15 Mai 2023
A Conferência Episcopal Francesa apresentou esta semana a nova forma do "celebret", a carteira de identificação dos padres católicos. O dispositivo visa impedir que padres predadores desapareçam do radar das autoridades eclesiásticas.
A reportagem é de Gaétan Supertino, publicada por Le Monde, 12-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os jornalistas têm seu "passe de imprensa" e os padres católicos na França têm seu "celebret". Trata-se de uma espécie de carteira de identidade profissional, emitida pela autoridade eclesiástica que atesta que seu titular é um ministro do culto que pode presidir a missa e que tem a faculdade de confessar. No âmbito da luta contra as violências sexuais, os bispos franceses decidiram dar nova vida a esse documento que havia caído em desuso na França, onde a maioria das pessoas não pedia para consultá-lo. Seguem algumas explicações para entender o que vai mudar concretamente.
A origem do documento remonta ao Concílio de Trento (1345-1563) que estabelece a regra segundo a qual “nenhum padre estrangeiro poderá, sem carta de permissão de seu ordinário, ser admitido por um bispo para celebrar os mistérios divinos". Mas iria se tornar realmente institucional como “carteira de identidade” do padre em 1917. Nessa época já se tratava de um dispositivo para combater as violências sexuais, especialmente aquelas cometidas durante o sacramento da confissão.
O Papa Bento XV impõe então aos padres o "celebret" que terá de ser retirado em caso de crime sexual.
Desde então, cabe aos bispos (e aos superiores de congregação para os monges) entregar ou recolher o documento, que posteriormente poderá ser solicitado pelas autoridades eclesiais ou pelos responsáveis dos lugares em que padres de fora da paróquia forem celebrar, um santuário, uma catedral ou nos grandes eventos como as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), por exemplo.
O “celebret” agora será modernizado na França. Até agora, era um “documento em papel, falsificável (...) e complicado de atualizar”, esclareceu Alexandre Joly, porta-voz da Conferência Episcopal Francesa (CEF), numa coletiva de imprensa na quarta-feira, 10 de maio. Um autor de violências sexuais destituído do estado clerical ou sujeito a restrições podia montar um documento e ir oficiar numa paróquia onde não o conheciam.
A nova carteira conterá um QR code que dará mais informações: uma tarja verde caso o padre não tenha restrições para celebrar ou confessar; laranja se houver restrições, por exemplo, a proibição de ficar sozinho com menores. Finalmente, uma faixa vermelha aparecerá se o titular do cartão não puder pregar nem celebrar, por exemplo, se destituído do estado clerical.
Cada diocese e cada congregação religiosa deve atualizar anualmente os dados relativos a seus bispos, padres e diáconos. Uma atualização imediata será feita se um padre estiver sujeito a uma sanção civil ou canônica.
Os 120 bispos franceses já receberam seu "celebret" em março. A CEF espera tornar concreto o dispositivo para os 13.000 padres seculares e regulares, e para os 3.000 diáconos até o final do ano.
A ideia é impedir que um padre predador desapareça do radar das autoridades eclesiásticas, como já aconteceu nos casos dos irmãos Philippe, por exemplo: condenados no início dos anos 1950 pelo Vaticano, Thomas e Marie-Dominique conseguiram fazer com que suas sentenças fossem esquecidas e retomaram as suas atividades em paróquias onde nada se sabia das suas sanções passadas.
“O objetivo é levar a sério as sanções às quais um padre está sujeito, para garantir que não repita seus atos, mas também para prevenir ofensas às vítimas: quem é sancionado não pode ser readmitido em seu poder sacramental”, afirma o historiador das religiões Philippe Portier, que participou dos trabalhos da Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais (Ciase).
O novo "celebret" também expressa uma mudança de filosofia. “Originalmente, o “celebret” era para impedir que os padres traíssem seu presbiterado. Hoje não é mais pensado a partir da dignidade do presbiterado, mas a partir do sofrimento das vítimas, continua Philippe Portier. A Igreja viveu por muito tempo na ideia de ser uma sociedade perfeita, na qual não podia haver os mesmos controles de uma sociedade comum. Havia também um princípio de fraternidade e confiança, quase cego, entre os padres. Os bispos afirmam hoje que não pode mais ser assim”.
É preciso considerar que o sucesso do "celebret" modernizado dependerá de como as autoridades eclesiais o usarão. Somente bispos, responsáveis religiosos ou responsáveis de sala poderão pedir um controle. E por enquanto a CEF não especifica como será a fiscalização dos controladores, como garantir que eles usarão bem o dispositivo. “É uma medida que vai no sentido de tornar efetivas as sanções. Mas resta saber se passará a fazer parte dos hábitos eclesiais e como”, resume a socióloga Céline Béraud, membro de um dos grupos de trabalho encarregados de preparar a resposta da Igreja diante da crise das violências sexuais.
“Estamos a meio caminho. A Igreja não pode ignorar a crescente pressão dos fiéis, mas ainda considera que precisa respeitar a reputação do padre. Existe o risco de ocorrer uma resistência cultural. O "celebret" talvez seja necessário caso o padre seja um completo desconhecido, mas caso for conhecido, surge o problema...”, enfatiza Philippe Portier. Depois conclui: “É apenas um elemento de um dispositivo de combate contra os abusos sexuais que será mais amplo, que ainda precisa ser construído e do qual não se sabe, por enquanto, se será realmente construído".
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Violências sexuais: para que servirá a nova carteira de identificação dos padres na França? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU