11 Abril 2023
A contaminação escandalosa do Rio Doce por metais pesados a partir do rompimento da barragem de Fundão, em 2015, da Samarco/Vale-BHP, o maior crime ambiental do País, não retirou das mineradoras nem de outras empresas poluidoras a permissão, política, legal e social para continuarem com suas atividades altamente predatórias.
A reportagem é de Fernanda Couzemenco, publicada por Século Diário, 08-04-2023.
A percepção crítica é expressa pelo professor Cláudio Luiz Zanotelli, do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no artigo, ainda preliminar e de circulação restrita, chamado “Marcas da indústria e da mineração na paisagem da zona costeira norte do Espírito Santo: o fim de um mundo”.
Para o acadêmico, a sanha predatória de “grandes corporações que ‘comem a Terra’”, é um fato que deveria ser banido da sociedade ao invés de continuar sendo aceito. Ele calça sua revolta primordialmente nos ensinamentos do xamã, escritor e líder Yanomami Davi Kopenawa. No livro A queda do céu (Companhia das Letras), publicado em 2010 com o antropólogo francês Bruce Albert, Kopenawa cunha o termo “comer o planeta” como uma forma direta e incômoda de se referir ao modus operandi das empresas que regem o sistema político e econômico global.
A narrativa indígena, afirma Zanotelli, contrasta com o discurso que predomina nos meios acadêmico, jurídico, político e midiático, onde a verdade é dissimulada de variadas formas, envolvendo a sociedade numa forçada aceitação de fatos que, como ele critica, são evidentemente repulsivos e deveriam ser, naturalmente, inaceitáveis. O artigo faz parte de um projeto de pesquisa dedicado a compreender as intervenções executadas pelo crime da Samarco/Vale-BHP e a indústria petroleira na Planície Costeira Norte do Espírito Santo.
Em relação aos rejeitos de mineração, a pesquisa se debruçou sobre o relatório do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática da Área Ambiental I, elaborado por pesquisadores contratados pela Fundação Renova como parte das ações obrigatórias de compensação e reparação dos danos decorrentes do crime. Ao custo de R$ 120 milhões, o trabalho se deu por meio de convênio com a Fundação Espírito-Santense de Tecnologia (FEST) da Ufes, a partir de amostras coletadas entre 2018 e 2021 nas águas dulcícolas (rios e lagoas), estuarinas (foz do Rio Doce) e marinha.
O contrato chegou a ser suspenso unilateralmente pela Renova, à medida que os dados revelavam a gravidade da contaminação e o explícito nexo causal com o rompimento da barragem, mas foi mantido, por meio de ampla mobilização dos pesquisadores, que defendiam a idoneidade das instituições envolvidas – mais de 20 universidades públicas federais – e decisão da Justiça federal.
Conforme destaca Zanotelli, “os pesquisadores demonstraram, pelas análises efetuadas, que estes rejeitos se incorporaram de maneira permanente aos diferentes ambientes, fato que os pescadores da planície costeira norte constataram empiricamente em suas práticas cotidianas”.
Para ilustrar a gravidade da situação, o autor seleciona a contaminação por oito metais pesados, em Linhares e em Regência, na Foz do Rio Doce. Comparando os valores encontrados nos dois lugares com a Resolução Conama nº 357, ele destaca que, em todos eles, as concentrações estão muito acima do máximo permitido pela legislação. No caso do alumínio, que tem 0,087 microgramas por litro como concentração máxima permitida, está mais de 5 mil vezes superior em Linhares e mais de 4 mil vezes em Regência.
As outras sete comparações mostram as seguintes situações: ferro (1,0 mg/L segundo o Conama) duas mil vezes maior em Linhares e em Regência; manganês (0,1mg/L): 401 e 461 vezes maior, respectivamente; bário (0,7 mg/L): 54,4 e 56,3 vezes maior; zinco (0,18mg/L): 97,8 e 88,9 vezes mais; cobre (0,009 mg/L): cerca de mil vezes maior em ambas localidades; níquel (0,025 mg/L): 216 e 276 vezes; e chumbo (0,01mg/L): 380 e 470 vezes maior.
Zanotelli ressalta o fato de que, mesmo que o acesso ao Relatório da Fest/Ufes, que traz dados tão alarmantes, seja público, ele “não foi interpretado e distribuído de maneira ampla nem pelos pesquisadores, nem pela mídia. E está redigido numa novilíngua com muitos termos técnicos somente conhecidos dos iniciados, com informações distribuídas em tabelas incompletas e de difícil acesso e compreensão”, fazendo com que esses resultados sejam “tão confidenciais, redigidos numa língua inacessível para o comum dos mortais, que o silêncio ou as meias-verdades recobrem as evidências gritantes que elas próprias revelam, confundindo e anestesiando a sociedade”.
Sem a devida comunicação e divulgação científica, aponta, seguimos “banalizando aquilo que era até pouco tempo o impensável: um rio, riachos, lagoas, foz, estuário, costa e mar contaminados de maneira permanente ou a longo prazo por rejeitos de mineração realizada a 700 quilômetros a montante, e todos os poluentes que se misturaram à lama tóxica que transformou o meio e as passagens e os modos de vida dos que vivem na zona costeira para sempre”.
Na Planície Costeira do norte capixaba, contextualiza, o maior crime ambiental do país se soma ao histórico de “outras atividades destrutivas, como a indústria de papel e celulose”, havendo ainda “portos e as estruturas logísticas” já instaladas e planejadas para um futuro breve, “formando uma rede capitalista que nos leva a uma espécie da tanatoceno (era da morte ou do ecocídio) dentro da era do antropoceno – ou do capitaloceno, como defendem outros”.
“Quando você se debruça, vai coletando dados e indo em campo, vai percebendo. Nós estamos vivendo uma coisa que não tem mais volta. É escandaloso!”, exclama o acadêmico. Passados mais de sete anos da contaminação aguda, que deixou as águas cor de laranja, “hoje a poluição é silenciosa e invisível, e muitos pescadores falam do aumento dos casos de câncer”.
Impedir que esse processo se perpetue, destruindo ainda mais territórios, passa pela mudança na organização social e política do mundo globalizado. A lama da Samarco/Vale-BHP, o complexo de Tubarão, os acidentes da Petrobras e outras petroleiras, afirma, “são exemplos locais que se passam em nível planetário”. E em todos eles, prevalece a manipulação do discurso, que cria fatos e anestesia a sociedade. “Que cinismo é esse?”, provoca.
Para encarar a verdade e transformar a realidade, é preciso partir de alguns princípios. “O capitalismo não consegue nunca ser ecológico. Qual é a base do sistema capitalista? Acumulação; produção, produção, produção; rejeito, poluição, química e física. Tudo isso é baseado no consumo, na cultura do ‘ter’ ao invés do ‘ser’. Não tem saída se continuarmos no capitalismo”, vaticina.
O crescimento econômico indefinido em que esse sistema se baseia, afirma, não se sustenta. “Nós temos que perguntar para que crescimento econômico? Devemos ter é mais equidade e distribuição. O consumo de energia de um americano médio é de 28 a 30 vezes a de um africano e 15 vezes a de um sulamericano. Vamos continuar produzindo energia cada vez mais e acumulando produção? Temos que partilhar o que já existe, temos que reduzir a produção de objetos descartáveis e de obsolescência programada”, propõe.
O Relatório do Clube de Roma, de 1972, chamado Limites do crescimento, o primeiro documento global que alertou sobre o caos ecológico em acelerado curso, já trazia essa ponderação. “Não se pode continuar produzindo dessa forma. Mas, 51 anos depois, nós não estabelecemos os ‘limites do crescimento’. Eu não estou dizendo que vamos abandonar o barco de uma hora para outra, mas não é possível continuar nesse ritmo”.
As seguidas “crises” provocadas pela falta de limites ao crescimento econômico, posiciona, mostram que “não há mais crise, há um estado de mudança não tem mais volta”. A Samarco é um exemplo, pois é uma poluição que se tornou permanente.
Como sair disso? “Ação coletiva”, responde. “O ‘como’ é uma construção coletiva, um debate com milhares de pessoas. Temos que ter aprendizados políticos para enfrentar isso e para que esse tipo de indústria não permaneça. Temos que sair desse ‘mito do desenvolvimento’ [título do livro de Celso Furtado de 1972]. Parece uma máquina desgovernada que não nos dá escolha, mas temos escolhas, sim”.
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“O fim de um mundo”, anuncia professor Cláudio Luiz Zanotelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU