25 Abril 2023
"A irmã Margron recordou que os abusos não são elementos periféricos ou conjunturais, mas sistêmicos. Aos crimes sistemáticos é necessário opor respostas sistêmicas. Conscientes de que será uma tarefa de longo prazo, F. Mounier reconheceu um empenho compartilhado dos religiosos sobre o problema, a liberdade de expressão, a convergência de pontos de vista e o bom funcionamento da 'democracia nos capítulos'", escreve Lorenzo Pezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 23-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A assembleia geral da CORREF (religiosos e religiosas da França, Paris, 11-13 de abril) confirmou a vida religiosa como força motriz na Igreja francesa pela luta contra os abusos. Os 200 superiores e superioras maiores, em coerência com o trabalho da Comissão Independente para os Abusos na Igreja (CIASE), aprovaram um texto (cerca de vinte páginas) intitulado: Recomendações e regras de boas práticas.
Frederic Mounier, ex-correspondente do La Croix em Roma, coordenador dos cinco grupos de trabalho que elaboraram o documento aprovado pela assembleia, expressou a convicção comum com uma citação de Thomas Halik: “Os abusos sexuais desempenham, em minha opinião, um papel semelhante aos escândalos ligados ao comércio de indulgências antes da Reforma. A princípio, os dois fenômenos parecem marginais. Ambos revelaram problemas sistêmicos muito mais profundos. No caso do comércio das indulgências, tratava-se da relação entre Igreja e dinheiro, a Igreja e o poder, clero e leigos. No caso dos abusos sexuais, psicológicos e espirituais, trata-se da doença sistêmica que o papa chamou de ‘clericalismo’. Diz respeito sobretudo aos abusos de poder e de autoridade (…). A identidade e a autenticidade do cristianismo se situam dentro da participação no drama da Páscoa, mistério da morte e ressurreição. Muitas coisas na Igreja devem morrer para que a ressurreição ocorra. E a ressurreição não é uma ‘reanimação’, um retorno ao passado, mas uma transformação radical”.
Em sua introdução, a presidente, irmã Véronique Margron, depois de recordar a raiz da escolha de consagração ("por Cristo, pelas inquietudes do mundo"), continuou:
“Descobrimos um continente tenebroso. Não no mundo, mas em nós. Não entre os outros, mas em nossa casa, na nossa Igreja, na nossa história, nas nossas comunidades. Trevas produzidas pelas mortes íntimas infligidas aos corpos, almas, espírito, infância, esperança, de quantos e quantas, pequenos ou grandes, viviam com confiança em nossas casas, instituições, clima, autoridade, reputação, participando de nossas liturgias e celebrações sacramentais".
Após a palestra introdutória, de E. Durand (presidente da Comissão Nacional para o Incesto, criada pelo governo após a CIASE), de Mounier e a síntese dos grupos de trabalho e da Comissão interna sobre o reconhecimento e a reparação, a assembleia discutiu e aprovou o texto final. O trabalho começou bem antes da apresentação do Relatório CIASE. Mais diretamente com uma assembleia dedicada aos "abusos cotidianos", às formas de condicionamento que envenenam a vida habitual das comunidades (21 de novembro de 2022) e com a apresentação dos trabalhos da Comissão interna sobre o reconhecimento e reparação (1º de dezembro).
450 vítimas reconhecidas e acompanhadas, 80 recomendações de reparação (em média 40.000 euros), 37 já encerradas e 43 em andamento.
Em um discurso em Leipzig em 23 de março pelo responsável das Células contra a deriva sectária (serviço conjunto entre bispos e religiosos), Jean-Pierre Jougla traçou o processo de sujeição abusiva em oito etapas: o encontro, a sedução, o isolamento progressivo da vítima, seu enfraquecimento, a introdução no grupo dos seguidores, a interiorização do sentimento de culpa, o empenho proselitista, o fascínio sectário mesmo no momento do afastamento.
A vida consagrada na França vive um momento de drástica redução, como em muitos países ocidentais. Em 2000, havia um total de 66.462 religiosos (48.412 irmãs e 5.237 monjas; 12.813 religiosos). Em 2021, o número total cai para 23.660 (15.653 irmãs, 2.972 monjas; 5.035 religiosos). Hoje a idade média dos religiosos é de 69 anos, a das religiosas 79.
A irmã Margron recordou que os abusos não são elementos periféricos ou conjunturais, mas sistêmicos. Aos crimes sistemáticos é necessário opor respostas sistêmicas. Conscientes de que será uma tarefa de longo prazo, F. Mounier reconheceu um empenho compartilhado dos religiosos sobre o problema, a liberdade de expressão, a convergência de pontos de vista e o bom funcionamento da "democracia nos capítulos". Ao contrário do que aconteceu na recente assembleia dos bispos franceses (Lourdes, 28-31 de março), onde “o tsunami dos abusos afundou suavemente em um muro de areia”, numa pequena e confortável cabotagem.
Os religiosos estão conscientes de sua crise numérica e do trabalho árduo de seus superiores, inclusive dos bispos, mas também estão determinados a responder aos pedidos sociais de salvaguarda da liberdade. Sem transformá-los em percursos individualistas. Reafirmaram o enraizamento nos conselhos evangélicos e nas formas construídas pela tradição (dos capítulos às visitas canônicas, à prestação de contas dos superiores), assim como a abertura a novas colaborações com leigos experientes e uma renovada atenção ao cuidado dos arquivos.
“Alguns de vocês estão pedindo a rápida dissolução das comunidades desviantes, uma moratória para os novos ingressos em comunidades problemáticas, uma parada no reconhecimento de novas comunidades. Os lugares onde o segredo tornou possíveis os delírios gnósticos ou erótico-místicos. Lugares onde a fé se tornou credulidade”. Sem medo de pedir a renovação de alguns elementos fundamentais como a teologia do sacerdócio e dos sacramentos e a moral sexual. Maior espaço para as mulheres e maior autonomia para as culturas dos povos são pedidos compartilhados, conscientes do possível perigo para a unidade da Igreja.
O texto aprovado – Recomendações e regras de boas práticas – é dividido em 19 pontos. Eles dizem respeito à Regra, aos capítulos, aos conselhos, à formação inicial, aos formadores, à formação permanente, ao respeito pela liberdade espiritual, à gestão das denúncias de abusos, às sanções, ao mapa de riscos, às visitas canônicas, à governança, às relações com as autoridades eclesiais, à identidade da CORREF…
Limito-me a citar dois números: 9 (como receber denúncias de agressões sexuais) e 17 (o que pedir às autoridades eclesiais). As células de escuta ativas nos institutos devem ser confiadas a pessoas competentes e independentes ou a religiosos de outras congregações. Mesmo os sinais mais fracos devem ser investigados. A escuta inicial é decisiva. Nesse sentido, o superior maior nunca agirá sozinho.
Pede-se ao dicastério e às autoridades eclesiásticas a possibilidade de nomear como ecônomo um leigo, o encorajamento aos bispos para um maior conhecimento da vida consagrada, maior vigilância sobre os estatutos das associações de fiéis de vida comum.
No que diz respeito à Santa Sé, pede-se que intervenha nos institutos mais expostos, impedindo novos ingressos e cancelando as comunidades que não conseguem se corrigir (não mais de 4 anos de espera), para intervir também nas formas comunitárias das associações laicais, para exercer grande prudência no reconhecimento das novas comunidades.
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França: religiosos/as sobre o “sistema de abusos”. Artigo de Lorenzo Pezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU