05 Abril 2018
Daniel Freire é diretor do frigorífico Mercúrio, localizado em Castanhal, Pará. Ele caminha pelas instalações do abatedouro cumprimentando funcionários vestidos com aventais brancos e botas, salpicados de manchas de sangue, enquanto transformam bois adquiridos em fazendas do estado em cortes de carne consumidos no Brasil e no exterior. Uma a uma, ele vai passando pelas salas da instalação -- abate, desossa, miúdos -- e explicando sobre a reutilização do sangue pela indústria farmacêutica, sobre os ossos que dão origem a farinhas utilizadas em granjas e as partes dos bois que são compradas por pet shops para virar brinquedos de cachorros.
A reportagem é de Bárbara Mengardo, publicada por O Eco, 04-04-2018.
Perturbador para quem não é do ramo, o cenário é motivo de orgulho para Freire. O frigorífico teve um dos melhores resultados nas auditorias apresentadas por companhias que firmaram os chamados Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) da Carne no Pará. Os acordos, entre o Ministério Público Federal (MPF) e frigoríficos paraenses, têm por objetivo impedir a compra de cabeças de gado advindas de fazendas que desmataram a Amazônia ou se utilizaram de outras práticas ilícitas, como exploração de trabalho escravo ou ocupação de territórios indígenas.
A unidade de Castanhal do Frigorífico Mercúrio conseguiu comprovar que, em 2016, não adquiriu nenhuma cabeça de gado proveniente de fazendas com irregularidades. Apesar do desempenho excelente, entretanto, o Mercúrio não recebeu nenhuma distinção do MPF. Isso porque o órgão considerou satisfatórios os resultados das empresas com até 30% de compras irregulares em 2016, e optou por não punir nenhuma companhia auditada.
De acordo com os dados, divulgados entre os dias 8 e 9 de março, mesmo com os TACs, 17 frigoríficos adquiriram mais de 245 mil cabeças de gado de fazendas com irregularidades. Desse total, pelo menos 146 mil dos animais vieram de localidades que desmataram a Amazônia. As demais irregularidades envolvem, entre outras, compras de fazendas embargadas pelo Ibama ou de localidades sem Cadastro Ambiental Rural (CAR) ou Licença de Atividade Rural (LAR).
Apesar dos números, o MPF optou por não aplicar as sanções previstas nos acordos. Segundo o procurador Daniel Azeredo, que está à frente dos TACs desde 2009, caberá ao mercado valorizar as companhias com melhores resultados. Ficarão sob foco de fiscalização, apenas os frigoríficos que não apresentaram auditorias ou não assinaram TACs.
A decisão conseguiu desagradar tanto entidades que combatem o desmatamento na Amazônia quanto parte dos frigoríficos que fizeram auditorias. O fato acendeu ainda uma luz de alerta: tão importantes para o combate ao desmatamento na Amazônia, estariam os TACs perdendo a força?
Firmados com empresas sediadas no Pará, entre frigoríficos e curtumes, os TACs da Carne começaram a ser assinados em 2009. Por meio dos documentos, as companhias se comprometem, dentre outros pontos, a não adquirir bois de fazendas que tenham desmatado territórios após a assinatura do TAC, que constem na "lista suja do trabalho escravo" do Ministério do Trabalho ou que tenham sido condenadas judicialmente por invasão de terras indígenas, violência agrária ou grilagem de terra.
Os termos tornaram os donos de frigoríficos responsáveis por parte da cadeia produtiva do setor. O fato foi motivo de comemoração por ambientalistas e, num primeiro momento, desagradou empresários e pecuaristas.
“Em 2009, as pessoas não queriam se ajustar”, diz Francisco Fonseca, coordenador de Produção Sustentável da ONG The Nature Conservancy.
A escolha de assinar os documentos com os frigoríficos foi estratégica: existem cerca de 400 mil fazendas de gado no Pará, que abastecem pouco mais de 100 frigoríficos com licenças estaduais e federais. “O TAC trabalha assim: se forem reunidos todos os produtores, teríamos que disponibilizar três Maracanãs cheios. Se conversarmos com quem compra gado de todos esses produtores, eu posso fazer uma reunião em uma sala de cem pessoas”, afirma Fonseca.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Pará ocupa o posto de líder de desmatamento na Amazônia Legal desde 2006. Em 2009, quando foram assinados os primeiros TACs da Carne, mais de 4,2 mil km² de florestas haviam sido derrubadas no estado. Segundo o projeto TerraClass, do Inpe, em 2014 a pecuária ocupava aproximadamente 60% do total de áreas desmatadas em toda Amazônia.
“Pecuária e desmatamento andam juntos”, sintetiza Adriana Charoux, da campanha Amazônia, do Greenpeace. Segundo ela, a pecuária requer um nível de investimento menor em relação à soja, por exemplo, além de apresentar outros benefícios. “Estudos estão mostrando que o produtor não opta por outras formas produtivas, mesmo que mais lucrativas”, diz. Segundo ela, isso ocorre porque o gado pode ser vendido com mais rapidez caso o pecuarista precise de dinheiro. “É dinheiro 'spot'”, conclui.
Segundo levantamento do Inpe, a região da Amazônia Legal, que abrange nove estados brasileiros, passou por uma queda na taxa de desmatamento entre 2004 e 2012. A partir de então, os dados demonstram que o desmatamento voltou a crescer.
De acordo com o pesquisador sênior do instituto de pesquisa Imazon, Paulo Barreto, de 2012 a 2017, a taxa média de desmatamento na Amazônia Legal aumentou 38%. Ele relaciona a assinatura dos TACs da Carne tanto à queda quanto à elevação das áreas devastadas. Segundo ele, em um primeiro momento as companhias que fizeram acordos com o MPF influenciaram na queda do desmatamento. Posteriormente, dentre outros problemas, ocorreu o que Barreto chama de “vazamento”.
“Quem assinou o TAC desmatou menos, porém as fazendas não cadastradas tiveram uma taxa de desmatamento muito maior do que seria o esperado. Então acabou que neutralizou, e o efeito líquido do acordo acabou sendo nulo”, afirmou.
“[O TAC] foi um fator inibidor de desmatamento, mas não foi suficiente para conter o seu avanço, concorda Adriana, do Greenpeace.
Quase 10 anos após a assinatura dos TACs, um evento reuniu em Belém ambientalistas, donos de frigoríficos e pecuaristas para a divulgação das primeiras auditorias feitas pelos signatários do TAC.
As empresas foram incumbidas de responder a 12 perguntas. As mais importantes eram relacionadas à quantidade de gado adquirido em 2016, em que se devia apontar quantas cabeças foram compradas de fazendas com e também sem evidências de irregularidades. Os questionamentos foram respondidos por 20 empresas que assinaram o TAC e cinco não signatárias.
De acordo com os dados, mais de 245 mil cabeças de gado foram adquiridas de áreas irregulares, e as empresas não apresentaram justificativas para tanto. O problema mais comum foi a compra de gado de fazendas que desmataram -- foram 146 mil animais em 2016.
Segundo o Imazon, foram necessários aproximadamente 110 mil hectares de pasto para criar o gado que foi comercializado irregularmente no período. A regeneração dessa área custaria aproximadamente R$ 83 milhões e levaria décadas. O instituto estima que a comercialização de gado em desacordo com o TAC, por parte das signatárias, gerou a elas um lucro líquido de R$ 16 milhões. Desse total, cerca de R$ 10 milhões correspondem ao lucro obtido através da compra de gado de áreas desmatadas.
Em relação ao número absoluto de cabeças de gado provenientes de fazendas irregulares, a JBS teve a pior performance absoluta entre as companhias auditadas. Foram 118,400 animais nessas condições em 2016, o equivalente a 19% do que foi adquirido no período pela companhia. Desse total, mais de 85 mil bois vieram de fazendas que desmataram entre julho de 2008 e outubro de 2009. Outros 13,9 mil foram comprados de fazendas sem Cadastro Ambiental Rural (CAR), documento obrigatório para fazendas que vendem animais a frigoríficos signatários do TAC.
A comparação entre os números da JBS e o total apresentado pelas companhias auditadas mostra o tamanho do problema: a empresa é responsável por 57% das cabeças de gado que vieram de áreas desmatadas ilegalmente.
O diretor de sustentabilidade da JBS, Márcio Nappo, afirmou que a empresa foi prejudicada pela falta de detalhamento dos critérios de análise e por divergências nos bancos de dados públicos. Além disso, segundo ele, a JBS contratou para a fazer a auditoria uma multinacional com ampla experiência, que optou por uma visão “conservadora” no caso de dúvidas nos dados.
Frente aos números, o procurador Daniel Azeredo optou por dividir os frigoríficos paraenses em quatro grupos: companhias que assinaram o TAC, fizeram auditorias e tiveram até 30% de irregularidades; empresas com TAC, auditoria e irregularidades acima de 30%; companhias com ou sem TAC que não fizeram auditoria e, por fim, empresas sem relevância para o mercado.
No primeiro grupo, que reúne 18 empresas, estão as companhias que conquistaram resultados satisfatórios. Como retribuição, elas poderão fazer a próxima auditoria por amostragem, a ser realizada ainda em 2018.
A essas companhias, o MPF enviou ofício afirmando que elas se fazem parte “de um seleto rol de pessoas jurídicas”, para as quais “o resultado da auditoria é satisfatório e demonstra uma evolução” em relação ao período anterior ao acordo.
O segundo grupo, formado por sete companhias, terá que fazer a próxima auditoria completa, como a realizada no ano passado. Será necessário repassar ao MPF a relação de todas as operações realizadas no período auditado.
Às empresas do terceiro grupo, será reservado o tratamento mais rígido. Azeredo prometeu o envio de informações ao Ibama, junto a um pedido de fiscalização. De acordo com o procurador, 11 empresas entraram nessa categoria.
Por fim, as 65 companhias do quarto grupo não serão fiscalizadas ou punidas, já que não são representativas para o setor. Integram a divisão tanto companhias com TAC quanto companhias sem TAC.
O coordenador-geral do Ibama, Renê Luiz de Oliveira, afirma que o órgão fiscalizará as companhias apontadas pelo MPF, e poderá aplicar sanções administrativas. Em casos de irregularidades, os resultados podem ser enviados ao Ministério Público, para eventual responsabilização das companhias na esfera penal.
“Nós já temos linhas de investigação que nos remeteram a alguns resultados sobre isso e vamos confrontar esses dados com os resultados dessa auditoria. As equipes irão a campo na maior brevidade possível”, afirmou.
O encaminhamento proposto pelo procurador provocou reações críticas das companhias e das organizações relacionadas aos TACs. A principal delas é que frigoríficos com desempenho próximo de zero irregularidades foram encaixados na mesma categoria de outros que tiveram até 30% de problemas, o que envia duas mensagens: os excelentes se esforçaram demais e os problemáticos não precisam mudar. Para que ser rigoroso e gastar mais para comprar apenas gado regular -- e, eventualmente, ter de repassar esse custo aos consumidores -- se os irregulares não são punidos?
Daniel Freire, do frigorífico Mercúrio, considerado 100% regular pela auditoria, conta que, para se adequar ao TAC, teve de implementar um setor de compliance ambiental: “Você vê que recusou muitos animais ao longo de um ano para tentar chegar ao 100% e vê indústrias que não recusaram terem um tratamento igual. Isso causa uma distorção competitiva".
Carlo Zanetti Caruccio, representante do Frigorífico Rio Maria, que também teve todas as operações regulares em 2016, contou que para garantir a compra apenas de fazendas regulares, é preciso com frequência buscar animais em lugares distantes, o que aumenta os custos com transporte. “Competimos com empresas que estão com 30% de irregularidade é muito injusto, elas compram boi irregular próximo da unidade. O nosso custo de produção é bem mais alto".
“A grande pergunta que fica a essas empresas que não atingiram os 100% é qual o problema delas. Foi falta de monitoramento, monitoramento deficiente ou houve má-fé na compra do gado? Isso dá a elas uma vantagem comercial muito grande”, diz Caruccio.
Para além das críticas relacionadas à concorrência desleal, organizações que atuam no combate ao desmatamento na Amazônia temem que o critério adotado pelo MPF desestimule frigoríficos a tentar seguir o acordo à risca. “[O MPF] não ter aplicado uma punição premia quem não foi tão rigoroso”, afirma Paulo Barreto, do Imazon. Para ele, deveriam ter sido aplicadas as multas previstas nos TACs, de cinco reais por hectare da fazenda fornecedora cuja aquisição tenha sido realizada sem a observância dos termos do acordo.
Especialistas também criticam o fato de as auditorias feitas pelos frigoríficos não se debruçarem sobre outras irregularidades. Seria o caso, por exemplo da falta de controle das fazendas indiretas, onde nasce o boi ou é realizada a engorda dos animais. As localidades estão em elos anteriores à venda final para os frigoríficos e, por isso, fora do radar de irregularidades. O TAC não prevê controle sobre elas.
“Aquela fazenda que fornece para o frigorífico muitas vezes não sabe de onde comprou o bezerro ou o gado para engorda e, com isso, pode estar fornecendo um animal que indiretamente teve problemas socioambientais”, diz Pedro Burnier, gerente do Programa de Cadeias Agropecuária da ONG Amigos da Terra.
