03 Abril 2023
“A dificuldade de um único país resistir a essa aceleração do roubo das classes trabalhadoras [reformas previdenciárias] se deve ao fato de que essas políticas neoliberais têm alcance global. Os países são reféns do grande capital que migra de um país para outro em questão de horas, aterrorizando as populações com a ameaça de outra crise econômica e obrigando seus governantes, democráticos ou não, a se ajoelharem diante desses senhores feudais”. A reflexão é de Jorge Majfud, escritor uruguaio, em artigo publicado por Página/12, 30-03-2023. A tradução é do Cepat.
Da França ao Uruguai, não por acaso, os governos neoliberais propuseram uma reforma previdenciária que eleva a idade da aposentadoria (dois na França; até cinco no Uruguai). A narrativa que justifica o aumento da idade da aposentadoria é dupla: (1) as pessoas vivem mais e, portanto, devem trabalhar mais; (2) se essas “reformas necessárias e dolorosas” não forem feitas, o sistema ficará sem recursos e o país perderá competitividade no mundo, pois outros países aplicaram essas mesmas medidas, necessárias para a classe financeira e dolorosas para a classes produtivas.
O mesmo discurso, acrescido de uma terceira ameaça, se repete há décadas nos Estados Unidos: (3) o Social Security (uma invenção do “presidente comunista” Franklin D. Roosevelt durante a Grande Depressão) não é sustentável, razão pela qual é preciso elevar a idade de aposentadoria e, na medida do possível, privatizá-lo. Não importa que seja e sempre tenha sido autossustentável. Os seguros sociais são isso: seguros, não investimentos de risco.
A privatização foi colocada em prática pela primeira vez em países periféricos. A destruição da democracia socialista de Allende há cinquenta anos e a imposição da ditadura de Pinochet tinham a intenção declarada de preservar a liberdade do capital e usar este país como laboratório para as teorias neoliberais de Hayek e Friedman. O “milagre chileno” se destacou por suas crises sociais e econômicas, apesar do tsunami de dólares que afluíram para lá de Washington e das grandes corporações. O modelo de pensões semiprivadas foi levado para o Uruguai em 1996 e levou apenas vinte anos para fracassar. O maldito Estado teve que vir em socorro dos prejudicados pelos gênios dos investimentos.
A dificuldade de um único país, seja a França ou o Uruguai, resistir a essa aceleração do roubo das classes trabalhadoras se deve ao fato de que essas políticas neoliberais têm alcance global. Os países são reféns do grande capital que migra de um país para outro em questão de horas, aterrorizando as populações com a ameaça de outra crise econômica e obrigando seus governantes, democráticos ou não, a se ajoelharem diante desses senhores feudais.
Por outro lado, as maiores instituições financeiras do mundo, como o FMI e o Banco Mundial, são aliadas dessa máfia. O Banco Mundial se define como um banco de desenvolvimento, mas sua prática indica o contrário: está a serviço dos benefícios do capital, informando em tempo real quais países planejam votar uma lei para proteger seus trabalhadores ou controlar os bancos com legislações. Assim, seus sócios e clientes podem proteger seus investimentos transferindo seus milhões de um país soberano para outro mais friendly, melhor colocado no ranking de “liberdade de negócios”, outra daquelas velhas ficções funcionais.
Desde a década de 1980, a produtividade dos trabalhadores nos Estados Unidos e em todo o mundo tem crescido constantemente, enquanto seus salários permaneceram estagnados ou perderam poder de compra. Não precisa ser um gênio para entender onde foi parar essa diferença entre produtividade e salário. Mas eles querem mais.
Outra explicação para legislar contra a vontade do povo consiste na ideia clássica de que não são os sindicatos que governam, mas os governos eleitos. Mas só na França, 70% da população é contra a reforma previdenciária e seu “governo eleito pelo povo” se recusa a ouvi-la. Essa surdez é clássica e, por sua vez, é justificada por outra ideologia: “o governo deve agir com responsabilidade, não com demagogia”. Novamente: responsabilidade perante o capital do assédio; demagogia para o exercício da democracia, dando ao povo o direito de decidir.
Tudo isso poderia ser resolvido com um sistema de democracia mais direta, algo sobre o qual muitos de nós escrevemos há décadas, especialmente com as novas ferramentas digitais. Se os franceses pudessem decidir em referendos regulares, as manifestações em massa e os quebra-quebra urbanos que duram semanas não teriam ocorrido na França. Mas o cidadão comum não tem outra ferramenta eficaz senão a rebelião, em alguns casos violenta. Obviamente, essa ideia de democracia direta é perigosa porque é uma ideia a favor de uma democracia real.
Como mostra a história, o capitalismo é por natureza antidemocrático. Ele se desenvolveu a partir da brutalidade e da carnificina em suas colônias; fortaleceu-se com a escravidão; e consolidou-se com as múltiplas ditaduras militares na Ásia, África e América Latina. Mesmo ultimamente, tem se sentido mais do que confortável com o comunismo chinês.
Quando o capitalismo conviveu com as democracias liberais, não foi porque fosse um sistema democrático, mas porque é um grande manipulador, a ponto de convencer meio mundo de que democracia e capitalismo são a mesma coisa, já que ambos se baseiam na liberdade. O que ele esquece de esclarecer é que a democracia se refere à liberdade do povo e o capitalismo a entende como a liberdade do capital, ou seja, da elite ditatorial que hoje não apenas detém a maior parte da riqueza mundial, mas também o controle do sistema financeiro global e o quase monopólio da mídia dominante.
Os franceses têm uma longa tradição de protestos sociais, mas também podem se dar ao luxo de se rebelar nas ruas, já que poucos os acusarão de subdesenvolvidos. Os uruguaios, apesar de sua longa tradição de instituições democráticas como a educação, a saúde e os direitos individuais, são muito mais tímidos em suas reivindicações. Sua oligarquia, como todas, também tem uma longa tradição de estigmatizar os avanços da democracia real, acusando qualquer reivindicação popular de comunista (receita inoculada pela CIA nos anos 1950 e que sobrevive trinta anos após a Guerra Fria) no mesmo tempo que fazem isso em nome da democracia e da liberdade.
A (re)solução para a França não é fácil num contexto internacional sequestrado pelos senhores do capital que exigem e até convencem os seus escravos a trabalharem mais anos pela mesma ração e, ainda por cima, a fazê-lo por vontade própria. Para o Uruguai, por seu contexto e tamanho, é mais do que difícil. Mas em ambos os casos, se a resistência aos ditames econômicos for bem-sucedida, eles podem se tornar exemplos perigosos.
Por essas razões, a única solução de longo prazo é a união de uma nova corrente de Países Não Alinhados ou associados por interesses comuns (culturais e econômicos) como, por exemplo, a América Latina.
Mas claro, todos sabemos que a solução centenária do capitalismo imperial tem sido a desunião, a desmobilização e a desmoralização das colônias e de seus próprios trabalhadores. Tão longa é esta inoculação ideológica que hoje, nas ex-colônias, os movimentos nacionalistas estão em ascensão. Com um detalhe: não são o nacionalismo anticolonialista dos anos 1960 na África, por exemplo, mas um reflexo sipaio e parasitário do nacionalismo imperial em suas próprias colônias.
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Democracias políticas, ditaduras econômicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU