22 Março 2023
"Não gosto de dar entrevistas, faço-o com um pouco de relutância", disse Jorge Mario Bergoglio à sua amiga jornalista Elisabetta Piqué, do jornal argentino La Nación, no momento em que o entrevistava por ocasião dos seus dez anos como papa.
O comentário é de Sandro Magister, teólogo, filósofo, historiador e jornalista italiano, publicado por blog Settimo Cielo, 20-03-2023.
Viva a sinceridade. De 2013 até hoje, as entrevistas concedidas pelo Papa Francisco já se aproximam de duzentas, com um crescendo à medida que se aproxima o décimo aniversário e com um pico de sete entrevistas em quatro dias, entre 10 e 13 de março passado.
Até entrevistas de milhagem, como a de Jorge Fontevecchia, fundador do grupo editorial argentino Perfil, em que o Papa Francisco se detém com insistência sobre um tema que há tempos lhe é particularmente caro.
É a questão de sua proximidade juvenil com o peronismo, senão com Juan Domingo Perón.
Nos primeiros anos de seu pontificado, essa proximidade com ele era uma doutrina comum em suas biografias, mesmo naquelas por ele autorizadas e controladas. Hoje, porém, ele não perde a oportunidade de negá-lo.
Na entrevista ao Perfil, ele contou que seu avô materno era de um tipo completamente diferente, era um "radical dos anos 1990", movimento político que se estabeleceu na Argentina com uma revolta armada em 1890, que depois se tornou um partido com o nome de União Cívica Radical. Seu avô era carpinteiro, e Bergoglio lembra que quando ele era criança "um homem de barba branca" chamado Elpidio costumava lhe vender anilina e conversar com ele sobre política. “E você sabe quem é dom Elpidio?”, disse-lhe um dia sua avó. “Ele foi vice-presidente da república”. Isso mesmo, entre 1922 e 1928. “A amizade do meu avô com os radicais se deveu a Elpidio González e nossa família sempre herdou essa radicalidade. Quando o movimento peronista começou, eles eram tremendos antiperonistas”.
Mas também um pouco socialista. Ele lembra que “o pai saiu para comprar La Vanguardia”, que era o jornal deles, vendido de porta em porta. E ele foi com toda a família para a Plaza Francia para seus comícios. “Era como ir em peregrinação a Luján, ir até lá era sagrado.”
Em suma, "minha família era decididamente antiperonista", insiste Francisco hoje. “Claro, como bispo tive que acompanhar uma das irmãs de Evita Perón, a última a morrer, que veio confessar-se a mim, uma boa mulher”. E nesse sentido “pude dialogar com boa gente peronista, gente sã, assim como havia radicais sãos”. Mas não, a acusação de ter sido peronista, o papa hoje não aceita, e menos ainda a acusação de "ter feito parte da Guardia de Hierro" por ter dado o guia da Universidade de Salvador a alguns de seus expoentes, quando em vez disso eram "não fazia a menor ideia".
Claro, também na entrevista a Perfil o papa reconhece grandes méritos do peronismo, em particular o de ter feito sua a "doutrina social da Igreja" e de ter sido "um movimento popular que reuniu muitas pessoas com projetos de justiça social”. Mas ele faz questão de reiterar que nunca participou disso. De fato, que ele nem mesmo era simpatizante dele, disse a seus biógrafos autorizados Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti em seu último livro sobre ele, "El Pastor", lançado na Argentina no início de março.
Mas é realmente assim? Se percorrermos os nomes dos filósofos, teólogos, militantes com os quais Bergoglio esteve mais intimamente ligado, de Lucio Gera a Alberto Methol Ferré, de Carlos Mugica a Jorge Vernazza, o peronismo os une a todos.
Quanto aos peronistas da Guardia de Hierro, que agora diz nem mesmo conhecer como tal, basta reler o que ele mesmo, como papa, relatou aos jornalistas Javier Cámara e Sebastián Pfaffen no livro "Aquel Francisco” de 2014: “Conheci Alejandro Álvarez [um dos fundadores da Guardia] quando era provincial da Companhia de Jesus, porque havia reuniões de intelectuais na Universidade de Salvador e eu participava dessas reuniões porque estava prestes a para liberar a universidade e entregá-la aos leigos. Uma dessas reuniões contou com a presença de Álvarez. Eu o vi mais uma vez em uma conferência com Alberto Methol Ferré. Depois conheci várias pessoas da Guardia de Hierro, assim como conheci pessoas de outras correntes do peronismo, nessas reuniões realizadas na Universidade de Salvador”.
E foi precisamente para eles que Bergoglio entregou a universidade.
Sem mencionar o que lemos na biografia talvez mais documentada e autorizada de Bergoglio entre as publicadas até agora, escrita pelo inglês Austen Ivereigh, uma assinatura muito amada do próprio papa:
“Não só Bergoglio esteve próximo da Guardia de Hierro, mas em fevereiro e março de 1974, por meio de seu amigo Vicente Damasco, coronel próximo a Perón, foi um dos dez ou doze especialistas convidados a escrever suas reflexões no rascunho do Modelo nacional, um testemunho político de que Perón considerou o meio para unir os argentinos após sua morte”.
Bergoglio nunca se tornou militante partidário, escreve Ivereigh, mas "identificou-se com o peronismo, considerando-o o veículo de expressão dos valores populares, do pueblo fiel".
E justamente sua proximidade com o pueblo fiel é o objeto de outra qualificação que hoje Francisco insiste em rejeitar, a de populista.
Na entrevista ao Perfil, o papa discute com um livro lançado em 2020 por Loris Zanatta, professor de história latino-americana na Universidade de Bolonha e colunista do jornal argentino de maior circulação, La Nación, com o eloquente título: “Populismo jesuíta: Perón, Fidel, Bergoglio”.
O papa considera a acusação de populismo algo intolerável para ele, devido à distorção negativa que o termo assumiu na Europa e que, em sua opinião, se refere ao racismo de Hitler. Quando, ao contrário, a qualificação certa, da qual ele se orgulharia, seria a de popularismo, que é "a cultura do povo com sua riqueza".
Em seu apoio, Francisco cita Rodolfo Kusch, “um grande filósofo que tivemos na Argentina, não muito conhecido, mas que entendeu o que é um povo”.
Bergoglio já o havia citado com admiração em sua entrevista para o livro de 2017 com o sociólogo francês Dominique Wolton: “Kusch deixou uma coisa clara: que a palavra 'pessoas' não é uma palavra lógica. É uma palavra mítica. Não se pode falar logicamente de um povo, porque seria apenas uma descrição. Para entender um povo, para entender quais são os valores desse povo, é preciso entrar no espírito, no coração, no trabalho, na história e no mito de sua tradição. Este ponto está verdadeiramente na base da teologia chamada 'do povo'. Ou seja, vá com as pessoas, veja como elas se expressam. Esta distinção é importante. O povo não é uma categoria lógica, é uma categoria mítica”.
Na coletiva de imprensa a bordo do seu avião que o trouxe do México em 17-02-2016, ele também disse que "a palavra 'povo' não é uma categoria lógica, é uma categoria mítica".
Mas este é precisamente o mito populista com o qual Francisco se identifica e que nada tem a ver com o conceito europeu de “populismo”, que se refere à época política e cultural dos grandes partidos populares cristãos da Itália, Alemanha e outras aldeias.
O mito populista é também o segredo do sucesso mediático do Papa Francisco, favorecido por estar sempre ao lado do povo contra instituições e hierarquias de todo tipo, inclusive eclesiásticas.