Outro problema apontado por Burnier é a triangulação para "lavagem de gado", ou seja, o repasse do animal advindo de uma fazenda desmatada para uma fazenda regular.
Segundo Paulo Barreto, do Imazon, não é possível precisar a extensão dessas fraudes, porém há dados que indicam o seu tamanho. Ele diz que os frigoríficos sem TAC na Amazônia Legal representam 30% da capacidade de abate.
Além disso, tanto a questão dos indiretos quanto da lavagem já foram identificadas pelo Ibama em 2017, na Operação Carne Fria. Foram investigadas e penalizadas companhias que adquiriram para abate gado criado em fazendas que desmataram ilegalmente.
De acordo com dados divulgados pelo Ibama, foram interditados 14 frigoríficos e um exportador de gado em pé localizados no Pará, Tocantins e Bahia. Além disso foram lavrados 172 autos de infração, que totalizam R$ 294 milhões.
Os representantes do MPF insistem que os resultados das auditorias são importantes por manter o TAC em funcionamento, ainda que não haja sanções. O procurador Ricardo Negrini, do MPF no Pará, lembrou que a execução do TAC levaria a discussão sobre descumprimento do termo à Justiça. Nessa situação, os frigoríficos não ficariam mais vinculados aos termos do acordo. “Temos que medir com bastante responsabilidade tudo que está em jogo. Temos TACs que vem funcionando e vem contribuindo para a redução do desmatamento desde 2009”, avaliou.
O ponto de vista dele também é defendido por algumas organizações não governamentais. “Foi positivo o MPF não aplicar as sanções. Ele espera que o mercado crie esse crivo”, afirmou Kemel Amin Kalif, da ONG National Wildlife Federation.
O MPF aposta que a valorização dos frigoríficos com melhores resultados será feita pelo varejo: caberia ao mercado priorizar a carne produzida pelos melhores frigoríficos.
“Nós deixamos os dados públicos porque quem teve 99% é uma empresa mais rigorosa e quem teve 75% é uma empresa não tão rigorosa. A gente deixou isso para a sociedade, para o mercado organizar, e eu acho que, no ano que vem, ninguém vai querer ficar com 70% se tem alguém com 99%. Isso traz uma imagem ruim para seus compradores”, defendeu Azeredo.
A atuação do varejo, porém, é vista com ceticismo por parte de diversos players do mercado. Muitos não acreditam que os supermercados priorizarão empresas que tiveram bons resultados nas auditorias.
Nos dias 8 e 9, quando os números foram divulgados, apenas o representante de um supermercado – o Walmart – compareceu. De acordo com uma lista enviada pelo MPF ao O Eco, pelo menos outras nove empresas foram convidadas para o evento, dentre elas líderes do setor, como o Grupo Pão de Açúcar e o Carrefour.
“O varejista busca qualidade, mas ele busca preço acima de tudo. Essa questão ambiental a gente ainda não observou que está na lista de prioridades do varejo ao escolher um produto para colocar na gôndola”, afirmou Daniel Freire, do Mercúrio.
O fato esbarra em dois outros problemas elencados por especialistas: a dificuldade de rastreabilidade do gado e a quase impossibilidade de o consumidor ter certeza sobre a procedência da carne que consome.
“No geral, o consumidor tem muita dificuldade em identificar a origem da carne que consome. A carne que é comprada embalada já é obrigada a identificar o endereço do local onde aquele produto foi embalado, mas, ao comprar em açougues, por exemplo, fica mais difícil [saber a origem]”, diz Ana Paula Bortoletto, líder do programa de alimentos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Ana Paula salienta, ainda, que iniciativas de identificação da origem da carne são “pontuais e voluntárias” e acabam beneficiando os mais ricos, já que o preço desses produtos costuma ser elevado.
A população menos favorecida também não costuma ter acesso à rastreabilidade do gado do país. A ampliação desse tipo de controle poderia acabar com várias fraudes do setor, como a triangulação e a questão dos indiretos, além de garantir a responsabilidade socioambiental de toda a cadeia.
“Hoje existe tecnologia para saber de onde vem todo o gado, o que falta é organização para fazer isso acontecer. A carne brasileira exportada para a Europa, por exemplo, tem essa rastreabilidade, e desde que o boi nasce todo gado é identificado, até o momento que é vendido para o abate. Isso já existe para o mercado europeu, e essa tecnologia poderia ser usada para o mercado nacional”, defende Paulo Barreto, do Imazon.
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TAC da Carne no Pará: irregularidades dos frigoríficos passam em branco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU