08 Março 2023
Animais pastavam clandestinamente na TI Ituna Itatá e foram possivelmente retirados por invasores diante da iminência de uma operação de autoridades para retomar a área. Rebanho numeroso ainda segue no local e pode estar abastecendo grandes frigoríficos.
A reportagem é de Isabel Harari e Naira Hofmeister, publicada por Repórter Brasil, 06-03-2023.
A confirmação de que o caso de ‘vaca louca’ (nome popular para a Encefalopatia Espongiforme Bovina) no Pará foi um episódio isolado e não transmissível entre bovinos trouxe alívio para autoridades e frigoríficos. Por conta do risco sanitário, as exportações de carne para a China, que é a maior compradora do Brasil, estavam suspensas desde o dia 23 de fevereiro.
Mas cerca de 400 quilômetros distante de onde o animal doente foi encontrado, em uma pequena propriedade com 160 cabeças de gado no município de Marabá, no sudeste do estado, um rebanho de 10 mil cabeças de gado sobre as quais não se sabe se há controle sanitário pode significar um risco ainda maior para a cadeia da pecuária local.
São bois criados clandestinamente dentro da terra indígena Ituna Itatá, situada na divisa dos municípios de Altamira e Senador José Porfírio. Foram avistados pelo Ibama em sucessivas incursões na área entre março e abril de 2022.
Segundo um relatório do órgão ambiental a que a Repórter Brasil teve acesso, “o gado presente no interior da TI Ituna Itatá é comercializado sem a emissão de Guia de Trânsito de Animais (GTAs), documento que garante que os animais foram vacinados”. “Essa estratégia fura o bloqueio sanitário e está em desacordo com as regras de Defesa Sanitária Animal no Estado do Pará”, conclui o documento.
As GTAs rastreiam a origem e o destino dos animais. Possibilitam, dessa forma, a identificação do foco inicial de doenças como a febre aftosa e a vaca louca, que podem se tornar surtos graves, em alguns casos com consequências também para a saúde dos consumidores, caso não sejam controladas rapidamente.
Ainda em abril do ano passado, as deputadas federais do PSOL Fernanda Melchionna (RS), e Vivi Reis (PA, não reeleita) alertaram a Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará) que os animais representavam risco sanitário grave. “Não há segurança sobre as condições de saúde em que este rebanho está sendo criado e sobre quais doenças podem se disseminar em tais condições”, escreveram as parlamentares em uma carta ao órgão – a cobrança, entretanto, não foi adiante.
A reportagem solicitou esclarecimentos à Adepará, mas não recebeu retorno sobre as questões. O Mapa não comentou sobre os bois sem controle sanitário em Ituna Itatá, mas detalhou a estratégia de prevenção ao mal da vaca louca adotada pelo Brasil. A íntegra pode ser lida aqui.
Ibama participou de mega-operação para retirada dos invasores em dezembro de 2022, quando constatou que metade do rebanho clandestino já havia saído da TI (Foto: Ibama/MPF/PF/Divulgação)
Em dezembro de 2022, uma mega-operação para expulsar os invasores da terra indígena estimou que metade do plantel original, 5 mil cabeças de gado, já tivesse sido retirada da área pelos fazendeiros – evidenciando o risco de que animais sem vacina estejam circulando pela região. “O Ibama não fez nenhuma retirada de gado ilegal de dentro de Ituna Itatá – é algo que estamos programando para o ano de 2023. Alguns proprietários realmente retiraram o gado de lá, outros podem ter sido comercializados com frigoríficos”, alertou, na época, Tatiane Leite, coordenadora geral de fiscalização do Ibama.
A febre aftosa é considerada a “doença de maior impacto na pecuária mundial”, que causa prejuízos econômicos da ordem de US$ 20 bilhões ao ano (R$ 104 bilhões na cotação atual), em estimativa da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Não há relação entre a aftosa e a vaca louca, mas para ambos os males, o sistema de vigilância sanitária precisa agir para prevenir, e o monitoramento de rebanhos é a medida mais recomendada.
A investigação do Ibama encontrou também casos em que as GTAs que acompanhavam os lotes de bois eram frias, e indicavam como origem fazendas que ficavam fora da terra indígena e que não possuíam embargo – segundo a autarquia ambiental, uma “fraude documental” que permitia “acobertar o transporte dos animais de dentro da TI até os frigoríficos”.
“Infelizmente, sabemos que essa prática é muito comum na Amazônia Legal. É um problema enorme, porque a cadeia da pecuária continua suja mesmo com os controles já estabelecidos, como as auditorias do Ministério Público Federal. Não se sabe por onde o animal passa antes do abate”, lamenta Ritaumaria Pereira, diretora-executiva da ONG Imazon, que monitora o setor.
Agora, um levantamento exclusivo da Repórter Brasil mostra que inclusive nos registros oficiais há caminhos que ligam os animais clandestinos de Ituna Itatá até plantas de grandes frigoríficos. Cruzamos a lista de invasores identificados nas investigações do Ibama com dados de trânsito animal e descobrimos pelo menos dois lotes de bois que saíram da TI Ituna Itatá e podem ter ido parar em abatedouros da JBS e Mercúrio – com registro formalizado nos sistemas públicos.
Nos dois casos, o caminho inclui uma parada estratégica em fazendas em Vitória do Xingu e outra em Marabá, local onde o caso de vaca louca foi identificado. Ambas remessas partiram da Fazenda Nossa Senhora Aparecida, embargada pelo Ibama por estar situada dentro de Ituna Itatá, onde é proibida a criação de animais para fins comerciais.
A infração de desmatamento e uso ilegal da propriedade foi registrada no nome de Adrielle Graciano Braga, que havia sido autuada em 2019 e deve mais de R$ 2,4 milhões aos cofres públicos.
Mas a Fazenda Nossa Senhora Aparecida está formalmente registrada em nome de outra pessoa, Armando Marcos Machado, que em 2019 recebeu multa de R$ 6 milhões por usar a área ilegalmente. Ambos são réus em um processo movido na justiça pelo Ibama, que cobra responsabilidade pelo desmatamento na Ituna Itatá – a ação reforça que, apesar de apenas Adrielle estar no auto de infração, os dois podem ser considerados donos da área.
Em 2020, a Fazenda Nossa Senhora enviou animais para a Fazenda Caiçara II, de Gilberto Braga de Souza, em Marabá – por sua vez, Gilberto também foi apontado pelo Ibama como dono da área desmatada na Ituna Itatá. Depois disso, a Caiçara II vendeu bois para o Colombo Comércio Atacadista e Empreendimento Eireli, que enviou animais para a JBS em Marabá e para o Mercúrio em Xinguara.
Não há assegurar que gado ilegal foi abatido em frigoríficos, mas controles atuais ainda não alcançam todas as fazendas por onde o boi passou ao longo da vida (Infográfico: Greenpeace Brasil)
Procurados, os frigoríficos defenderam que as compras cumpriam com os critérios socioambientais estabelecidos, cujo controle, por enquanto, é direcionado apenas aos fornecedores diretos, que vendem sem intermediários aos frigoríficos.
A JBS disse que “diante dos fatos informados pela Repórter Brasil, entrou em contato com seu fornecedor, pedindo verificação dos casos e providências” e sublinhou a meta de monitorar fornecedores indiretos até 2025. Já a Mercúrio informou acreditar que “o fornecedor em questão obtém os bezerros de sua própria cria ou adquire somente de fornecedores idôneos”.
A empresa Colombo, fornecedora direta de ambos abatedouros, admitiu que na época das compras, 2020, não tinha mecanismos de monitoramento. “A partir de 2026, passa a ser obrigado, com o programa Selo Verde, antes de efetivar a compra, saber toda a cadeia do animal que estamos comprando”, informou. A empresa também sugeriu “que se o produtor tem algum passivo ambiental ou fundiário, os próprios órgãos responsáveis, Adeperá e Semas, não deveriam emitir as guias de trânsito animal”. “Seria a melhor forma de produtores evitassem de comprar animais de áreas embargadas”, completou.
A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.
A Repórter Brasil entrou em contato com um advogado que representa a produtora rural Adrielle Graciano Braga na justiça, mas ele não retornou mensagens nem ligações. Armando Marcos Machado e Gilberto Braga de Souza não foram localizados. O atacadista Colombo não respondeu aos questionamentos até o fechamento do texto. O espaço permanece aberto para suas manifestações.
Não há como comprovar que foram os animais de Ituna Itatá que acabaram abatidos pelos frigoríficos, pois o trânsito de gado é registrado por lotes e não por indivíduos. As chances, entretanto, são grandes, especialmente porque as fabricantes de carne ainda não monitoram seus fornecedores de gado indiretos, que são justamente essas propriedades intermediárias, que vendem para fazendeiros com quem as empresas negociam diretamente.
“A solução para acabar com o problema é o Brasil impor o rastreamento individual de animais, feita com chips que acompanham a vida do boi desde o nascimento até o abate”, observa Pereira, do Imazon. Enquanto essa realidade não é alcançada, a pesquisadora defende uma maior transparência no sistema de GTAs, documentos que várias instâncias de governo tratam como sigiloso, apesar da recomendação e até de uma ação judicial movida pelo MPF do Pará cobrando a publicação integral desses dados pela Adepará.
Dar publicidade a informações como origem e destino dos lotes de bois, fazendas e empresas envolvidas nas transações poderia prevenir os dois problemas envolvendo o gado de Ituna Itatá: por um lado, com os dados disponíveis para consulta pública, organizações da sociedade civil que fazem o monitoramento da cadeia da pecuária poderiam dar o alerta quando fosse registrado o trânsito de algum animal dentro da terra indígena, precavendo frigoríficos do risco de compra de animais com origem irregular.
Mas também serviria aos propósitos da defesa sanitária, já que GTAs frias podem passar uma falsa sensação de segurança da cadeia. O frigorífico Mercúrio, por exemplo, disse que tinha certeza da “conformidade sanitária” dos animais que abate, inclusive os comprados da Colombo – que recebeu lotes da fazenda em Marabá que lavou gado de Ituna Itatá – porque cobra GTAs dos fornecedores: se os animais não estivessem vacinados, disse a empresa, “o fornecedor não conseguiria obter a Guia de Trânsito Animal”.
Já a JBS ressaltou que “todas as plantas da Friboi possuem os procedimentos de inspeção no âmbito do Serviço de Inspeção Federal, contando com um veterinário desse órgão, em tempo integral, para essa verificação sanitária individual dos animais, ou seja, não por amostragem”.
O Pará tem comprovado a ausência do vírus da febre aftosa no seu território há 17 anos. Mais recentemente, em 2018, o Brasil alcançou o reconhecimento internacional de país livre da doença pela Organização Mundial de Saúde Animal. Mas as falhas no sistema são conhecidas: “Ainda existe gado sendo criado de forma irregular e isso gera uma fragilidade no sistema de vacinação. Se o nosso cadastro não está refletindo exatamente o que está em campo, vai afetar negativamente uma ação de emergência”, admitiu o chefe da divisão de febre aftosa do departamento de saúde animal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Gabriel Torres. A entrevista ocorreu no ano passado, e abordou o sistema sanitário nacional, sem citar nenhum caso específico de gado ilegal.
Ao todo, a Repórter Brasil identificou 20 proprietários com fazendas autuadas ou embargadas dentro da Ituna Itatá em 2022 – destes, 11 foram apontados pelo Ibama como donos do gado avistado nas operações de março e abril do ano passado. Em vários desses casos, esses fazendeiros emitiram GTAs e têm conexões com frigoríficos de diversos portes. A própria Fazenda Nossa Senhora, por exemplo, também é fornecedora indireta do Frigorífico Amazônia Empreendimentos, em Macapá (AP). Procurado por telefone e email, o frigorífico não se manifestou.
Localizada nas margens do rio Xingu, a Ituna Itatá é um território habitado por indígenas isolados, mas vem sendo ocupada por grileiros e bois. Mais de 22 mil hectares, o equivalente à área de João Pessoa (PB), já foram derrubados entre 2008 e 2021, colocando a terra indígena entre as mais desmatadas nos últimos anos.
Longe de ser uma ocupação de boa fé, a invasão era comandada por uma organização criminosa – para alugar pasto dentro da área era preciso desembolsar R$ 10 ao mês por cabeça de gado, um valor cinco vezes inferior ao que custa um campo fora dos limites da TI, segundo o Ibama. Levando em consideração as 10 mil cabeças de gado identificadas, somente com este serviço o lucro pode ter chegado a R$ 100 mil, por mês.
Análises feitas pelo Imazon a partir de dados públicos mostram que 4 mil hectares da floresta em Ituna Itatá já viraram pasto. A maioria dessas pastagens está nas bordas da TI. Segundo informou via LAI, em 2022, o Ibama, embargou 4,6 mil hectares em fazendas na área protegida – uma área maior do que Olinda, em Pernambuco – e foram aplicados R$ 21,7 milhões em multas.
Terra indígena Ituna Itatá, no Pará, tem 4 mil hectares de pasto dentro de seu perímetro, mas a mais ameaçada é a Apyterewa (Mapa: Arthur José da Silva Rocha/Imazon)
Em dezembro, a Repórter Brasil revelou que entre os possíveis envolvidos havia um coordenador da Funai que boicotou provas da existência dos isolados na Ituna Itatá e um antropólogo conhecido por fazer laudos contrários aos povos indígenas.
A investigação culminou em uma mega-operação de retirada de invasores na Ituna Itatá em dezembro. A ação destruiu a Vila Novo Horizonte, que havia se consolidado como uma “trincheira de defesa do gado pirata”. No ano passado, o Ibama chegou a admitir que a retirada dos animais ilegais que pastavam há meses na terra indígena havia sido interrompida por conta da criação da vila. Mas os animais seguem dentro do território.
A terra indígena Ituna Itatá foi reconhecida em 2011, mas nunca recebeu proteção definitiva. No lugar disso, a Funai vinha editando portarias de restrição de uso temporárias, renovadas a cada três anos. Mas em 2022 isso não ocorreu, e a Justiça precisou intervir para garantir a prorrogação. Em janeiro, a Funai renovou a portaria apenas por seis meses, após decisão judicial, e em junho houve renovação nos moldes anteriores, com proteção vigente até 2025. A previsão é que o órgão indigenista realize novas expedições para monitoramento e busca de novas evidências dos indígenas.
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Cinco mil bois podem ter saído de terra indígena no Pará sem vacina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU