que buscar auxilio da psicanálise, direção espiritual, um longo e penoso tempo de discernimento. Tudo foi confirmado pelas palavras do Cardeal Dom Serafim Fernandes de Araújo, que certamente vendo minha angustia, chamou-me para uma conversa. Ao final, ele me disse: “vai, meu filho, é isso que Deus quer de você. Como bispo, minhas maiores dificuldades foram com padres e religiosas, que não entendiam que devemos deixar pai e mãe para seguir Jesus, mas isso, não significa abandoná-los”. Vai, com a minha benção! ” Ajoelhei-me e recebi sua benção, na famosa fórmula conhecida como benção de São Francisco de Assis.
Meus superiores religiosos entenderam e acolheram minha nova realidade, permitindo-me ser membro de uma Fraternidade, residindo na casa de minha mãe. A pedido do Ministro Provincial, fui acolhido na diocese e recebi o uso de ordens, mas nunca uma definição de onde trabalhar e de como me manter. Ao convite de dois padres, auxiliei numa paróquia, por 5,5 anos. Vivemos uma verdadeira fraternidade sacerdotal, foi um tempo de muito respeito, liberdade e bem querer. Com a transferência do vigário paroquial, o bispo pediu que eu assumisse esta função. Ano e meio depois, o pároco foi transferido, vindo uma nova dupla para a paróquia. Na Missa de apresentação, percebi que eu estava fora da chamada “equipe de padres”. Paulatinamente fui sendo deixado de lado, até mesmo das celebrações da Eucaristia. Até que, em primeiro de maio de 2017, não constava mais meu nome na escala de celebrações. Com a cobrança das pessoas, o pároco se irritou e apareceu com uma nota pública, do bispo diocesano, onde dizia que eu tinha sido transferido, que a paróquia tinha dois padres, a cidade dez padres e que não precisava mais de meus trabalhos. Isso ocorreu sem nenhum contato pessoal, ou por carta, ou por e-mail e nem mesmo por telefone, para mim. Esta nota foi lida nas missas, fixada nas portas das igrejas, nas rádios e em um jornal da cidade. Parece que as pessoas me olhavam como o “padre proibido”. Soube da nota episcopal, pela diretora de uma emissora de rádio. Certa vez, numa conversa amistosa com o bispo, ele me pediu para que eu aparecesse menos na sociedade. Meses antes eu tinha sido convidado para duas mesas redondas, numa grande universidade, bem debaixo do seu nariz. Entendi a afirmação do Cardeal Carlo Maria Martini: “a inveja clerical é a mais forte característica dos clérigos! ”
Passei a frequentar as missas no meio do povo, pois precisava de um alimento sólido para viver aquele momento. Mas logo percebi que os padres ficavam muito desconsertados com minha presença na igreja, e muitas vezes as pessoas me interpelavam sobre o motivo pelo qual não estava celebrando. Muitas vezes, ao chegar na Igreja, não tinha padre para celebrar, então eu participava da celebração da Palavra junto da comunidade. Entretanto, as pessoas não compreendiam, porque eu estava ali e não poderia celebrar, por isso, achei melhor, para não causar mal-estar, afastar-me por completo da comunidade eclesial onde nasci, fui batizado, ordenado padre e ali celebrei a primeira missa. Foi aí que apareceu Carlos de Foucauld em minha vida. Já tinha ouvido alguma coisa sobre a vida oculta de Nazaré. Procurei aprofundar esta mística, e foi onde encontrei sustento, apoio e paz interior.
Desde a pandemia, vivo com minha mãe, num sítio da família, há 6 km da cidade. É um lugar belo, tranquilo e orante. Ali temos uma Ermida dedicada a Nossa Senhora d’Abadia da Agua Suja, devoção portuguesa, muito forte no triangulo mineiro, parte de Goiás e Mato Grosso. Nesta Ermida, rezo a Liturgia das Horas e a Eucaristia, mas, sempre com a atenção para com a mãe, que quando se vê sozinha na casa, entra em pânico.
No dia 13/05/2020 recebi dos superiores religiosos uma longa correspondência, chamando-me de volta a vida conventual, desconsiderando o que o mesmo superior havia combinado comigo por três vezes, e que, a família resolvesse como ficaria a nossa mãe. Em meio à turbulência da pandemia, me vi obrigado a repensar minha vida religiosa consagrada, sem poder contar com a presença de uma pessoa que pudesse me ouvir e ajudar no discernimento. Tinha o Santíssimo Sacramento, e mais ninguém! Foi quando decidi deixar a Vida Religiosa Consagrada, depois de 38 anos de votos professos. Tornei-me diocesano, na Arquidiocese de Uberaba, o que me permitiu morar e cuidar de minha mãe.
Em meio a uma grande solidão eclesial, pois não tenho uma paróquia onde trabalhar e nem salário, reporto-me ao Irmão Carlos e a milhares de pessoas anônimas e pobres, e reencontro alento para manter-me de pé e com alegria. Minha vida oculta, se desdobra no cuidado da mãe, remédios, banho, cuidado da casa. Com Alzheimer, aos 92 anos, levou uma queda, sem motivos aparentes, fraturou uma vértebra. Por isso não pude ir ao nosso retiro. Nem sempre posso fazer a adoração Eucarística, faço-a com piedade e unção dando o banho naquela que me gerou. Enquanto não conseguimos formar uma fraternidade aqui pela região; sonho, pelo menos, em ter uma fraternidade virtual. Para mim seria de grande valia. Ainda é um sonho... Gratidão a todas e a todos vocês, guardem-me no coração. Jesus + Caritas!